A AÇÃO RESCISÓRIA COMO INSTRUMENTO DE RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL



A AÇÃO RESCISÓRIA COMO INSTRUMENTO DE RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL[1] 

Ana Carolina Trindade Medeiros Costa[2]

Caroline Duailibe dos Santos[3] 

Sumário: Introdução; 1 Ação rescisória; 2 Possibilidade de ação rescisória em caso de coisa julgada inconstitucional; 2.1 Divergências quanto à aplicação da ação rescisória; Conclusão, Referências.

PALAVRAS-CHAVE: Coisa julgada inconstitucional. Relativização da coisa julgada. Ação rescisória. Ação rescisória em coisa julgada inconstitucional.

RESUMO

Partindo do conceito de coisa julgada e compreendendo a sua possibilidade de relativização, o presente trabalho tem por objetivo expor as divergências na doutrina e na jurisprudência quanto à possibilidade de ação rescisória no caso de coisa julgada inconstitucional, bem como explanar as conseqüências disto.

Introdução

Uma vez proferida a sentença, terminativa ou definitiva, tem-se a possibilidade de pedir que o objeto da decisão seja reexaminado pelo órgão jurisdicional, por meio do recurso. Esgotado o número de recursos permitidos pelo sistema processual civil brasileiro, ou em decorrência de lapso temporal para a proposta do recurso cabível, a decisão acaba por tornar-se irrecorrível, ocorrendo seu trânsito em julgado. É neste contexto que surge a coisa julgada, conceituada pela Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) em seu art. 6º, § 3º, que diz que “chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba mais recurso.”, sendo consideráveis imutáveis inclusive todos os seus efeitos: constitutivos, condenatórios e declaratórios.

Dessa maneira, compreende-se que a coisa julgada pode ser formal, pela imutabilidade da própria sentença, ou material, pela imutabilidade de seus efeitos. Apesar de se dizer que os efeitos da coisa julgada material são imutáveis, há uma grande discussão acerca da conservação de uma decisão transitada em julgada, que teve por base conteúdo declarado inconstitucional, questionando se essa declaração é suficiente para a propositura de uma ação capaz de rescindir a coisa julgada material.

1 A ação rescisória

A doutrina e a jurisprudência questionam o instituto da coisa julgada em alguns casos, admitindo-se assim, uma nova discussão quanto ao conteúdo da sentença de mérito atingida por esta, que é o que se chama de relativização da coisa julgada. Alguns autores, como Alexandre Câmara, entendem que a desconsideração da coisa julgada seria possível nos casos em que a mesma tenha incidido sobre uma sentença inconstitucional, uma vez que o que contraria a Constituição não é a coisa julgada, mas sim, o conteúdo da sentença.[4]

De acordo com o Direito Positivo Brasileiro, existem mecanismos capazes de reverter situações indesejáveis causadas pelas conseqüências das sentenças de conteúdo inconstitucional, relativizando a coisa julgada. Estes mecanismos se constituem em embargos à execução e a ação rescisória. Alguns autores defendem ainda, critérios atípicos para a relativização.

A ação rescisória está prevista pelo artigo 485, V, do Código de Processo Civil, que limita expressamente, os casos extraordinários em que se pode utilizar tal ação como forma de reapreciação da sentença, que a princípio, seria imutável e indiscutível. Tendo em vista que a indiscutibilidade da coisa julgada poderia resultar em uma eternização dessas situações indesejadas, como forma de “abrandar esses riscos que se trouxe previsão de hipóteses em que se poderia desconstituí-la. Com isso, buscou-se harmonizar a garantia da segurança e estabilidade das situações jurídicas com a legalidade, justiça e coerência das decisões jurisdicionais.”.[5]

Dentre este rol taxativo constante em tal artigo, encontra-se na alínea “e”, a hipótese em que se baseia o tema principal do presente trabalho, o cabimento da ação capaz de reincidir a coisa julgada inconstitucional: a violação de literal dispositivo de lei.

