Theatros da locução, a lexicografia bilingue na obra de Rafael Bluteau



«Theatros da locução», a lexicografia bilingue na obra de Rafael Bluteau 

  1. 1.1     Introdução

A intenção principal deste ensaio é estabelecer uma linha guia geral sobre o Vocabulario Portuguez e Latino de Rafael Bluteau.

Eu poderia ter escolhido qualquer outra obra lexicográfica, mas a razão desta escolha é o facto de eu, como Bluteau, não sou português mas quereria dar ao Portugal o meu contributo.

O autor de Londres defendeu e elevou uma cultura que, na origem, não foi sua e o seu contributo à lexicografia bilingue portuguesa é ainda lembrado e considerado indispensável.

Depois um perfil biográfico sobre a vida de Bluteau e a sua relação com Portugal, descreverei as características e novidades principais do seu Vocabulario e analisarei a estrutura desta obra; o último capítulo tratar-se-á de uma análise do prólogo da obra do teatino, ou seja um texto que acompanha o Vocabulario, em que defende as suas teorias.

1.2 Quem foi Rafael Bluteau?

O autor do Vocabulario Portuguez e Latino nasceu em Londres no ano 1638; de família francesa, Bluteau frequentou as Universidades de Roma, Verona e Paris e doutorou-se na primeira cidade em ciências teológicas, beneficiando de uma enriquecedora experiência de multilinguismo. A sua natureza cosmopolita foi um grande ajudo em Portugal; enviado aos 30 anos, em 1668, para Lisboa, com objetivo de cimentar o prestígio da Ordem em Portugal, Bluteau aprendeu depressa a língua portuguesa e começou a distinguir-se como orador.

Uniu-se ao movimento académico patrocinado pelo conde da Ericeira, D. Francisco Xavier de Menezes. Considerado espião ao serviço dos interesses franceses, retirou-se em França em 1697,  depois da morte da Rainha Dona Maria Francisca de Savóia, a sua protetora; regressou em Portugal em 1704, recebendo o ordem de recolher-se ao convento de Alcobaça, devido às suspeitas anteriores.

Em 1710 com a fundação da Academia Real de História (ele foi um dos membros fundadores), todas as suas obras foram impressas e João V nomeou Bluteau académico do número e garantiu-lhe o regresso à corte.

Destacou-se come divulgador na casa do conte da Ericeira durante as Conferências Discretas e Eruditas; uma das suas discussões mais famosa foi aquela sobre a introdução de neologismos na língua, embora não tenha suscitado interesse suficiente para a continuidade deste estudo filológico, destruindo, assim, «o seu sonho secreto de reproduzir em Portugal uma instituição semelhante à Academia Francesa».

  1. O Vocabulario Portuguez e Latino
A publicação do Vocabulario Portuguez e Latino (1712-1728) introduziu na linguística e lexicografia portuguesa inovações, que garantiram à obra uma grande importância.Composto por oito tomos in-fólio e dois volumes de suplemento, o Vocabulario apresenta-se em cerca de 7000 páginas, enquanto os vocabulários precedentes (Dictionarium Lusitanicolatinum de Agostinho Barbosa e o Thesouro da Lingoa Portuguesa de Bento Pereira) foram de dimensões menores.O traço que caracteriza o trabalho do teatino é a presença de artigos que tratam de vários aspetos da realidade histórica, geográfica, científica, literária e religiosa. Trata-se, portanto, de uma obra inovadora que está no ponto de partida dá dicionaristica moderna portuguesa. E' importante lembrar que Bluteau, apesar de se ocupar de vários tópicos, considera a sua obra um dicionário de língua e que, os dicionários deste tipo
 
