A Família Escrava no Brasil



A FAMÍLIA ESCRAVA NO BRASIL

 

 

                            Helcio Davi de Freitas

                      Formado em História pelas Faculdades Integradas Espíritas do Paraná

 

 

RESUMO

 

A vinda dos negros africanos para o Brasil, no período colonial, representou uma etapa da desagregação daquela sociedade, e como o escravo era visto como propriedade, sua constituição familiar era completamente ignorada, separando-se os pais, tios, etc., os quais eram vendidos para proprietários diferentes. Mas mesmo assim, estudos demonstram a efetiva existência de uma família escrava no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE

Brasil, escravidão, família.

                                                     ABSTRACT

The coming of the African blacks for Brazil, as enslaved, represented a stage of disaggregation of that society, and as the enslaved one salling was seen as property, its familiar constitution age completely ignored, breaking up parents, the uncles etc, who were for different proprietors, but exactly thus, studies demonstrate to the effective existence of an enslaved family in Brazil.

KEYWORDS

Brazil, slavery, family.

 

INTRODUÇÃO

 

O aspecto da dificuldade da manutenção de uma família, nos moldes tradicionais por parte dos negros trazidos para o Brasil como escravos, e o fato de haver poucos registros e estudos sobre um assunto tão importante para a história brasileira,  chamou-me a atenção. Aqui se aborda o tema de uma maneira geral, buscando apoio em alguns dos trabalhos e publicações contemporâneos que tratam do assunto.

O escravo, uma vez propriedade do seu dono, essa condição era passada para seus filhos, e destes o senhor também poderia dispor na hora em que lhe aprouvesse, ocorrendo vendas de cativos de uma mesma família a diversos compradores, o que, consequentemente, dificultava a construção de uma unidade familiar.

Como obtempera Flamarion (1988, p.104), a situação de escravo não dependia da relação que tivesse com um senhor em particular, e não estava limitada no tempo e no espaço.  Em outras palavras, sua condição era hereditária, e a propriedade sobre sua pessoa  transmissível por venda, doação, legado, aluguel, empréstimo, confisco, etc. Essa característica transforma o escravo legalmente em uma “coisa”.  Ele não possuía direitos e nem família legal – quando a lei reconhece a validade do casamento religioso, como no Brasil colonial, esse é, com freqüência, impedido pelo senhor.  Carece, mesmo, do direito ao próprio nome, que o dono pode mudar quando quiser.  Não pode legalmente possuir, legar, iniciar processo.

Jacob Gorender, em entrevista concedida à revista Estudos Avançados, da Academia Horácio Berlinck, em 19 de setembro de 2002, faz uma análise interessante da questão, entendendo que, partindo da difusão da historiografia de Gilberto Freyre, sobretudo em Casa Grande e Senzala, procurou-se nobilitar a origem racial brasileira, esforçando-se para demonstrar que a componente africana não deveria ser considerada depreciativamente.  É um mérito dele, diz. Mas ao mesmo tempo, pondera que, como sabemos, Freyre defendeu uma série de teses em sua obra que deram margem, logo em seguida, à idéia da existência de uma democracia racial brasileira já na época da escravidão.  Além disso, conquanto procurasse dignificar a componente africana, empenhou-se em demonstrar que a vida cotidiana dos escravos era dominada pela promiscuidade, segundo pensa.  Não há vestígios de família escrava em sua obra.  O que há é a família patriarcal dos senhores.  Esta, sim, colocada no pedestal, inclusive como matriz da formação social brasileira.  Tal visão da vida promíscua dos escravos africanos, com ausência da instituição da família, foi encampada por críticos de Freyre, em sua maioria, historiadores e sociólogos paulistas, segundo Gorender.

Gorender aduz ainda que, na área do açúcar, do algodão, da mineração e em outras tantas, a constatação da promiscuidade baseada na inexistência da família escrava, assim como pretendem alguns autores, é insuficiente.  Cita fatores contrários à existência de famílias e como primeiro fator neste sentido, o  demográfico, característico do escravismo no Brasil, e em outras partes da América, o que ocasionou o grande desequilíbrio sexual da população escrava, derivado do tráfico africano. Isto porque entraram muito mais escravos do que escravas, tendo-se usualmente perto de 200 ou 250 escravos para 100 escravas nas grandes plantações.  Isto vinha predeterminado pelo tráfico transatlântico.