2 Possibilidade de ação rescisória em caso de coisa julgada inconstitucional

Conforme o art. 485, V, alínea “e” do CPC, a ação rescisória será cabível nos casos de ofensa indiscutível a disposição de lei[6]. Questiona-se sobre esse artigo no que tange ao alcance do termo “lei”: se tal expressão engloba apenas as leis infraconstitucionais, ou se a mesma se refere a todas as espécies de norma jurídica. Grande parte da doutrina compreende que esta expressão deve ser entendida de forma ampla, uma vez que seria incoerente admitir a revisão de sentenças ilegais e não admiti-la em questões constitucionais, que são acometidas por um vício ainda mais grave. De acordo com André Cruz Ramos:

O “termo lei”, portanto, usado na norma em exame, tem o sentido de norma jurídica geral e abstrata, razão pela qual se defende, inclusive, que engloba também à ofensa aos princípios que informam o ordenamento, sobretudo, os princípios constitucionais.[7]

Além de dúvidas acerca de seu alcance, a expressão “por violação de literal disposição de lei” é questionada quanto ao seu significado, sendo importante ressaltar que esta não se configura somente no sentido de que a decisão necessita ofender diretamente o teor literal da norma. Diversos autores posicionam-se no sentido de que “não há norma jurídica que possa ser extraída de um dispositivo legal automaticamente, sem interpretação”.[8] Andre Cruz Ramos afirma que:

Na verdade, todavia, o que o código quer expressar, com a locução “literal disposição de lei” é que caberá ação rescisória quando houver ofensa a uma norma jurídica que possa ser constatada pelo simples exame das questões jurídicas que permeiam a lide, ou seja, sem a necessidade de reapreciação dos fatos.[9]

Diante do exposto, compreende-se que a expressão “violação de literal disposição de lei” refere-se à hipótese de uma sentença veicular orientação incompatível com a interpretação correta da norma.

2.1 Divergências quanto à aplicação da ação rescisória

Após tal conclusão, chega-se a outro ponto problemático, que diz respeito à possibilidade de propositura de ação rescisória, respeitado do prazo decadencial de dois anos, no caso de mudança posterior no entendimento jurisprudencial de determinada norma. [10]

A Súmula 343 do Supremo Tribunal Federal traz em sua redação que “não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”. De acordo com essa súmula, é incabível a propositura de ação rescisória ainda que se estabeleça novo entendimento após a sentença transitada em julgado, entendimento esse contrário ao que foi adotado pelo julgador. Neste sentido, diz-se que:

Não se admite a utilização da ação rescisória nos casos em que exista divergência sobre a interpretação estabelecida na sentença, sob pena de desestabilizar-se toda a ordem e segurança jurídicas. A ação rescisória constitui remédio extremo, e assim, não pode ser confundida com mero recurso. Em outras palavras: a sentença que possui interpretação divergente daquela que é estabelecida pela doutrina e pelos tribunais, exatamente pelo fato de que interpretações diversas são plenamente viáveis e lícitas, não abre ensejo para ação rescisória.[11]

Esse enunciado sumular gera muitas críticas, como a que, por exemplo, se encontra na obra de Eduardo Talamini. Este processualista, afirma que a Súmula 343 do STF acabaria por conferir uma discricionariedade ao juiz, uma vez que transmite a idéia de várias possibilidades de interpretação razoável da lei. Segundo este autor:

Trata-se de formulação discutível, que só se justificaria se adotada a idéia de que a lei pode ter mais de um sentido válido. O caráter “controvertido” da questão tornaria justificável o erro do juiz: bastaria que ele houvesse adotado uma entre várias correntes interpretativas então cogitadas – ainda que diferente daquela posteriormente consolidada como sendo a correta – para que a decisão permanecesse incólume  ao ataque da ação rescisória.[12]   

Sobre esta Súmula, no entanto, firmou-se o entendimento jurisprudencial de que a mesma não pode ser aplicada no caso de matéria de índole constitucional, apenas sendo utilizada para regular a aplicação de ação que rescinda leis infraconstitucionais. Entende-se que a matéria constitucional, por sua supremacia jurídica, deve possuir uma maior efetividade possível, não ficando à margem das divergências de entendimentos nos tribunais. Marinoni afirma que:

[...] entende-se que o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal é apto à desconstituição das decisões transitadas em julgado que lhe são contrárias, pouco importando se, a respeito da interpretação da questão constitucional havia controvérsia nos tribunais.[13]

A grande polêmica causada por esta Súmula se dá pelo posicionamento dos Ministros, principalmente, pelo pronunciamento do Gilmar Mendes, que compreende que “não é a mesma coisa vedar a rescisória para rever uma interpretação razoável de lei ordinária que tenha sido formulada por um juiz em confronto com outras interpretações de outros juízes e vedar a rescisória para rever uma interpretação de lei que é contrária àquela fixada pelo Supremo Tribunal Federal em questão constitucional” (STF, 2.ª T., RE-ED 328812, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 02.05.2008).

