As classes subalternas como sujeitos passivos de um sistema capitalista excludente: a não efetivação do princípio da igualdade



As classes subalternas como sujeitos passivos de um sistema capitalista excludente:

 a não efetivação do princípio da igualdade

                  Karolinne França Mendes

                 Sergianny Pereira da Silva*

Sumário: 1 Introdução; 2 A evolução da ideologia das penas e o surgimento do cárcere diante do industrialismo; 3 O cárcere e a finalidade educativa da pena; 4 A criminalidade; 5 O cárcere: uma aberração; 6 O papel da mídia; 7 Conclusão. Referências.

RESUMO

Apresenta-se nesta exposição considerações acerca da atuação do sistema capitalista e seus reflexos sobre as classes subalternas, que se tratariam de sujeitos passivos deste sistema excludente, embora seja verificada a existência do princípio da igualdade garantido por um texto constitucional. Busca-se analisar melhor a questão do poder e da submissão observada entre as classes sociais, junto com a falácia da função declarada do atual Sistema Penal, que mantém a defesa de interesses individuais, revelando-se um sistema estigmatizante quando se refere a determinados sujeitos, tidos como “inimigos” da sociedade.

PALAVRAS- CHAVES

Classes subalternas. Direito Penal. Sistema capitalista.

 

1 INTRODUÇÃO

Com o desenvolvimento do sistema capitalista surgiram diversas discussões a respeito das conseqüências que este trouxe para o seio da sociedade, principalmente no que se refere à intensa desigualdade social que o mesmo reforça entre as classes sociais.

Esta desigualdade acaba por se refletir na adoção de um sistema punitivo aplicado da mesma forma desigualmente, apesar da existência da garantia de igualdade descrita no texto constitucional.

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*Paper apresentado à disciplina de Teoria do Direito Penal, ministrada pela professora Carolina Pecegueiro, na UNDB, pelas alunas do 3° período vespertino do Curso de Direito. Email: [email protected] e [email protected].   

Neste sentido, intenta-se expor no presente trabalho a relação que o sistema punitivo adotado pelo atual sistema capitalista mantém entre a criminalidade e a pobreza, o que revela uma forte estigmatização dos indivíduos dos estratos sociais mais inferiores, identificados como classes subalternas e visíveis alvos do cárcere.

Cabe apontar que a metodologia empregada no desenvolvimento desta exposição se orienta por uma extensa consulta documental e bibliográfica efetuada no sentido de identificar a construção da periculosidade das classes pobres da sociedade capitalista.

 

2 A EVOLUÇÃO DAS PENAS E O SURGIMENTO DO CÁRCERE DIANTE DA INDUSTRIALIZAÇÃO

 

A história registra que, desde o seu surgimento, as punições carregam várias discrepâncias observadas no que se refere, por exemplo, a sua função declarada pelo discurso oficial e a sua real função praticada, mas que não é confessada. Vertentes teóricas das mais variadas buscam, diante disto, validar através da legitimação a utilização do direito punitivo e das punições. A pena, então, encontraria justificativa para sua existência na função que lhe é atribuída e nos fins que a mesma almeja. De forma geral, a pena exerceria uma função preventiva e intimidadora, seu fim seria a prevenção social, a retribuição ao dano causado pelo rompimento do contrato social mediante o crime, além de promover a ressocialização e/ou neutralização do chamado delinqüente.1

Porém, as penas se moldam em conformidade com o contexto de cada época. São os interesses sócio- econômicos e políticos de cada momento histórico que determinam as instituições, e estas concebem, por sua vez, as relações socais.2 Da mesma forma, o pensamento penal se relaciona com a estrutura social3 vigente e retira das relações predominantes o fundamento de todo o seu discurso declarado.

Esta discussão retoma ao conceito de criminoso, permeado pela ideia de inimigo, que não seria mais do que uma construção da Dogmática penal que busca objetivação através de políticas  criminais  de  combate  ao  “mal”  que  assola  a  sociedade,  a  criminalidade.  E  como

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1 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança Jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 56-58.