O que se pode dizer, baseado em muitos testemunhos, segundo este autor, é que compradores e plantadores que viriam a ser os exploradores do trabalho escravo, preferiam os homens, pois, consideravam que estes eram mais eficientes. As mulheres eram preferidas no trabalho doméstico e em algumas tarefas produtivas das plantações. Embora os escravos fossem mais caros, eles eram trazidos em maior quantidade para o Brasil. O desequilíbrio sexual não poderia deixar de influir na questão das famílias escravas.  O que se observa, mesmo na área do café, é que, com os dados desses mesmos autores que falam da família escrava, no momento em que eles fazem a pesquisa, verificam que 70 e poucos por cento das mulheres se achavam casadas, viúvas (ou consorciadas), mas somente 30 e poucos por cento dos homens se achavam nessa condição. Está claro por que dois terços dos homens não encontrariam parceiras para o casamento.  Tal fator era inibidor da existência de uma família escrava estável.

Há outros fatores que influíram negativamente, aponta Gorender. Um foi o sistema brasileiro de habitação dos escravos nas senzalas. Homens e mulheres habitavam senzalas separadas, ao contrário do que acontecia nos Estados Unidos, onde cada família escrava tinha sua cabana própria.  A habitação, separando os homens das mulheres, não podia favorecer a estabilidade das famílias escravas.  Obviamente, os encontros entre os casais se davam de maneira furtiva e aleatória.  Outro fator, não o último, é que a família escrava não tinha proteção legal. A lei permitia que a qualquer momento os casais e seus filhos pudessem ser separados pela venda. Foi só em 1871, com a chamada Lei do Ventre Livre (portanto, já no final do escravismo), que a legislação estabeleceu a inseparabilidade dos casais e dos filhos menores de 12 anos – os maiores podiam ser vendidos.

Gorender crê ainda, ser evidente que o escravismo colonial, em toda a América, com exceção do sul dos Estados Unidos, superou, de acordo com uma dinâmica desfavorável, a reprodução vegetativa da população escrava, havendo exceções faseológicas, mas a tendência geral foi a da dinâmica desfavorável.  Daí que o Brasil (colonial e independente), foi, portanto, o maior absorvedor de africanos escravizados.

Outro historiador da família escrava, Robert W. Slenes, dedicou-se ao estudos sobre a família escrava no Brasil e nos Estados Unidos,  em entrevista à Folha Online de 17/04/2000, observa também que a bibliografia clássica sobre a família escrava no Brasil enfatiza o esforço por parte dos fazendeiros, principalmente do Oeste paulista, de tolher e solapar “todas as formas de união ou de solidariedade dos escravos”. A frase é de Florestan Fernandes, cita, em “A Integração do Negro na Sociedade de Classes”. Aduz que o resultado teria sido uma anomia extrema, uma absoluta falta de nexos e normas sociais.  “Perdidos uns para os outros” segundo sua expressão, os escravos não teriam desempenhado papel político relevante na “revolução burguesa”, processo que incluía a abolição da escravatura.  Nesse contexto, a descoberta de que uma proporção grande de escravos nas regiões do café e açúcar era casada ou viúva, causa certo impacto. Impressiona também, o fato de que nas propriedades de mais de dez cativos, esses casamentos eram bastante estáveis. É claro que se tem que ir além desses dados, combinando-os com relatos, processos, inventários e pesquisas antropológicas na África Central, fontes que permitem recuperar esperanças e recordações que levaram os cativos a valorizar o casamento e o parentesco.

 Para  Slenes, os estudos sobre a família escrava também nos Estados Unidos, foram influenciados por noções de anomia e patologia social. Mais amplamente, as ciências humanas na época (1930-1965) entendiam as culturas como sistemas normativos completamente integrados às suas bases sociais.  Portanto, a separação de um indivíduo de sua cultura e sociedade de origem, necessariamente o tornava candidato forte à anomia. Avalia que os estudiosos da família escrava nesse período (1930-1965) privilegiam como fonte relatos de observadores brancos, fazendo uma leitura acrítica deles. Para o autor a família escrava seria oriunda de um processo de conflito entre escravo e senhor. O senhor é forçado a ceder um certo espaço para os escravos formarem famílias, encarando isso, porém, como parte de uma política de desmonte de revoltas. A política funciona até certo ponto, pois, ao dar ao escravo algo a perder, ele o torna mais vulnerável, transforma o cativo em refém. A médio e longo prazo contudo, o espaço acaba sendo altamente subversivo, pois é usado pelos escravos como lugar de criação e transmissão de uma identidade própria, antagônica à dos senhores e forjada a partir da descoberta de tradições africanas compartilhadas.

