(RE)PENSANDO SOBRE ALGUNS GRUPOS ÉTNICOS FORMADORES DO POVO BRASILEIRO



(RE) PENSANDO SOBRE ALGUNS GRUPOS ÉTNICOS FORMADORES DO POVO BRASILEIRO

 RESUMO

 Este ensaio tem por objetivo, discutir a miscigenação da população brasileira, que é formada a partir de três grupos étnicos básicos: o indígena, o europeu e o negro.  Esses grupos originaram os numerosos mestiços ou pardos, cujos tipos fundamentais são os seguintes: mulato (branco + negro); caboclo ou mameluco (branco + índio) e cafuzo (negro + índio), sendo que os portugueses foram os principais brancos participantes dessa mixagem. As contribuições culturais  foram várias principalmente técnicas de trabalho, musicas e danças, práticas religiosas, alimentação e vestuário. Entretanto, em relação a literatura, procura-se demonstrar o “apagamento” do negro e o desconhecimento em relação a textos escritos por autores indígenas. No caso dos indios há vários autores que falam sobre eles, mas sempre com a ciência antropologica atrelada. A literatura indígena é muito mais recente que a africana.  Por se tratar de tradição oral e por não conviverem efetivamente no meio da sociedade branca, e sim aldeados, os indigenas ainda enfrentam certa oposição no que concerne a criação literária. Finalmente procura-se demonstrar que, apesar da globalização, da conquista dos cosmos pelo homem e de toda a inovação de uma conduta comportamental da sociedade, ainda vive-se em um sistema de privilégios para alguns e de sortilégios para outros.

 Palavras – chave : indígena, negro, branco, miscigenação, literatura

ABSTRACT

 This essay has for objective to discuss the interbreeding of the Brazilian population, which it is formed from three ethnic basic groups: the native, the European and the black man. These groups gave rise to the numerous half-castes or gray, whose basic types are the next ones: mulatto (white + black man); mestizo or half-breed (white + Indian) and dark-skinned mulatto (Indian +  black man), being that the Portugueses were the principal white participants of this mixing. The cultural contributions were principally technical newspaper commentaries of work, music and dance, religious practices, food and clothing. Meantime, regarding literature, there tries to demonstrate the "extinguishment" of the black man and the ignorance regarding texts written by native authors. In case of the Indians there are several authors who speak on them, always with the anthropological harnessed science. The native literature is much more recent than the African. Because of treating oral tradition and because of not coexisting effectively in the middle of the white society,  the natives still face certain opposition in what it concerns the literary creation. Finally it tries to demonstrate that, in spite of the globalization, the conquest of the cosmos for the man and of the whole innovation of a conduct behavior of the society, one still lives in a system of privileges for someone and of sorceries for others.

 Key Words -  native brazilian people , black man, white, interbreeding, literature

INTRODUÇÃO

 Pode-se afirmar que, a população brasileira é formada a partir de três grupos étnicos básicos: o indígena, o europeu e o negro. A intensa miscigenação (mistura) entre esses povos originou os numerosos mestiços ou pardos, cujos tipos fundamentais são os seguintes: mulato (branco + negro); caboclo ou mameluco (branco + índio) e cafuzo (negro + índio). Os portugueses foram os principais brancos que contribuíram para a mestiçagem, por serem os colonizadores e circulavam livremente pelo Brasil. Esses, por conseguinte, traziam em suas origens, as misturas de povos como romanos, árabes e negros.  Além dos portugueses outros povos imigrantes se firmaram no País após a independência: italianos, espanhóis, alemães, poloneses, ucranianos e japoneses, que também eram oriundos de mestiçagem semelhante. Atualmente não se pode afirmar que alguma sociedade em especial é um grupo puro racialmente .  Conforme nos diz Araújo (2005):

 Não existe na atualidade nenhum grupo humano racialmente puro. As populações contemporâneas é o resultado de um prolongado processo de miscigenação, cuja intensidade variou ao longo do tempo. Miscigenação é o cruzamento de raças humanas diferentes. Desse processo, também chamado mestiçagem ou caldeamento, pode-se dizer que caracteriza a evolução do homem. Mestiço é o indivíduo nascido de pais de raças diferentes, ou seja, apresentam constituições genéticas diferentes (p. 01).