2GUIMARÃES, Claudio A. G. Funções da pena privativa de liberdade no sistema penal capitalista. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 99-100.

3 ZAFFARONI, E. Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. vol. 1, parte geral. 7. ed. rev. e atual.São Paulo : Revista dos Tribunais, 2008. p.54.

construção este conceito demonstra uma considerável dinamicidade, observada ao se analisar os

potenciais alvos do Sistema Penal registrados na História.

Sob a justificativa de defesa social, muitas punições que acomodavam a tortura, o suplício e o castigo corporal ganharam legitimação e validaram a repressão penal aos mais variados “inimigos” criados na história humana. Na Idade Média, a exemplo, perseguiam-se as mulheres a fim de combater a bruxaria e Satã. Na Revolução Mercantil, o inimigo ficou por conta dos “não- civilizados”, com a Reforma Protestante, o selvagem fora substituído pelos hereges e reformistas. A política neo-colonizadora do século XVIII trouxe o escravo e a Revolução Industrial, os “indesejáveis” do espaço urbano. Houve, ainda, o combate à droga liderado mundialmente pelos Estados Unidos, além da atual tendência mundial no combate ao estrangeiro imigrante4. Assim se demonstra que as punições e seus possíveis alvos sempre foram orientados pelo contexto histórico no qual estão inseridos e pelo discurso oficial determinado por quem tem o poder de fazê-lo. 

Com a passagem do sistema feudal para o capitalista, profundas mudanças foram observadas devido o aumento da população do espaço urbano, o que originou um grande excedente populacional não absorvido pela produção industrial. Porém, como os espetáculos de execuções públicas, antes amplamente aceitos, deixam de ser tolerados, notou-se a necessidade de criar, então, outros mecanismos que absorvessem, por sua vez, esse contingente populacional ocioso. Surgiu, então, o encarceramento nas prisões5. E é no cárcere, atual mecanismo de controle social, que se pretende focar as seguintes exposições deste trabalho.  

3 O CÁRCERE E A FINALIDADE EDUCATIVA DA PENA

De forma gradual, as práticas punitivas foram se tornando mais “virtuosas” através do abandono do castigo corporal pautado no suplício. O enclausuramento, encontrando legitimidade na sua função reeducativa e ressocializadora, assume, então, o objetivo de atingir a liberdade do indivíduo, não o seu corpo, que se trataria agora de um mero instrumento6.

Mas, a realidade carcerária revela que estes “institutos de detenção produzem efeitos contrários à reeducação e à reinserção do condenado, e favoráveis à sua estável inserção na população criminosa; a vida no cárcere, como universo disciplinar, tem um caráter repressivo e  

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4 ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal. Tradução: Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007. (Coleção Pensamento Criminológico; 14). p. 29-87.

5 Id. Ibdem. p. 44

6 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete 25. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 14

uniformizante “7, não muito distante do padrão industrial difundido. Enquanto no ideal educativo se suscita a individualidade e o auto-respeito dos indivíduos, no processo de detenção o que se observa é o oposto disto, uma vez que o sujeito é privado de símbolos externos e da própria autonomia8enquanto sujeito.   

Neste sentido, muita discussão tem sido promovida a partir da função e dos fins reais do cárcere, criado a partir das chamadas Casas de Correção que recolhiam a parcela excluída da população9, devido o seu vertiginoso crescimento. Porém, comete um grande engano quem acredita que os problemas enfrentados pelo cárcere se resumem apenas a deturpação de sua função, pois envolve também a sua estruturação, uma vez que os sistemas carcerários revelam condições precárias de funcionamento e a incapacidade do Estado na organização e manutenção10 dos mesmos.    