 Em conclusão, o pensamento de Slenes resiste á idéia de que a família escrava deva ser entendida agora como uma condição estrutural do escravismo, como sustentaram Manolo Florentiono e José Roberto Góes, autores que cita.  Sobre a herança da família escrava para a família brasileira, ele acha que talvez seja a mesma herança deixada pela família escrava nos Estados Unidos para a família negra norte-americana, observando que quando Alex Haley escreveu o romance “Negras Raízes”, a partir dos relatos orais de sua própria família, imaginou que a história fosse excepcional.  Ao longo do livro, seus personagens se encontram com outros negros que estranham o fato de eles saberem o nome de seus pais e avós. Logo em seguida à publicação do livro, o historiador Herbert Gutman mostrou que a saga da família de Haley era bastante típica. É importante para os negros de hoje saberem que seus antepassados não foram vítimas passivas, submissas. Por outro lado, não se pode mais argumentar que um “déficit cultural” negro, centrado na família e criado na escravidão, seja uma causa importante para a marginalização do ex-escravo de seus descendentes. A escravidão foi duríssima. Mesmo assim, os escravos emergiram do cativeiro com forte sentimento da importância dos laços familiares.

 

CONCLUSÃO

Dentro do material selecionado para realização deste trabalho, foi importante observar que apesar de escasso ainda, aumenta o número de autores brasileiros recentes que felizmente vêem surgindo e que escrevem sobre o assunto, o que demonstra um aumento da importância do tema.  Por outro lado, quando se lê os autores que escreveram sobre a escravidão até a década de 1970, surpreende a intensa ligação que realmente fazem da escravidão com a promiscuidade na senzala (quando na verdade em muitos casos, homens e mulheres viviam em senzalas separadas), o que não deixava de aumentar preconceitos, e a falta de centralização no tema da família escrava, que inquestionavelmente existiu, centralização esta que não era realizada ou observada pelos historiadores, sendo que alguns pregavam até a inexistência da família escrava.  Sabemos que escreveram com os recursos e conhecimentos que dispunham em suas épocas, mas a partir de agora devemos começar a ver escravidão, e especialmente a família escrava com uma nova mentalidade.

Dentro desse contexto, procurou-se trazer para este texto, as idéias de alguns dos principais estudiosos contemporâneos sobre do assunto, o que muito esclareceu sobre o ele, reforçando-se o entendimento de que, o ser humano em geral, provem de uma entidade familiar, tem seus laços afetivos e sua convivência intima e doméstica, e com o escravo não era diferente, porque, apesar de todas as adversidades, ele procurou a constituição de um grupo familiar, e quando isso não foi possível, constituiu algum outro grupo afetivo, como o dos amigos, também escravos, estando longe da generalização da anomia social, que segundo alguns dos antigos estudiosos derivaria de grupos desagregados socialmente. Portanto, os escravos chegaram sim a constituir família, como demonstrado, e algumas até bem estáveis, e é isso que procuramos enfatizar.

Assim, ficou claro que todo Povo busca sua identidade, suas raízes, seu espaço e sua convivência social e afetiva própria, e o povo negro escravizado não era exceção.

 

 

REFERÊNCIAS:

 

Flamarion, Ciro S. (org.). Escravidão e abolição no Brasil. Novas perspectivas.  Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988.

Revista Estudos Avançados, da Academia Horácio Berlinck, em 19 de setembro de 2002.

Site: www1. uol. folha.com.br -Folha On line. Acesso em 15/05/2007.

Mattoso, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1982.

Download do artigo
Autor:


Artigos Relacionados


Ser Escravo No Brasil Na Perspectiva De KÁtia Mattoso

A Origem Dos Escravos Africanos Em Sergipe

A Escravidão Dos Dias De Hoje

História Da Família E Demografia Histórica

Sincretismo – Legado Africano Na Cultura Brasileira

Negociação E Conflitos

África