            Na época colonial, os portugueses estabeleceram contato com uma população indígena e tiveram que adaptar-se a nova terra, aceitando seus numerosos valores indispensáveis ao meio. Os novos costumes começaram a fazer parte da formação do brasileiro, que além da alimentação (uso da mandioca), incorporou o banho no rio, os cestos de fibra vegetal, além de um numeroso vocabulário que nomeava plantas e animais. Assim nos dizem Yvone Maggie e Claudia B. Rezende:

O trabalho escravo na Capitania do Grão-Pará, até meados do século XVIII, foi fortemente baseado na mão-de-obra indígena. O trabalho compulsório destes até a era pré-pombalina dividiu-se entre escravizados e aldeados. A escravização dava-se por guerra justa, resgate, descimentos e compra de prisioneiros de guerra. Havia também a escravização ilegal empreendida por particulares (...). Quantos aos livres, estavam divididos em aldeamentos indígenas organizados por missionários. Apareciam aldeias de serviço das ordens religiosas, aldeias do serviço real e aldeias de repartição. As disputas e conflitos entre colonos e religiosos – principalmente os jesuítas – pelo efetivo controle da mão-de-obra indígena eram constantes (...). (2002 p. 36).

            Devido ao nomadismo inerente aos indígenas, as constantes fugas e a dizimação sistemática do índio, os negros foram trazidos para o Brasil como escravos, do século XVI até 1850, e foram direcionados à lavoura canavieira, à mineração e à lavoura cafeeira e provinham em sua maioria de dois grandes grupos africanos: os sudaneses e os bantos. Os primeiros, geralmente altos e de cultura mais elaborada, foram sobretudo para a Bahia. Os bantos  originários de Angola e Moçambique, predominaram na zona da mata nordestina, no Rio de Janeiro eem Minas Gerais.

            Com a vinda do negro, mais um elemento foi incorporado a essa formação populacional brasileira.  Espalhados por todo o território nacional, não demorou em ocorrer a mestiçagem entre índios e negros, brancos e negros, além é claro, da sua contribuição cultural, que assim como a do índio, se incorporou no modo de ser do brasileiro. As contribuições foram várias nas técnicas de trabalho, musicas e danças, práticas religiosas, alimentação e vestuário. Logo os índios se aliaram com os negros, contra o opressor colonizador:

Em várias regiões do Brasil, assim como das Américas – além dos conflitos e confrontos – negros fugidos aliaram-se a grupos indígenas, formando inclusive, pequenas  comunidades. Os argumentos sobre os contatos interétnicos – negros e índios – envolvendo os quilombos podem ser aqui reforçados. Como mais um exemplo de conflitos e alianças entre índios  e negros fugidos podemos citar o caso ocorrido em 1778, no Piauí. A revolta dos índios aldeados gueguês foi comandada por um negro fugido. (idem p. 59).

E ao repensar-se o papel do Português nessa mixagem , sabe-se que:

Os primeiros grupos de colonizadores europeus que chegaram ao Brasil depois de 1500 eram formados quase exclusivamente por homens. Milhares de quilômetros distantes de casa, tiveram filhos com as índias. Mais tarde, com a chegada dos escravos durante o ciclo econômico da cana-de-açúcar, passaram a engravidar também as africanas. (FEPESP, 2007 p. 03).

            O Português no Brasil fez da mandioca indígena seu segundo pão, da mulher índia ou africana - sua mulher, das iguarias da terra uma adaptação a sua alimentação, confraternizando-se e combinando os recursos que teve, porque muitos, provavelmente, não devem ter vindo por vontade própria e por isso,  sofrido saudades como os africanos arrancados de seus lares e revolta como os indígenas, de estar longe da sua pátria. Seus filhos agora mestiços eram mulatos e caboclos e deveriam sofrer o que comumente chama-se de preconceito. Este preconceito pode ser entendido de uma forma muito mais ampla e abrangente do que a palavra em si mesma pode significar. Ela pode ser ambígua, no sentido de favorecer alguns e para outros, desfavorecer. Pretende-se falar da forma como índios e brancos são vistos em pequenos trechos de alguns livros escritos por autores na sua maioria brancos, sobre esse grupo de pessoas.