          A privação da liberdade como maneira de punir o indivíduo surgiu apenas por volta do século XVIII, com o movimento iluminista que fizera surgir a valorização dos direitos subjetivos naturais de cada indivíduo. A ideia de uma sociedade formada a partir de um contrato ganhava força e com ela a necessidade de reparação dos danos a quem fosse prejudicado, junto com a punição ao indivíduo que violasse este contrato, fosse com o trabalho ou com a sua liberdade. Desta forma, observa-se que a relação cárcere- sociedade se apóia na exclusão, uma vez que o cárcere reproduz as características da sociedade vigente. Neste sentido, como o capitalismo tem suas relações, pautadas no egoísmo e na violência, os seus valores são refletidos no tratamento orientado aos presos, que são submetidos à exploração e a submissão por serem os indivíduos mais fracos da sociedade.11

Como fica mais nítido, cada sociedade adota e re-descobre punições que estão intrinsecamente relacionadas ao sistema de produção por elas reconhecido, com o sistema capitalista não fora diferente. Até meados dos séculos XV e XVI, o Sistema Penal fora utilizado para conter o crescimento populacional e, com o declínio do sistema feudal, se viu entrelaçado com a responsabilidade de defender a propriedade, interesse da incipiente burguesia, de possíveis delitos. Para isto, foram criadas leis mais rígidas que se dirigiam para as classes subalternas12, intensificando, assim, a repressão e a pobreza através do direito punitivo.

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7 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 3 ed.Rio de Janeiro:Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia,2002. p. 183-184.

8 Id. Ibdem. p. 184.

9 GUIMARÃES, Claudio A. G. Op. cit. p. 101.

10 SALLA, Fernando. As rebeliões nas prisões: novos significados a partir da experiência brasileira. In: Sociologia, Porto Alegre, ano 8, n° 16, jul/dez 2006, p, 277.

11 BARATTA. Alessandro. Op. cit. p. 186.

12 GUIMARÃES, Claudio A. G. Op. cit. p. 124-125

As penas aplicadas aos indivíduos pauperizados eram, em muito, baseadas na tortura e no castigo corporal. O valor da vida humana perdia a sua importância, uma vez que a mão de obra existente era abundante e, por ser composta por pobres, a vida destes indivíduos era avaliada conforme o seu desempenho no processo de produção adotado. As punições aos não- inseridos nos meios de produção eram, em geral, realizadas publicamente a fim de persuadir os demais a não cometerem o crime punido.13 Somente no período de expansão mercantilista que se iniciou o processo de abandono a estas formas de punições com suplício e eliminação em massa, devido a oposição do pensamento ilustrado e as dificuldades para suas realizações, pois era observado uma forte diminuição da mão de obra disponível. Foi, então, para criar novos mecanismos de controle social que surgiram inicialmente as chamadas Casas de Correção, as quais cabiam recolher os ociosos e delinquentes a fim de ensiná-los o trabalho segundo o molde capitalista e a disciplina da fábrica14 e, que mais tarde originariam o cárcere.

Assim observado, diante da necessidade, a pena mudou o seu foco do corpo para a liberdade do indivíduo, é neste momento que surge e se difunde, então a pena privativa de liberdade. Porém, cabe orientar o enfoque da presente exposição no sentido de melhor analisar as construções sociais que associam quase que involuntariamente a criminalidade com a pobreza.  

4 A CRIMINALIDADE     

 

A criminalidade encontrou, mediante várias escolas, muitas tentativas de explicação, perpassou pelo enfoque biopsicológico e pelo macrossociológico, até ser entendida como um bem “distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema sócio- econômico e conforme a desigualdade social entre os indivíduos”15. Fato que se observa em muitas teorias que tentam explicar a criminalidade, vinculando a mesma com as classes mais pobres da sociedade.        

Com a expansão do capitalismo e de sua visão, a miséria passa a ser vista como resultado dos vícios e da ociosidade dos pobres não integrados ao mercado produtor capitalista. Quando, na verdade, é o capital que gera a miséria e pela lógica que representa a sua existência, o capitalismo necessita da manutenção da pobreza.16 Não é novidade, pois, o fato de que o processo de industrialização atraiu milhares de pessoas dos campos para os centros urbanos que,

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13 Id. Ibdem. p. 125-126.