De acordo com Marinoni, fica claro com a passagem acima citada que as divergências quanto às interpretações, ou quanto ao próprio conceito de violação são irrelevantes, uma vez que o entendimento do STF seria sobreposto em relação a todos os outros. Dessa maneira, para a desconstituição de uma decisão basta que haja uma incompatibilidade com o último posicionamento do STF em relação à matéria. Assim, o STF teria o poder de modificação de decisão anterior ao seu entendimento. Portanto, 

[...] esta decisão, por não ser dotada do devido recrudescimento, não configura verdadeira ‘decisão final’, mas sim mero juízo provisório. Estar-se-ia diante de um processo jurisdicional autônomo, pois não destinado a dar segurança a outra tutela ou situação tutelável, mas cuja tutela jurisdicional, apesar de satisfativa, seria suscetível de revogação.[14]

Segundo o Ministro Gilmar Mendes, a retroatividade dos pronunciamentos do STF sobre a coisa julgada, justifica-se, pois as questões submetidas ao controle difuso de constitucionalidade demoram a chegar até a Corte Suprema. Posição esta que traz críticas, visto que

[...] a aceitação da retroatividade do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre as decisões proferidas pelos tribunais significa colocar a coisa julgada sob condição ou em estado de provisoriedade, o que é absolutamente incompatível com o conceito e com a razão de ser da coisa julgada.[15]

Por isso, critica-se a posição do STF em relação às decisões já transitadas em julgado, uma vez que estas podem ferir ainda mais os direitos das partes envolvidas na lide que se deseja assegurar.

Conclusão

De acordo com o que foi anteriormente exposto, compreende-se que apesar da relativização da coisa julgada ir em confronto com o seu próprio conceito e natureza, esta faz-se necessária quando se fala em uma busca por decisões em real conformidade com os preceitos e princípios constitucionais, como forma de garantir efetivamente os direitos assegurados pela Carta Magna, bem como sua supremacia. O que não quer dizer que o instituto da coisa julgada pode ser banalizado, questionando-se, dessa forma, a maneira como os novos posicionamentos do STF podem interferir na retroatividade das decisões, visto que uma interpretação do Supremo Tribunal Federal em relação à determinada matéria, tem a possibilidade de se sobrepor em relação às interpretações judiciais passadas já transitadas em julgado, tornando-as nulas.

Visto isso, a ação rescisória, observado seu prazo legal, vem como forma de assegurar que preceitos constitucionais sejam atendidos, mas com a consciência de que este é um remédio extremo, não podendo ser utilizado de qualquer maneira, pois isto resultaria em um caráter provisório das decisões, uma vez que se sabe que entendimentos em relação a uma matéria podem ser modificados ao longo dos anos, e isso, acabaria com a segurança jurídica das relações regidas à luz da nossa Constituição.

REFERÊNCIAS

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. 

DIDIER JR., Fredie. Braga, Paula Sarno. Oliveira, Rafael. Curso de direito processual civil. 4. ed. v. 2. Salvador: Edições Juspodivm, 2009.

 

 

MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada Inconstitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de conhecimento. 7. ed. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Coisa julgada inconstitucional. Salvador: Edições Juspodivm, 2007.

TALAMANI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: RT, 2005.


[1] Paper elaborado à disciplina de Processo de Conhecimento II, ministrada pelo Professor Christian Barros, para obtenção da segunda nota.

[2] Aluna do 5° período noturno do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[3] Aluna do 5° período noturno do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[4] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

[5] DIDIER JR., Fredie. Braga, Paula Sarno. Oliveira, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. 4. ed. v. 2. Salvador: JusPodivm, 2009.

[6] MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de conhecimento. 7. ed. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

[7] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Coisa julgada inconstitucional. Salvador: JusPodivm, 2007. Pág. 101.

[8] TALAMANI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: RT, 2005. Pág. 161

[9] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Coisa julgada inconstitucional. Salvador: JusPodivm, 2007. Pág. 102.

[10] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Coisa julgada inconstitucional. Salvador: JusPodivm, 2007. Pág. 103.

[11] MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de conhecimento. 7. ed. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. Pág. 665.

[12] TALAMANI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: RT, 2005. Pág. 162

[13]MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada Inconstitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. Pág. 99.

[14] MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada Inconstitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. Pág. 106.

[15] MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada Inconstitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. Pág. 105.


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