2.   O INDIO FAVORECIDO TEMPORARIAMENTE

            Sabe-se que houve um período na literatura brasileira, toda voltada para a questão de se criar uma imagem fictícia do índio como herói, pois havia a necessidade do povo brasileiro, agora miscigenado, ter seus próprios conceitos literários diferentes do colonizador. No entanto Juan Gregório nos diz que existem diferenças para termos que usamos na literatura entre indianista, indigenista e literatura em línguas indígenas:

A literatura indianista surge depois do movimento de independência em que existe a busca de uma identidade própria e se exacerba a paixão nacionalista (...) ; A Literatura indigenista, particularmente a narrativa, tem distintas tendências desde a sua aparição (...) ressaltam os aspectos sociais, são freqüentes os temas sobre a exploração, a pobreza, a marginalização e o choque entre culturas (...); a literatura em línguas indígenas apareceu recentemente. É realizada por indígenas que aprenderam a escrita em suas línguas autóctones e vem produzindo diversos textos (...) é a compilação da tradição oral existentes nas comunidades (2007 p. 1) [1]

            Fica notório que, no caso brasileiro, ainda prevalece a primeira definição para literatura que versa sobre índios, pois como o próprio Juan Gregório nos diz, a literatura em línguas indígenas ainda é um fenômeno recente. Existem na atualidade alguns índios que por meios próprios ou mesmo por incentivo do governo, se lançaram no mundo das letras, mas que até o momento não são muito conhecidos, devido a vários fatores, dentre eles a falta de divulgação dessa literatura. Por isso, no caso do Brasil, em especial nas escolas,  as literaturas lidas  que tratam sobre indígenas, são escritas por brancos  e ficaram engessadas no tempo do indianismo. Com exceção da antropologia e da sociologia, quase não se observa discussões a respeito.       

            Um dos precursores no conhecimento deste povo foi Padre Anchieta (1534 – 1597).  Estudioso da língua Tupi, escreveu “A Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil”  (1595).  Demonstrou grande interesse na língua chamada geral criando a gramática citada. Esta foi criticada por conter muitos termos em latim, e assim descaracterizou vocábulos da língua Tupi, e elogiada por outros, pela coragem de estudar uma língua tão diferente da sua. No entanto, isso seria o embrião da criação de uma nacionalidade, que se alastraria com o advento do indianismo. Conforme Zilá Bernd comenta  em seu livro “Literatura e Identidade Nacional” (2003), sobre a  necessidade de se criar essa “consciência de brasilidade” e como o autor de: O Uruguai (1769)  José Basilio da Gama inicializa a discussão do índio como símbolo nacional e em Caramuru (1781) de Santa Rita Durão:

Basilio torna-se assim o iniciador do processo romântico de fazer do índio o antepassado simbólico, que vai justificar tanto a mestiçagem quanto o nativismo, servindo ainda para ocultar o problema do negro. (p. 47).

            A partir daí , começam a surgir grandes escritores no cenário nacional, com o intuito de criar uma literatura genuinamente nacional, mesmo que para isso se crie tantos quantos heróis forem precisos e nada melhor que o próprio habitante do continente, antes da vinda dos europeus: o índio. José de Alencar (1829 – 1877)  é tido como o fundador do indianismo e ele mesmo classifica a literatura brasileira, como literatura nacional,  segundo Zilá Bernd  (2003):

O próprio José de Alencar no romance Sonhos d’ ouro (1872) utiliza a expressão “literatura nacional”: “ A Literatura Nacional, que outra coisa não é senão a alma da pátria, que transmigrou para este solo virgem como uma raça ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana desta terra que lhe serviu de regaço, e cada dia se enriquece ao contato de outros povos e ao influxo da civilização”. (p. 51)