14 Id. Ibdem. p. 129-132.

15 BARATTA, Alessandro. Op. cit. p. 161.

16 COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro: Intertexto, 2001. p. 80

contudo, não possuíam os mecanismos infra- estruturais suficientes para atender a toda a demanda populacional, o que explica a manutenção de muitas pessoas em condições subumanas. Eis, então, que surge os “territórios da pobreza”, espaços destinados a acolher as classes menos favorecidas, mas, que foram desaparecendo, pois estas pessoas foram obrigadas a migrarem para regiões mais periféricas e menos importantes quando o mercado imobiliário começou a se expandir.17

Seriam nestas periferias pobres que, segundo o discurso hegemônico, vigoraria a violência e a criminalidade. É neste momento histórico que nasce a noção de periculosidade das classes subalternizadas, sobre a qual se aplicaria um forte controle das virtualidades, mediante práticas higienistas e racistas que combatiam possíveis misturas raciais, consideradas a origem de todos os perigos sociais e cuja profilaxia seria a esterilização dos pobres não inseridos no mercado de trabalho capitalista, os identificados como corpos inúteis ao sistema.18

Diante desta realidade, várias imagens foram construídas de que a multidão e a rua seriam sinônimos de perigo, uma vez que seriam onde habitariam os pobres degenerados e criminosos irrecuperáveis. Os espaços privados ganharam ênfase, pois o que se intentava era o esvaziamento dos espaços públicos, vistos como área de risco. Neste sentido até a arquitetura das cidades foram pensadas para proporcionar um espaço mais ordenado e controlável, utilizando noções médicas de assepsia incorporadas aos projetos de reforma urbana, que deram início a formas de ordenações urbanas completamente segregadoras, uma vez que expulsavam o pobre para os subúrbios ou periferia das cidades. Nasce aqui a culpabilização do pobre, que por sua miséria moral e material, representava uma relutância ao progresso19.

E foi com o objetivo de controlar esta população pobre que se verificou o aumento da força atribuída à polícia, que desde o momento de sua implantação assinala a tortura física como rotina em interrogatórios de presos não pertencentes às elites20. Neste momento, cristaliza-se, pois, a relação entre pobreza e criminalidade, segundo a qual todo pobre teria um potencial para o crime, fato que acaba gerando uma estigmatização de milhares de indivíduos.

Com o aumento visível da pobreza e do desemprego, as elites sentiram neste fato uma ameaça em potencial e passaram a desenvolver mecanismos de segurança e proteção contra as classes ditas como subalternas. E foi, justamente, este desejo de segurança que fez nascer e

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17 Id. Ibdem. p. 80-81.

18 Id. Ibdem. p. 82-87.

19 Id. Ibdem. p. 100-101.

20 Id. Ibdem. p. 104.

proliferar os sistemas privados de segurança e os condomínios fechados, o que reflete uma tendência ao isolamento e a criação da visão do estranho como um invasor.21

Ainda hoje, em todo o Brasil, subjetividades como estas que consolidam a relação entre pobreza e criminalidade continua existindo e encontram apoio nos meios de comunicação em massa que divulgam o ponto de vista das elites que tem o poder dizê-la, legitimando, assim, noções e interesses particulares como coletivos e desejáveis.

5 O CÁRCERE: UMA ABERRAÇÃO

Como já observado acima, o cárcere é o tipo de prisão moderna utilizada como principal meio de contenção social e para onde boa parte da parcela populacional dos ditos “excluídos” é encaminhada. Nada mais seria do que, segundo Loïc Wacquant:

Servir-se da prisão como um aspirador social para limpar a escória resultante das transformações econômicas em andamento e para eliminar do espaço público o refugo da sociedade de mercado- pequenos delinquentes ocasionais, desempregados, indigentes, moradores de rua, estrangeiros clandestinos, toxicômanos, deficientes físicos e mentais deixados à deriva pelo enfraquecimento da rede de proteção sanitária e social, bem como jovens de origem modesta, condenados, para (sobre) viver, a se virarem como puderem por meios lícitos ou ilícitos, em razão da propagação de empregos precários [...].22   