[...]se achaõ todas as disciplinas com os termos, de que usaõ, alfabeticamente explanadas; apparecem descripçoens das plantas, dos animaes, dos insectos, dos Mineraes, dos metaes, das pedras brutas, e finais, das drogas naturaes, e artificiaes; nestes mesmos Theatros da locuçaõ, e da erudiçaõ fazem sue papel a Theologia Moral, a Escolastica, a Jurisprudencia Civil, e Canonica, a Geometria, a Geografia, a Hydrografia, a Astronomia, a Gnomonica, a Musica, a Optica, a Catoptrica, a Dioptrica, a Perspectiva, a Pintura, a Escultura, a Arquitectura civil, e militar, e Statica, Tactica, e Pyrothectica[...]    Todavia, apesar de ser um dicionário de língua, o Vocabulario pode ser considerado um dicionário universal devido à sua grandeza do conteúdo (inclui também topónimos e mitónomos).A recolha do material para o Vocabulario começou em 1680 e a composição da obra ocupou 50 anos da vida de Bluteau. Não sabemos decerto qual foram todas as obras que forneceram material ao teatino, mas podemos identificar alguns dos títulos que o influenciaram, ou seja o Tesoro da lengua castellana e española  (Cobarruvias, 1611), o Vocabolario degli Accademici della Crusca (1612), Le grand dictionaire historique, ou la melange curieux de l'historie sacreé et profane (Luis Moreri, 1671), o Dictionaire Universel (Furetière 1690) e o Dictionnaire de l'Académie Françoise (1694).A intenção de Bluteau, como escreveu na dedicatória a D. João V, foi de fazer justiça «à grandeza da língua portuguesa, de Portugal e, sobretudo, do seu rei, objetivos que conferem ao Vocabulario uma dúplice função política», porque «além de contribuir para a afirmação do português no panorama linguístico europeu, concorre para a construção da imagem de um monarca ilustrado e mecenas». Por isso a corte agradeceu a ideia de um dicionário com estas intenções, além disso, não houve, em Portugal, obras que pudessem ser comparadas com os grandes trabalhos lexicográficos estrangeiros.Apesar do seu titulo, o Vocabulario Portuguez e Latino, apresenta-se come uma obra entre a lexicografia bilingue e monolingue, porque o objetivo de Bluteau foi demonstrar que a língua portuguesa podia igualar o latim, reduzindo as informações latinas nos artigos e nas entradas.O tipo de nomenclatura é inspirado pelos dicionários de  Barbosa e Pereira, recolhendo também os termos introduzidos em Português pelas viagens, pelos contactos com outras culturas, tratados técnicos e termos da oralidade portuguesa.João Paulo Silvestre do Centro de Linguística de Lisboa fez uma comparação entre o Dictionarium, o Thesouro e o Vocabulario para observar a integração, na obra de Bluteau, da tradição anterior; ele relacionou as diferentes entradas do verbo “debilitar”:No  Dictionarium Lusitanicolatinum                                  Debilitar, i. enfraquecer. Debilito, as, pen. Corr.                                      Frango, is, fregi, fractum.  Dolor me debilitat, Cic. pro Rab. Posth Vocem fletu debilitare, Cic. pro Caelio.                                           Frangi dolore, vel metu, Cicero 2. Tuscul.     & lib. 1. Offic.     Labefacio, labefacis, p.c. Lucret. Lib. 4.
Cousa debilitada, i. enfraquecida, ou fraca. Debilitatus,a, um, p.p. Particip.     Fractus, a, um. Particip.     Debilis, & hoc debile, p.c. adiect.     Virtus debilitata, animus fractus, Cic.     Post reditum ad Quirites.     Corpus debilitatum, Cic. pro Sextio.     Fractum, & debilitatum Graeciae nome,     Cic pro Flacco. Cic. Planco lib. 10. epist. 3. Frangere aliquem ingenio, & industria.                                               No  Thesouro da Lingoa Portuguesa: Debilitar. Debilito, as. Labefacto, as. Enervo, as. Debilmente. Fragiliter Debilitaçam. Debilitas, atis. Fragilitas, atis. Debilitada cousa. Debilis, & le. Debilitatus, a, um. Debil cousa. Debilis, & le. Fragilis, & le.