            A autora diz que  “as expressões máximas do indianismo (com) Iracema (1857), O Guarani (1865) e Ubirajara (1874), que Alencar inicia seu projeto de orquestração da identidade nacional (...)” (p. 52) e que,  em Iracema,  tem-se a idéia da América colonizada e dominada pelo colonizador branco “A morte de Iracema (anagrama de América) é simbólica a morte desta América mítica “ (p. 55).  Mas há quem critique essa aparente inocência do indianismo, como idealização de enaltecer a figura do índio. Para Belley (2000) “A trama narrativa do romance, em outras palavras, escapa constantemente do encadeamento metonímico de eventos e busca refúgio no encantamento da metáfora”. (p. 121). Ou seja, José de Alencar em Iracema, usou de muitas metáforas para encobrir a violência seletiva gerada pelo branco, e dizimando não com a América propriamente dita, mas com o homem americano. No entanto em O Guarani, a figura do índio Guarani é exaltada perante outras tribos também indígenas, em meio de outras etnias, pois Alencar demonstra ter consciência das diferentes tribos que existiam.  Peri índio guarani que se apaixona por Ceci, moça branca européia, é uma figura heróica, dedicada e perfeitamente assimilada pelos brancos. Tem um final trágico quando sucumbe em uma inundação, tentando salvar Ceci, que também é tragada pelas águas, sugerindo que seria impossível as duas raças se mesclarem.

             Também o escritor Gonçalves Dias (1823 – 1864) escreveu um poema sobre índios chamado  I Juca Pirama (1851), que segundo a enciclopédia Wikipédia: 

relata a história de um guerreiro tupi, aprisionado por uma tribo antropófaga dos tabajaras e que, sacrificando a sua honra (que o obriga a aceitar a morte com coragem), prefere passar por covarde de modo a cuidar do seu pai, velho e doente. O pai, ao rever o filho e ao cheirar a tinta com que este está ungido para efeitos de sacrifício, e perceber a calva de prisioneiro, fica envergonhado da covardia do filho e envia-o de volta para a tribo tabajara onde este demonstrará a sua valentia. É um poema dividido em dez cantos, em versos alexandrinos e decassílabos. (2007)

            Além desses escritores, pode-se destacar Bernardo Guimarães (1825-1884), que embora não pertença ao indianismo, escreveu algo relacionado ao indígena . É considerado fundador do regionalismo por escrever “A Escrava Isaura” e “O seminarista” . Seus livros que  versam sobre indígenas são Jupira (1872) e o Índio Afonso (1873).  Porém, segundo Leopoldo Comitti, no prefácio de “Jupira” edição digital (2005) , diz o seguinte:

(...)  seria algo forçado considerar Jupira uma obra indianista, uma vez que a trama esboçada por Bernardo Guimarães poderia ter sido ambientada em cenário diverso e protagonizada por quaisquer brasileiros. Possui mais, o romance, ares de tragédia, que de texto indianista. Aliás, transformar o indígena em símbolo da nacionalidade nunca esteve nos horizontes do autor. Se, em algumas obras, fez deles personagens, fê-lo unicamente por seu projeto de construção de um romance regional; portanto, sendo inescapável a presença de alguns nativos dentre seus personagens (p. 02)

Sobre “Índio Afonso” Leopoldo Comitti nos diz:

Surpreendemo-nos, pois, com o título da obra: O Índio Afonso. Teria Bernardo sucumbido aos apelos do indianismo, enquanto idealização de um caráter nacional? Já nas primeiras páginas percebemos que isso não acontece. Lançando mão do uso indistinto, comum entre a população rural, das palavras “índio” e “caboclo”, caracteriza Afonso como um mestiço. Se possui a estatura e traços religiosos dos europeus; ainda mantém os hábitos nômades e resquícios de um misticismo relacionado à natureza (2005 p. 03).

            A europa para inventar seu Romantismo, tinha seus cavaleiros medievais. A Idade Média no Brasil não houve, porque era um país jovem, sem nenhuma tradição. Do colonizador português não daria para importar os heróis, porque na fase romantica o Brasil havia conquistado sua independência. De onde surgiria o herói nacional para protagonizar as histórias, senão o habitante original antes da colonização? Os indios que estavam livres em seu habitat natural, lindo e verdejante.  Mas essa situação mudou, como se verá na continuidade do ensaio.

3.  ESCONDE-ESCONDE COM O NEGRO

            Na contribuição da miscigenação de raças, não podemos nos esquecer do negro, que permaneceu por muito tempo “escondido” na literatura brasileira.  Castro Alves (1847 – 1871) não o omitiu  “Navio Negreiro” (1869). Mas foi uma exceção na terra do esconde-esconde literário formada por brancos. Entre guerreiros, cara morena não tem vez. Ou seja, na terra do indianismo, de heróis e de construção nacional, melhor erguer o tapete e guardar a sujeira da escravidão embaixo dele, pra que ninguém veja. Certo? Errado. Enquanto o indio era exaltado, levado a mais alta plenitude de sua existência como herói total nacional, o negro era “lembrado” de maneira vergonhosa na literatura.