Revela-se, contudo, um engano acreditar na correlação entre o nível de criminalidade e o índice de encarceramento, pois o aumento de um não significa a diminuição do outro. Nos Estados Unidos, por exemplo, dos quatro milhões de casos de ofensa contra indivíduos em 1994, apenas 3% resultou em encarceramento. Não foi a criminalidade que mudou, mas sim a forma como os governantes e a mídia passam a entendê-la e alimentá-la.23

A história penal mostra que a prisão não conseguiu efetivar sua função de recuperação e reinserção social que lhe é atribuída, ao contrário, o que ela revela é sua seletividade que ocasiona uma série de efeitos cruéis e desproporcionais, como a violência, humilhação, ruptura familiar e alienação individual. Ainda, assim, há os defensores de uma maior repressão penal que atingiria, em especial, as classes mais inferiores da sociedade, reclusas no cárcere por serem mais frágeis econômica e culturalmente.24 Para corroborar com esta idéia, Wacquant acrescenta:

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21Id. Ibdem. p. 120-121.

22 WACQUANT, Loïc. A aberração carcerária. Tradução: Maria Marques- Lloret. Disponível em:http://diplo.uol.com.br/2004-09,a988. Acesso em:29.set.2008.p. 1.

23 Id. Ibdem. p. 1.

Como seus congêneres de outros países pós- industriais, os presidiários franceses provêm maciçamente das parcelas instáveis do proletariado urbano. Originários de famílias numerosas (dois terços têm pelo menos três irmãos), das quais se separaram ainda jovens (um em cada sete saiu de casa antes os 15 anos), eles não obtiveram, em sua maioria, nenhum diploma escolar (três quartos abandonaram a escola antes dos 18 anos, em comparação com 48% da população de homens adultos)- situação que os condena para sempre aos setores periféricos da esfera de trabalho.24  

O encarceramento intensifica a pobreza dos reclusos, uma vez que os mesmos são vítimas de uma rotulação que os acompanhará por toda a vida social que lhes resta, fato explícito na dificuldade encontrada pelos “ex- detentos” no que diz respeito a aquisição de novos empregos. A discussão toma uma maior complexidade na medida em que o próprio encarceramento de um delinqüente acaba por gerar maiores e mais violentas infrações. É o que acontece, por exemplo, quando um pequeno traficante de drogas é preso. Logo este será substituído por outro traficante e, caso este seja novato, com pouca ou nenhuma reputação, o mesmo tenderá a usar de violência para se firmar sua posição, o que repercutirá em um aumento do número de infrações25. Assim, as prisões enfrentam muitos problemas que as distanciam de suas funções declaradas, o que acaba por evidenciar a ineficácia de sua atuação e o seu papel na reincidência criminal.

6 O PAPEL DA MÍDIA

A história e a atuação da pena revelam que a lei e a reação penal não tem aplicabilidade igualitária sobre todos. Isto demonstra o descrédito no qual entrou a Ideologia da Defesa Social e que o princípio da igualdade, apesar de seu respaldo constitucional, nem sempre é efetivado.

Como fora demonstrado, o sistema punitivo atua de forma seletiva e com maior vigor sobre os estratos sociais mais inferiores da sociedade, mediante um discurso que é socialmente difundido e que legitima esta atuação. Importa, pois, salientar, a contribuição dos meios de comunicação em massa para a disseminação de uma consciência coletiva de medo e aversão às classes sociais menos abastadas.    

Nesta seara, a utilização de meios que acabam por configurar o projeto ideológico hegemônico em uma dada sociedade é de certa forma indiscutível. A mídia desempenha muito bem este papel que ultrapassa a simples conformação social e atinge o status de legitimadora e conservadora da crença popular na funcionalidade do sistema penal, atuando no sentido de

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24 Id. Ibdem. p. 2.