No Vocabulario Portuguez e Latino: DEBIL. Fraco de forças. Debilis, le, is. Cic. Saude debil. Infirma valetudo. Cic. Vos debil. Vox exigua. Virgil Vox pusilla. Quintil. Vox languens. Cic.       E como pode, a Debil voz levanta. Malaca conquist. Livro 12. oit. 25. Debil. Dizse de outras cousas naturaes, & artefactas. Os que tem muy Debil uso de razaõ, como os negros boçaes. Promptuar. Mor. 216.       Governando toda a aurea Chersoneso       Lhe defendeo cò o braço o Debil muro.       Camoens, Elegia 4. Estanc. 5.   DEBILIDADE. Fraqueza do corpo, ou do espirito. Debilidade do corpo; Corporis debilitas, atis. Fem. Ainda que lhe pedia cama a Debilidade do corpo. Lemos, Cercos de Malaca, pag. 56. vers.      Debilidade do espirito. Animi infirmitas, ou debilitas. Cic. Remedio efficas à nossa Debelidade. Vieira, Tom. 5. 152.   DEBILITAÇAM, ou debelidade. Falta de forças. Imbecilitas, infirmitas, atis. Cic.   DEBILITADO. Eufraquecido. Debilitatus, enervatus, fractus, a, um. Cic. Alguma cousa debilitado. Subdebilitatus, a, um. Cic. Esta taõ Debilitado, & velho. Agiol. Tusit. Tom. 1.    Debilitado. Abatido. Attenuado. Monarchia debilitada pela cötinuaçaõ das guerras. Imperium diuturno bello attenuatum, assi como dis Cesar, Legi, praelijs attenuata. E vendo Debilitada a Monarchia. Duarte, Rib. Juizo Hist. pag. 248. se o estado Debilitado podera sustëtar huma guerra dilatada. Azevedo Apolog. Disc. pag. 71.   DEBILITAR. Enfraquecer. Debilitare. Cic.    Debilitar. Abater. Diminuir. Debilitare. Cic.    Debilitar. Abater. Diminuir o poder &c. Debilitar huma Monarchia. Attenuare vires Imperij, assi como dis Tito Livio, Attenuare praesidij vires. Debilitar muito o povo. Multò infirmiorem, humiliorëmque populum redigere, (go, egi, actum.) Caes. Debilitar hum partido. Factionem debilitare. Cic.   DEBILMENTE. Com pouca força. Debiliter. Cic.

Barbosa limita-se a registar o verbo e o seu particípio, enquanto Pereira fornece muitas entradas.O Thesouro, de facto, foi o exemplo que Bluteau seguiu, embora a sua obra tenha um numero maior de entradas. Os exemplos anteriores foram só uma linha guia para o teatino, que adicionou muitos neologismos e novas entradas como topónimos, os quais ocupam uma boa parte do Vocabulario.A função do Vocabulario, devido à presença de artigos eruditos, não é só aquela de pesquisa, mas é também útil na esfera da educação e formação. Citando as palavras do Conte da Ericeira:

 

Neste Vocabulario se acha a cada folha uma flor, e hum fruto, que come se vê no terreno felice e no clima benigno, sem artificio nasce fragante, e sazonado; e por esta causa repito sempre, que os outros Diccionarios servem só para buscar, e este também para se ler, instruindo, deleitando[...]    
  1. Prologo do Vocabulario e a defesa lingua
O prologo do Vocabulario é considerado uma das partes mais importantes da obra de Bluteau, porque responde à necessidade do autor de defender o seu trabalho, rebatendo as criticas através técnicas discursivas adequadas, segundo a origem da critica: dividiu o prólogo em alíneas, endereçada cada uma a um diferente destinatário. Apesar de ser dividido, o texto deve ser leito como um conjunto, uma inteira unidade textual; a separação, embora seja um modo para estabelecer uma empatia com o leitor, é um pretexto para apresentar os vários tópicos e para fornecer uma guia indispensável a leitura do Vocabulario.Este texto não é só uma maneira para justificar as suas escolhas (por exemplo os neologismos ou tecnolectos), mas também para defender o vernáculo português, afirmando a sua autonomia perante o latim.Descreverei, agora, as varias razões que Bluteau deu aos seus leitores:  

3.1  Ao leitor benevolo.
Com modéstia tenta atrair a atenção e interesse do leitor, desculpando-se pelos erros que poderia encontrar. Nesta breve captatio benevolentiae, o autor cria uma atmosfera de amigável empatia.

3.2  Ao leitor malevolo.
Bluteau desqualifica o leitor malévolo, considerado «coração mal affecto he Fortaleza inexpugnavel à razão», por meio da dicotomia entre benevolência e malevolência.

3.3  Ao leitor impaciente.
Nesta sequência Bluteau afirma que a sua obra complexa exigiu muito tempo para ser terminada, porque têm muitos temas que foram analisados com muita paciência. O autor escreve que «cada palavra desta obra he materia para hum tratado, & cada tratado pode ser substancia de muitos livros».

3.4  Ao leitor portugues.
Obviamente uma secção é dirigida aos falantes da língua portuguesa. Sendo um estrangeiro de natureza que escreve uma obra sobre esta língua, Bluteau deve provar, ao mesmo tempo, a sua capacidade lexicográfica e linguística. Para defender-se, afirma que um lexicográfico não deve ser obrigatoriamente português, porque o seu trabalho é feito principalmente da recolha de obras de outros autores. Enfim, afirma que «todo o Portuguez, que naceo de quarenta annos a estaparte, tem menos annos de Portugal, do que eu».