            Retome-se José de Alencar para melhor exemplificar. Em seu livro O Demônio familiar (1857) , peça teatral, na qual o protagonista é Pedro , que é um serviçal negro, escravo e descrito como bobo da corte, irracional e irresponsável, que almeja ascensão social. Apesar de ter o poder de manipular praticamente a familia toda, a  possibilidade de um escravo ter a condição que o personagem demonstra deter no contexto familiar, é quase improvável.  Os patrões do rapaz toleram de muito boa vontade as suas manipulações, sem nenhum tipo de castigo ou mesmo de um corretivo.  Ao contrário, ele mesmo quando erra diz: “Sim. Pedro fez história de negro, enganou senhor. Mas hoje mesmo tudo fica direito” (p. 106). Ou seja , remete-se ao dito popular “Preto quando não suja na entrada, suja na saida”.

            Os colonizadores na peça são tidos como bons, que simplesmente toleram a presença do escravo, sem impunir-lhe castigos ou mesmo chamar-lhe a atenção.  Mas  um dos personagens Eduardo, diz o que esses negros representavam dentro de suas casas: “É a conseqüência de abrigarmos em nosso seio esses repteis venenosos, que quando menos esperamos nos mordem no coração!” (p. 110). O mesmo Eduardo no final da peça, quando descobre a artimanhas de Pedro, concede a carta de alforria ao escravo, como uma suposta punição:

Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti;  porque a moral e a lei pedirão uma conta severa de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade do trabalho honesto e apreciarás os nobres sentimentos que hoje não compreendes. (p. 226)

            Podemos interpretar esta punição por dois aspectos. O primeiro seria um ato benevolente, cedendo a liberdade tão almejada a um escravo, deixando-o livre para responder sobre si mesmo. O segundo aspecto seria realmente uma punição, pois Pedro sentiria na carne o “ser” negro e tentar sobreviver sem moradia, sem cultura, trabalho pago, alimentação e amigos como ele os tinha. Seguindo o pensamento de se excluir o negro como parte heróica da raça brasileira, Zilá Bernd fala da criação do sertanejo como o substituto para o índio heróico:

Euclides da Cunha, em Os Sertões (1902), retoma de certa forma, o projeto alencariano de explicar o Brasil e sua caminhada em busca de identidade. Em que pesem os equívocos que comete em relação à conceituação de raça, equívocos esses em sua maioria devidos à influência de seu mestre, o antropólogo, Nina Rodrigues. Os sertões constitui-se importante marco por instaurar a modernidade na literatura brasileira. O “homem” de Euclides é o sertanejo que, embora etnicamente misturado, constitui-se longe do litoral, distanciado das circunstancias históricas e de determinadas exigências que poderiam ter desvirtuado sua formação”. (2003. p. 55).

E Zilá continua seu pensamento e diz que:

O sertanejo (cruzamento preferencial de branco com índio), embora mestiço, devido ao isolamento do sertão, tem a “índole varonil e aventureira dos avós”, enquanto o mestiço do litoral (cruzamento preferencial de branco com negro) é “desequilibrado”,  “instável” e “anômalo”. Logo, o herói emblemático é o sertanejo, símbolo da nascente raça brasileira. (idem p. 58).

            Ou seja, o negro sofre uma espécie de “apagamento” na memória nacional, tanto pela questão da escravidão, como por “ser” filho de ex-escravo.  Para que não se ande em circulos, retomando trabalhados que já foram feitos sobre escritores brancos que falam sobre negros, cita-se Eduardo de Assis Duarte em Literatura e Afro-descendência (2006)

Desde o período colonial, o trabalho dos afro-brasileiros se faz presente em praticamemente todos os campos da atividade artística, mas nem sempre obtendo o reconhecimento devido. No caso da literatura, essa produção sofre, ao longo do tempo, impedimentos vários á sua divulgação, a começar pela própria materializaçãoem livro. Quandonão ficou inédita ou se perdeu nas prateleiras dos arquivos, circulou muitas vezes de forma restrita, em pequenas edições ou suportes alternativos. Em outros casos, existe o apagamento deliberado dos vínculos autorais e, mesmo, textuais, com a etnicidade africana ou com os modos e condições de existência dos afro-brasileiros, em função do processo de miscigenação branqueadora que perpassa a trajetória desta população. (p. 02).