25 Id. Ibdem. p. 2.

moldar a opinião das massas, construindo um consentimento social que leva a acreditar na pena como necessária para a solução dos conflitos.26

Os meios de comunicação divulgam valores selecionados a priori e intencionalmente transmitidos, evidenciando um simbolismo que resulta em uma realidade construída e cria uma consciência popular em consonância com as políticas sociais e criminais adotadas naquele momento histórico. Fato este, que dá legitimidade a divisão social entre “bons” e “maus”, produzindo uma série de estereótipos acerca do conceito de criminoso que está relacionado à condição social27 que o indivíduo ocupa na escala de produção capitalista, assentindo com práticas de repressão mais insensíveis contra os “agressores” sociais, o que explica, por exemplo, as condições precárias de encarceramento em que a maioria, dos detentos está submetida.

A realidade é que o Estado se revela incapaz ou ineficiente na distribuição dos recursos direcionados aos problemas sociais, a solução para este fato perpassa, pois, a repressão penal das parcelas sociais vítimas dos efeitos da política do Estado mínimo. É neste contexto que se enquadra a utilização das penas que simbolicamente demonstram que o Estado não está abandonando sua promessa de segurança pública, criando uma falaciosa ilusão de eficácia estatal, além da atuação dos meios de comunicação que age no sentido de amenizar a real situação social e faz expandir apenas a crença em soluções simbólicas e paliativas28, como é o caso da pena privativa de liberdade.

7 CONCLUSÃO

Observado está que o sistema capitalista criou uma sociedade obceca por segurança e reclusa a espaços privados, que busca inibir possíveis articulações nos espaços públicos, além de conter uma parcela significativa de pessoas oriundas dos estratos sociais mais baixos nas prisões. Este fato revela a seletividade do sistema penal e a quebra do princípio da igualdade que rege a ilusória ideologia da defesa social. Somado a isto, a Dogmática Penal legitima um discurso elitista e discriminador que relaciona criminalidade e pobreza, fato que serve para a rotulação e a abertura do abismo que separa as classes sociais e oferece um salvo-conduto para as práticas dos grupos dominantes. Discurso este que encontra propagação e se conserva através dos meios de comunicação em massa, responsáveis pela criação de um consentimento social acrítico.

Daí  a  importância  do  desenvolvimento  de  um  pensamento  crítico  a  respeito  da

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26 Id. Ibdem. p. 2.

27 GUMARÃES, Claudio A. G. Op. cit. p. 287.

28 Id. Ibdem. p. 268-269.

própria sociedade. É preciso romper com este paradigma imposto verticalmente de que o Direito, em especial, o Direito Penal, libertará a sociedade de todo o mal que paira sobre a terra. Somente quando o Direito deixar de ser entendido como instrumento dominador e coercitivo, e se tornar instrumento emancipatório é que se terá a efetividade dos direitos de minorias já conquistados e que ainda estão por ser. A crença no Direito Penal deve ser substituída pela crença no Direito Constitucional, e este deve está desvinculado de qualquer caráter segregador e verdadeiramente comprometido com direitos fundamentais igualitários.

 

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança Jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

            

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 3 ed.Rio de Janeiro:Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia,2002.

COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro: Intertexto, 2001.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete 25. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.   

GUIMARÃES, Claudio Alberto Gabriel. Funções da pena privativa de liberdade no sistema penal capitalista. Rio de Janeiro: Revan, 2007

SALLA, Fernando. As rebeliões nas prisões: novos significados a partir da experiência brasileira. In: Sociologia, Porto Alegre, ano 8, n° 16, jul/dez 2006, p, 274-307. 

WACQUANT, Loïc. A aberração carcerária. Tradução: Maria Marques- Lloret. Disponível em:http://diplo.uol.com.br/2004-09,a988. Acesso em:29.set.2008.

ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal. Tradução: Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007. (Coleção Pensamento Criminológico; 14).

ZAFFARONI, E. Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. vol. 1, parte geral. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

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