3.5  Ao leitor estrangeiro
Este tipo de leitor apresenta a intenção do teatino de dar à língua portuguesa a sua independência e o seu valor linguístico. Trata-se de uma secção importante, que ocupa um quarto de todo o prólogo, em que Bluteau assinala a extensão da língua, o seu grande numero de vocábulos e todos os seus traços distintivos.

3.6  Ao leitor douto.
Nesta parte o autor defende a sua obra das críticas dos leitores doutos que consideram o dicionário um livro elementar, ligado ao ensino. Apresenta o Vocabulario na sua monumentalidade, uma qualidade que o afasta da concepção tradicional. A sua obra deve ser considerada erudita.

3.7  Ao leitor indouto.
Bluteau mostra os benefícios que um leitor indouto pode obter lendo a sua obra, fornecendo também uma linha guia para a interpretação do Vocabulario. 

3.8  Ao leitor pseudocritico.
Nesta parte do prólogo, o autor defende-se das criticas de autoridade, afirmando que o objetivo não é de melhorar a sua obra, mas só de desacreditar-la. Ele afirma também que a maioria dos críticos não têm autoridade suficiente. Esta é uma secção muito importante porque Bluteau analisa as circunstancias da redacção e producção que alteram o produto final.

3.9  Ao leitor impertinente.
A alínea endereçada ao leitor impertinente, defende a natureza do titulo da obra, feito por 57 epítetos, que, segundo o autor, são necessários para «declarar a substancia» do conteúdo.Os epítetos escolhidos são compostos «Grego-Lusitanicos»,e os seus significados podem ser difíceis de compreender, portanto Bluteau descodifica-os ao leitor impertinente. Depois, para não ter acusações sobre a pouca importância do latim, afirma que esta língua é morta e não pode servir à natural evolução da língua portuguesa. 

3.10 Ao leitor mofino.
Este tipo de leitor queixa-se do elevado preço do Vocabulario; Bluteau, em sua defesa, escreve que o saber não tem preço e que ao autor não importa uma compensação em dinheiro. 

Bibliografia

BLUTEAU, Rafael, Vocabulario Portuguez, e Latino, Aulico, Anatomico, Architectonico, Bellico, Botanico, Brasilico, Comico, Critico, Chimico, Dogmatico, Dialectico, Dendrologico, Ecclesiastico, Etymologico, Economico, Florifero, Forense, Fructifero, Geographico, Geometrico, Gnomonico, Hydrographico, Homonymico, Hierologico, Ithyologico, Indico, Isagogico, Laconico, Liturgico, Lithologico, Medico, Musico, Meteorologico, Nautico, Numerico, Neoterico, Ortographico, Optico, Ornithologico, Poetico, Philologico, Pharmaceutico, Quidditativo, Qualitativo, Quantitativo, Rhetorico, Rustico, Romano; Symbolico, Synonimico, Syllabico, Theologico, Terapteutico, Technologico, Uranologico, Xenophonico, Zoologico. Autorizado com exemplos dos melhores escritores portuguezes, e latinos, e offerecido a El Rey de Portvgval, D. Joaõ V. pelo Padre D Raphael Bluteau Clerigo Regular, Doutor na Sagrada Theologia, Prêgador da Raynha de Inglaterra, Henriqueta Maria de França, & Calificador no sagrado Tribunal da Inquisiçaõ de Lisboa. Coimbra No Collegio das Artes da Companhia de Jesu Anno de 1712. Com todas as Licenças necessarias. [Transcrevemos na íntegra a página de rosto do primeiro tomo. Os primeiros volumes

foram publicados em Coimbra, no Colégio das Artes da Companhia de Jesus: I (1712); II (1712); III (1713);

IV (1713). Os restantes imprimiram-se em Lisboa, em diferentes casas tipográficas: na Oficina de Pascoal da

Silva: V (1716), VI (1720), VII (1720), VIII (1721); na Oficina de José António

 

SILVESTRE, João Paulo, (2001) «Argumentação no prólogo do Vocabulario Portuguez, e Latino: a defesa da obra e da

língua portuguesa», in Luís Machado de Abreu e António Ribeiro Miranda, O Discurso em Análise – Actas do 7º Encontro

de Estudos Portugueses, Aveiro, Universidade de Aveiro, pp. 87-101. ISBN 972-789-048-2.

 

SILVESTRE, João Paulo, O Vocabulario Portuguez, e Latino: principais características da obra lexicográfica de Rafael Bluteau. Comunicação apresentada no encontro Dicionários da Língua Portuguesa - Património e renovação, Cursos da Arrábida, 20a 2 de Agosto de 2001

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