            Como pode-se notar, os negros foram relegados a segundo plano, como se da terra brasileira não pertencessem e estivessem aqui como entrusos, descartáveis.

 4.   A DIGRESSÃO COM INTENÇÃO

            A intenção dos portugueses que aqui chegaram, segundo a história que conhecemos, era chegar até a India em busca por especiarias, tais como gengibre, cravo, canela, pimenta entre outras.  Por um erro de navegação a esquadra de Pedro Alvares Cabral acabou atracando no Brasil. Portugal viu então no novo continente a possibilidade de comércio lucrativo, através da extração de pau-brasil, cuja tinta era comercializada na Europa. Nem mesmo o próprio habitante legítimo da terra, pode auto-nomear-se, até isso o europeu impôs ao nativo:

Esta identidade foi atribuída por Cristóvão Colombo aos habitantes do território posteriormente conhecido como América. Acreditando haver chegado nas Índias Orientais, percorrendo rotas marítimas pelo Ocidente, Colombo ao deparar-se com os habitantes das terras atingidas passa a chamar-lhes indistintamente índios, tornado-se então (índio) uma classificação homogeneizante, pois engloba em uma única categoria culturas muito diferentes (CALEFFI, 2003 p. 176)

            Desde o ínicio tutelados pela coroa, os índios foram os primeiros a serem explorados, através de escambo que recebiam dos colonizadores, sendo sucedidos no quadro de escravidão pelos negros que foram arrancados do seio de sua pátria, para aqui servir e ajudar a construir uma nação.  Catherine Coquery-Vidrovitch, nos conta como foi rápida a aceitação da escravidão negra, antes mesmo de nosso continente ser descoberto

Mas os primórdios da escravidão negra foram elaborados bem antes, na costa da África, desde o início da descoberta portuguesa. Para isso, o laboratório de experimentação foi uma ilha deserta, ocupada e colonizada pelos portugueses já nos anos 1470: São Tomé, ao fundo do golfo da Guiné. Foi ali que se sistematizou a prática que fazia do negro não mais um homem, e sim um instrumento de trabalho (2004. p. 752)

            O indio conseguiu se libertar do fardo de ser escravo em 1570, através de decreto de D. Sebastião, rei de Portugal.  Mas os negros não tiveram a mesma sorte.  No Brasil, somente em 13 de maio de 1888, é que esse povo finalmente pode ter o privilégio de se tornar livre e principalmente humano, porque até então, foram tratados como animais. Volta-se na história, para explicar-se que um grupo étnico, não se constrói sem um passado, que os identifica como tal.

No âmbito desta reflexão, podemos perceber a memória como um acervo de lembranças que nos garante identificação no universo de um emaranhado infinito de lembranças possíveis: em outras palavras, registros resgatados como lembranças dentre outros que foram esquecidos (...) A própria experiência de cultivar a memória é a identificação do sujeito da memória consigo mesmo. (MOURA, 2005 p. 81).

            Continuando nesta reflexão necessária, questiona-se: na literatura do século XXI, o indio e o negro podem agora se expressar adequadamente, não apenas como um ser “arranjado” provisoriamente para ser um herói nacional? Ou simplesmente como um ser “inexistente”, transparente, sem identidade?

5.  CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Embora estejamos em pleno século XXI ,  o índio ainda continua tutelado pelo Governo Brasileiro e o negro continua lutando para conseguir seu espaço na sociedade. Poderia-se terminar esse ensaio aqui. Seria mais um trabalho sobre índios e negros sem maiores envolvimentos,  e com a mesma postura de muitos outros que escreveram sobre esse povo. Entretanto, como descendente de um grupo étnico europeu (mesmo sendo este miscigenado), nos importamos com os problemas de outros grupos periféricos. Afinal somos brasileiros e provavelmente carregamos gens indigenas e africanos, o que nos causa orgulho de assim sermos constituidos.

O que acontece entre nós é que os nós dramáticos desses encontros e desencontros parecem se erguer das páginas de cinco séculos de história, recolocando sempre em questão o próprio delineamento de nós mesmos (Moura, 2005 p. 84).

