COZINHA DE INGREDIENTES: UMA PONTE ENTRE TRADIÇÃO E NOVIDADE



 

            Valorizar o ingrediente, fazendo com que seu sabor e frescor seja notado pelo comensal: assim pode ser definida a cozinha de ingredientes. De acordo com Carlos Alberto Dória, essa forma de cozinhar é “a expressão do esforço por inovar sem pagar tributo aos receituários tradicionais, isto é, aos usos históricos dos mesmos“ (2009: 58). As técnicas culinárias tendem a se difundir pelo mundo, perdendo a capacidade de diferenciar uma culinária das demais. Sua vulgarização e estabilização nas várias cozinhas é fato já consumado que pode levar a uma homogeneidade e monotonia se não forem bem desenvolvidas e criativas.

A cozinha de ingredientes implica então em uma missão, principalmente para os cozinheiros, de conhecer a fundo, pensar e utilizar os ingredientes independentemente de seus “conceitos” pré-estabelecidos, suas origens, suas “amarras” histórico-culturais. Assim, tratando-se de culinária brasileira, todos os ingredientes aos quais os brasileiros podem ter acesso, se tornariam possibilidades de criações culinárias, criatividade e conhecimento, em si.

            Para Dória, a capacidade de inovar depende justamente do repertório de ingredientes e produtos utilizados na experimentação gastronômica.

 

“A visão hierárquica do trabalho culinário é essencial para que a cozinha de ingredientes não se perca em discussões estéreis que só limitam o impulso criativo e renovador dos chefs de cozinha atuais. Ao mesmo tempo, ela exige que observemos nossa própria história culinária sob nova óptica – como história de ingredientes plasmados pela cultura brasileira, sejam eles nativos ou exóticos.” (2009: 61).

 

           

            Relativamente nova, a cozinha de ingredientes depende da compreensão do consumidor a respeito da sazonalidade dos ingredientes e dos problemas energéticos e  ambientais envolvidos na logística de transportar comida pelo mundo todo para tornar os alimentos eternamente disponíveis (DELIND, 2006). Embora a qualidade dos produtos locais, mais frescos, sempre tenha sido reconhecida, o movimento de valorização das cozinhas regionais tem só um par de séculos (MONTANARI, 2008). Até meados do século XVII, superar a dimensão local e encher a mesa de especialidades e experiências - o que hoje é a síntese dos restaurantes self-service a quilo - era sinal de poder. O conceito surge quando consolidam-se as identidades nacionais, e apenas o início do processo de globalização dos mercados e dos modelos alimentares faz germinar no homem o “gosto da geografia” (Ibidem: 141).

            Como o século XX evidenciou a potencial uniformidade dos estilos de vida, surgiu entre as populações o medo de perder sua identidade. Luís da Câmara Cascudo crê que o alimento representa o povo que o consome, dá “a impressão confusa e viva do temperamento e maneira de viver, de conquistar os víveres, de transformar o ato de nutrição numa cerimônia indispensável de convívio humano” (2004: 387). A comida seria então uma categoria simbólica relevante na construção da identidade social, o que confere a ela grande importância dentro da estrutura social na qual se insere.

            Para Claude Fischler (1995, apud FONSECA et al, 2009) “se a fórmula 'diga o que comes que te direi quem és' reflete [...] uma verdade não só biológica e social, mas também simbólica e subjetiva, temos que admitir que o comensal moderno, duvidando do que come, pode muito bem duvidar de quem ele é”. As tradições alimentares, então, podem ter uma função emblemática de resistência cultural. A identidade nacional, uma das principais fontes de nossa identidade cultural, que é quem nós somos – ou quem mostramos que somos –, quando ameaçada, também pode ser reafirmada através de escolhas feitas à mesa.

            Para Jean-Pierre Poulain, a supervalorização do menu regional é sinal de crise identitária. “A patrimonialização do alimentar e do gastronômico emerge num contexto de transformação das práticas alimentares vividas no modo da degradação e mais amplamente no do risco de perda da identidade” (2004: 38).  Fonseca et al (2009) reforçam que apesar da “diversidade inerente aos sistemas alimentares, um aspecto é fundamental na significação da alimentação: a identidade. O comensal precisa se identificar com o alimento para reconhecê-lo e significá-lo”, necessidade ameaçada pelos mercados transnacionais, que causa o deslocamento dos alimentos da origem geográfica a que são tradicionalmente associados. Nas palavras de Fischler (1995, apud FONSECA et al, 2009): “O alimento moderno já não tem identidade, pois não é identificável”.

            O desconhecimento da origem de um alimento cria a possibilidade da incorporação de algo nocivo ao físico ou ao psicológico. Dessa forma cria-se, em especial nas grandes cidades, a valorização da “volta à natureza”, do simples e do rústico; uma “nostalgia de um 'espaço social' em que o comedor viva sem angústia, ao abrigo de uma cultura culinária claramente identificada e identificante” (POULAIN, 2004: 34).

