MINHA MORTE



São interessantes as fases da vida por que passamos. Quando eu era criança, morava bem próximo ao cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte. Ali a gente andava de carrinho de rolimãs, ali a gente caçava calangos com bodoque. Era melhor no tanque de ossos, tinha mais. Quanto aparecia um enterro de rico, a gente ia ver aquele monte de gente chique com cara triste ou grave, muitas mulheres chorando – eu tinha dó.

Mas o dia de finados era uma festa. A Rua Bonfim apinhada de carros em direção à praça do cemitério, na outra pista a linha de bondes, todos lotados. Eu e alguns amigos gostávamos de pular do estribo, depois pular de volta, sempre fugindo do cobrador. Numa dessas, pulei de mau jeito e fui parar direto no parachoques de um buikão preto que freou a tempo, mas me jogou longe. Nada de mais: 21 dias com um colete de gesso para consertar a clavícula.

Ali pelos dez anos de idade, o Dia de Finados passou a ser fonte de renda para nós. Eu vendia velas, outros vendiam flores. E os filhos dos coveiros, que também eram da turma, pegavam mais no pesado, engraxavam sepulturas. Até que um dia o Toninho, coitado, engraxando um mausoléu de família tradicional, teve a cabeça rachada por uma pedra de mármore que se soltou. Que imagem: ver aquele menino descalço e rôto, morto em cima de uma  sepultura tão rica, com os miolos aparecendo.

Graças ao bom Deus – naquela época eu acreditava piamente na sua existência – papai ganhou uma indenização no emprego antigo e pôde dar entrada num apartamento simples, porém decente, no bairro da Serra. Minha mãe rezou sei lá quantos terços por me ver afastado daquela vizinhança.

A família dela era grande, de vez em quando alguém morria e eu ia lá cumprir o ritual: velório, enterro, missa de sétimo dia. Até que minha avó morreu e uma pessoa desmiolada pediu para que todos os netos se enfileirassem carregando o caixão, o que seria lindo, ela queria tirar uma fotografia.

Pensando nisso e no fato de que eu não era mais católico, não sabia se Deus existia ou não, não sentia a sua presença e até hoje não sei o que poderia ser, resolvi não frequentar mais velórios, nem enterros, nem missas de sétimo dia, fosse lá de quem fosse. Até porque não me sentia bem nessas ocasiões.

Morreu minha mãe, não fui. Morreu meu pai, não fui. Não queria gravar a imagem deles mortos. Como não acredito em vidas futuras, para mim vale a imagem de quem estava vivo. Também não fui às cerimônias de grandes amigos meus que nos deixaram mais cedo.

__ Você tem que ir, marido. É seu amigo, precisa dar um abraço na família.

__ Não tenho que ir, porra nenhuma. Esse verbo “ter que” não faz parte do meu dicionário, embora muitas vezes eu tenha que ceder. Mas não nessa!

Em vez de ir ao enterro, sempre preferi fazer um texto pretensiosamente bonito para quem ficou. Alguns me agradeceram porque sentiram que não era da boca pra fora.

O certo é que a morte, embora tantas vezes presenciada, não fez parte das minhas preocupações durante quase toda a minha vida. Eu nem entendia direito os escritores que teimavam em escrever sobre a morte.

Até que um dia um médico virou pra mim e disse assim:

__ A idade faz mal à saúde.

Nunca essa frase me soou tão verdadeira como no dia, agora recentemente, em que eu descobri que era diabético. Foi logo depois da morte do meu pai, que também sofria do mesmo mal.

Minha vida sempre foi boa, tenho um transtorno bipolar bem controlado e a bipolaridade me agraciou com a ousadia, o espírito empreendedor, o viver destemido, o otimismo, a criatividade. Estava tudo ótimo, mas a diabetes é o seguinte...

Eu sempre disse que não queria durar, queria viver. A morte ideal, na minha concepção, é uma queda de avião. PUM. Tá resolvido. O sofrimento dura, no máximo, alguns minutos, a viúva recebe uma boa indenização, melhor impossível. Pode ser outro tipo de acidente também, mas que seja rápido.

Diabetes é que não. Essa mata aos pouquinhos: um dia amputa uma perna, outro dia a cegueira, restrições mil, estou fora. Mas ainda não sei como ficar de fora, porque o suicídio está fora de questão.

Eu quero viver bem, comendo o que for gostoso, bebendo quando der vontade, no convívio dos amigos, da minha mulher, nossos cinco filhos e seis netos. Por favor, não me digam:

__ Você não pode comer isso, pai.

__ Você não pode beber, meu amor.

__ Sua glicose está muito alta, senhor Diniz. O senhor tem que tomar mais cuidado.

Eu não “tenho que” porra nenhuma. Já assinei o documento de doação do meu corpo para o Departamento de Anatomia da UERJ e agora estou buscando o modelo sobre o qual li na Veja. A gente assina um documento proibindo que prolonguem a nossa vida além da vida. Se passar 15 dias no CTI e os médicos não derem jeito, que desliguem aqueles aparelhos todos. Palmas para o Além.

Depois da morte do meu pai, em maio passado, e deste diagnóstico de diabetes, doença que impõe restrições que definitivamente eu não estou disposto a fazer, passei a encarar a morte como ela é: irreversível.

Por sorte e determinação, vivi intensamente até aqui. Tá bom. Posso ir. De preferência, de avião.


Autor: Marcelo Diniz


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