            A literatura escrita por indígenas , assim como por africanos, são fenômenos recentes na historicidade brasileira.  Muitos foram os brancos que escreveram e escrevem sobre índios e negros, como se pode notar no texto de Eduardo de Assis Duarte “Literatura e afro-descendência”, cujas discussões nos dão uma idéia da extensão da problematização. O autor volta no passado literário e fala tanto de escritores brancos, quanto afro-descendentes,  se apoiando em vários estudiosos da africanidade. No caso dos indios há vários autores que falam sobre eles, mas sempre com a ciência “antropologia” atrelada. A literatura indígena é muito mais recente que a africana.  Por se tratar de tradição oral e por não conviverem efetivamente no meio da sociedade “branca”, e sim aldeados, os indigenas ainda enfrentam certa oposição no que concerne a criação literária.

            Para nossa sociedade, índio escrevendo ainda é novidade. Apesar de no Brasil haver inúmeros índios que já frequentaram Universidades e muitas personalidades que povoaram o cenário da política, o conhecimento sobre esses povos ainda continua o mínimo. Como descreve bem Caleffi em seu texto

O senso comum do cidadão brasileiro entende que as culturas nativas para serem respeitadas e vistas como tal devem ainda hoje configurar-se da mesma forma que estavam quando da chegada dos europeus aqui, ou seja, viver sempre no meio da selva, andar nu, e mais todo o arcabouço imaginário de representações sobre os povos indígenas que encontramos nas mais distintas fontes, e que pretende tratar estas culturas não como processuais, mas como algo cristalizado no tempo, ignorando todo o longo período de dominação colonial e marginalização por parte dos diferentes segmentos sociais sofrido por estes povos. (2003 p. 194).

            Subentende-se então que, apesar da globalização, da conquista dos cosmos pelo homem e de toda a inovação de uma conduta comportamental da sociedade, ainda vive-se em um sistema de privilégios para alguns e de sortilégios para outros. Quem sabe as gerações futuras enxerguem que as culturas, sempre deixam suas marcas, sejam positivas ou negativas, dependendo da perspectiva que se lança sobre elas. Que ser brasileiro,  e/ europeu; e/ indio;  e/ negro, pode ser a chave para muitos olhares e para muitos aprendizados, no sentido de valorizar “o outro”, como “o próprio”, não separado, mas como ele mesmo, pois geneticamente falando, todos somos um, na medida em que as gerações miscigenaram-se e o ideal da raça pura sonhada por Hitler por exemplo, não vingou.

            Deixo você caro leitor com a seguinte frase de Vidrovitch “Será necessário ainda muito tempo para que o senso comum se livre dessa longa e pesada herança, se é que esse trabalho se concluirá um dia” (2004 p. 785).

  REFERÊNCIAS

ALENCAR, José de. Iracema.  Lenda do Ceará. 36ª ed. São Paulo: Ática, 2000.

 ________________ O demônio familiar. Comédia em 4 atos. Campinas. SP: Editora da UNICAMP, 2003.

 _______________ . O Guarani. Romance brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1961.

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 BELLEY, Sergio Luiz Prado. Monstros, índios e canibais: ensaios de critica literária e cultural. Florianópolis: Insular, 2000.

 BERND, Zilá. Literatura e Identidade Nacional. 2ª ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.

 CALEFFI, Paula. “O que é ser índio hoje?” a questão indígena da América Latina / Brasil no início do século XXI.  In SIDEKUM, Antônio (org). Alteridade e multulturalismo. Ijuí, Rio Grande do Sul: UNIJUI, 2003.

 DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura e Afro-descendência. Disponível em: http://www.acaocomunitaria.org.br/discussoes_tematicas/literatura_e_afro_descendencia.pdf.  Acesso em 25 de junho de 2007.

GUIMARÃES, Maria. A África nos genes do povo brasileiro. Ciência : Genética. Revista pesquisa Fapesp. 134 – Abril 2007- Edição 134.

MAGGIE, Yvone ; REZENDE Claudia Barcellos. Raça como retórica a construção da diferença. Rio de Janeiro:  Civilização Brasileira, : 2002.

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http://pt.wikipedia.org/wiki/I_Juca_Pirama


[1] Tradução feita por mim, do espanhol para o português


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