            Nasce uma visão utópica da ruralidade: os habitantes do interior - que em teoria têm contato com a terra, de onde nascem os alimentos - passam a ser guardiões do patrimônio gastronômico, e os ingredientes e modos de preparo típicos, baluartes da tradição, que devem ser valorizados e protegidos. O ser cosmopolita, que habita as grandes cidades e sente a pressão da variedade mundial roubar-lhe as lembranças do simples, passa a buscar refúgio na utopia desse lugar privilegiado, onde tudo é descomplicado, livre das pressões da vida contemporânea.

            Os ingredientes tradicionais passam a simbolizar esse estilo de vida simples, e conquistam interesse justamente não apenas por seu valor nostálgico, mas por sua raridade no espaço habitado pelo cosmopolita. Montanari (2009) ressalva que os ingredientes sempre foram causadores de uma interessante dicotomia: há comidas que se apresentam nas mesas simples e sofisticadas sem ao menos agradar aos comensais em volta delas. Os mais pobres as consomem por necessidade, e os mais ricos pela utopia de simplicidade.

Na gastronomia, a discussão e a reflexão sobre os paradoxos da alimentação contemporânea auxiliam compreender assuntos cada vez mais procurados não só por quem cozinha, mas principalmente por quem come: Slow Food, cozinha tecnoemocional e comfort food são somente alguns dos vários movimentos (conceitos?!) já criados em torno dos alimentos para determinar não só um ingrediente, mas também um conjunto de hábitos, preparos, espaços e características que precedem o comer daqueles que buscam, por exemplo, resposta às produções de alimentos em larga escala, ou até mesmo à agitada vida urbana que impede que as pessoas apreciem suas comidas em um tempo considerado “ideal”. Assim, tem-se a impressão que esses movimentos trazem ao cotidiano da sociedade, mesmo que lentamente, novos padrões alimentares e transformações no hábito de comer que serão realmente estabelecidos num futuro próximo, como para as próximas gerações.

            A cozinha de ingredientes nos encontra numa fase de hiper-exposição à novidade, em especial na alimentação. Por isso, funciona como o meio termo entre as técnicas estrangeiras e o paladar a que estamos acostumados. É como observa Dória:

 

“Interessante é que nos grandes centros urbanos, onde é forte a pressão das culinárias do mundo todo, vivemos uma nova fase – talvez defensiva – de celebração da culinária brasileira. Com esforços próprios de estilização, muitos chefs inovadores buscam situar essa tradição no imaginário e nos desejos de um público consumidor ávido por novidades” (2009: 9).

 

            Mas não há necessidade de enaltecer o passado com o intuito de preservar-se das incertezas futuro. Para Poulain, “os particularismos nacionais e regionais não desaparecem tão rapidamente” (2004: 31), pois são mais fortes e enraizados que qualquer novidade. Além disso, como diz Massimo Montanari, as identidades culturais não são partes do DNA de um povo, mas estão constantemente adaptando-se às influências externas e às trocas com outras culturas. “As identidades, portanto, não existem sem as trocas culturais, e proteger a biodiversidade cultural não significa enclausurar cada identidade numa concha, mas, sim, conectá-las” (2009: 12).

            Prova disso é que mesmo em uma época em que as refeições já não feitas em casa, o interesse pela cozinha brasileira cresce a cada dia (DÓRIA, 2009). Seja por moda, saudosismo ou preocupação com os caminhos que nossa identidade nacional anda percorrendo, enquanto o local for valorizado, o foco no ingrediente promete ter lugar garantido em nossos cardápios rotineiros.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004.

DELIND, Laura B. Of bodies, place, and culture: Re-situating local food. Journal of Agricultural and Environmental Ethics, Alemanha, n.19, 121–146. 2006.

DÓRIA, Carlos Alberto. A formação da culinária brasileira. São Paulo: Publifolha, 2009.

FONSECA, Alexandre Brasil Carvalho, et al. Modernidade alimentar e consumo de alimentos: contribuições sócio-antropológicas para a pesquisa em nutrição. Disponível em <http://www.abrasco.org.br/cienciaesaudecoletiva/artigos/artigo_int.

php?id_artigo=3901>.  Acesso em 9 set. 2009.

MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.

MONTANARI, Massimo. A cozinha, lugar de identidade e das trocas. In: MONTANARI, Massimo. (org.). O mundo na cozinha: História, identidade, trocas. São Paulo: Estação Liberdade/Senac, 2009. P. 11-17.

NABHAN, Gary Paul. Coming home to eat: The pleasures and politics of local foods. New York: W. W. Norton & Company, 2002.

POULAIN, Jean-Pierre. Sociologias da Alimentação: Os comedores e o espaço social alimentar. Florianópolis: Editora da UFSC, 2004.

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Autor: Luana Budel


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