UNIÃO HOMOAFETIVA: Do reconhecimento constitucional à expectativa da legalização



UNIÃO HOMOAFETIVA: Do reconhecimento constitucional à expectativa da legalização

Débora Cristina Bouças Bahia Silva*

 

SUMÁRIO: 1. Família constitucional e a expectativa judicial 1.2. Da orientação da LPM; 2. Sobre os avanços jurisprudenciais.

 

RESUMO: O presente artigo tem a intenção de contribuir para a discussão sobre um fato que acompanha o homem em toda a sua história, mas que é tratado com severos preconceitos. Trata-se da união homossexual e seus efeitos no conceito de família, acanhado na Constituição. Em face às transformações relacionais, enfrentamos o reconhecimento de uniões homoafetivas como um novo modelo de família que necessita da recepção da tutela jurídica. Dentre essas mudanças, a Lei Maria da Penha aponta, no âmbito infraconstitucional, uma renovação no conceito de família.

PALAVRAS-CHAVES: UNIÃO HOMOSSEXUAL – CONSTITUIÇÃO – LEI MARIA DA PENHA

1. FAMÍLIA CONSTITUCIONAL E A EXPECTATIVA JUDICIAL.

Albergada na Constituição, a família funda-se na ordem mais natural dos homens, a convivência social. No Estado de Direito no qual se funda o brasileiro, as uniões matrimoniais estão sustentadas no mais alto conceito preambular de família, conferindo-lhe por reconhecimento do vínculo afetivo, o status de família, caracterizando assim, o reconhecimento do Estado a lhe oferecer proteção.

A Constituição Federal, mapeando novos comportamentos sociais influenciadores na composição dos modelos de família, reconheceu o surgimento de outras entidades familiares que rompem com a celebração do casamento para que se constitua uma família, como caso da união estável e das famílias monoparentais. No entanto, não encontramos esse mundo restringido à apenas a um universo de famílias orientadas por uniões heterossexuais, surge, portanto, as uniões homossexuais que mantém entre si a mesma relação basilada no afeto e respeito com o/a companheiro/a. Agora, o que há, portanto, é a identificação de novos modelos de família sustentados pelo manto jurídico, que reconhece a partir da identidade de projetos comuns de vida e do vínculo afetivo como novas características ao universo da família.

Por meio da juridicidade, é claro manter que a Constituição concede, expressamente, reconhecimento apenas as uniões estáveis entre heterossexuais, ainda que não haja nenhuma vedação a convivência homossexual na união estável. Não obstante, é necessário enfrentar o fato de que direitos não expressos pela ocasião das normas não sejam legitimados. Sendo assim, elucida Canotillo[1], ao enfatizar que os direitos fundamentais, reconhecidas normas abertas, não colaboram com o entendimento da não previsão de novos direitos que não recepcionados na Norma maior, por via de direitos já estabelecidos, ou seja, defende o reconhecimento de direitos surgidos por meio da interpretação constitucional dos direitos fundamentais.

Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana assume importante posição, visto que, utilizado como roteiro para efetivação de um direito material, por meio da identificação de direitos incidentais, faz jus ao dizer de Ingo Wolfgang Sarlet, sustentando que sempre frente a uma situação jurídica relacionada e pautada na dignidade da pessoa humana esta deverá ser recepcionada como uma norma de direito fundamental.

Assim, o que se observa, é acentuação cada vez mais presente nas decisões judiciais, da recepção do princípio da igualdade no trato das famílias, fazendo com que se construa uma discussão menos permeada de preconceitos e, enfim, reconhecendo as uniões homoafetivas como entidades familiares.

1.2. Da orientação da Lei Maria da Penha e a recepção judicial.

 Contribuindo para a democratização do conceito de família, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) insere no campo jurídico, as uniões homoafetivas como famílias reconhecidas no âmbito infraconstitucional. Ao definir no seu parágrafo único do art. 5º a independência sobre a orientação sexual para o reconhecimento da violência doméstica e familiar, traz para vínculos jurídicos, uma nova definição de entidade familiar, sustentando que o conceito moderno de família ultrapassa a necessidade de haver casamento entre homem e mulher abrangendo a nova definição do Código Civil em seu art. 1511, “O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”.

Por meio da leitura constitucional dessa legislação vê-se assegurada a proteção legal das novas entidades familiares resultantes das uniões de pessoas de mesmo sexo, ampliando assim, para efeito da normalização, a eficácia da discussão travada nos tribunais e na sociedade civil. A partir dessa nova definição trazida pela Lei Maria da Penha, os vínculos construídos nessa relação passam a ter seus efeitos jurídicos reconhecidos não podendo, por um lado, a Constituição garantir a igualdade de direitos e por outro, negar-lhe tal exercício.

É cada vez mais comum encontramos nos tribunais discussões da doutrina em admitir-se a eficácia da lei ou reconhecer a sociedade de fato nas relações de mesmo sexo. No acolhimento da Constituição Federal (Art. 226), o Estado tem entre um dos princípios da ordem social, o compromisso de concretizar a especial proteção à família, definida como a base da sociedade, garantindo assim a consagração da igualdade e isonomia nas relações jurídicas, sem prejuízo para as relações que tenham o seu destaque na orientação sexual.

Sob a declaração da inexistência de uma regra jurídica garantidora dos direitos alegados pelos casais homossexuais, a prestação jurisdicional apresenta-se inerte para efetivar seus direitos. Precisa-se, no entanto, resgatar os princípios constitucionais para que a lei encontre uma solução para se extinguir a justificativa da não prestação e do não cumprimento da proteção estatal para essas uniões não legalizadas.

Em face à resistência do reconhecimento de tais direitos o que se encontra no momento é a tutela desses direitos por meio da lei de combate a violência doméstica, significando o reconhecimento dessas entidades como familiares sobre o manto do direito das famílias, tal qual alude Maria Berenice Dias. Desse modo, o que se aponta, é a necessidade de ver ampliada a recepção das ações nas Varas de Família fazendo jus a realidade demonstrada que não se resume a uniões heterossexuais. O Estado deve, portanto, acompanhar a evolução dessas relações e contribuir para a efetivação de seus direitos sem aparência de qualquer preconceito ou tratamento minoritário às relações homoafetivas.

2. SOBRE OS AVANÇOS JURISPRUDENCIAIS

A partir da nova definição de família que vem sendo construída, a previsão jurídica brasileira demonstra que os vínculos formados por relações de pessoas do mesmo sexo podem ser sustentadas pelo então acanhado tratamento legal. De forma a diminuir com a constante resistência em não manifestar reconhecimento às uniões homoafetivas, a jurisprudência vem admitindo que tais uniões preenchem as condições necessárias para que sejam declaradas sociedade de fato. No entanto, o que se verifica é o anseio em não se estratificar esse posicionamento, tal como se observa em decisões judiciais.

Com destaque para o julgamento do Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, na apreciação do REsp 820.475, verifica-se  que:

“os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, dês que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas mulheres. Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu.”

Tal mudança nos posicionamentos dá-se lentamente, mas demonstra um grande potencial da justiça brasileira em romper com a tradicional declaração de união estável ou com reconhecimento dos direitos patrimoniais ao analisar a participação do(a) companheiro(a) na aquisição dos bens, ensejando uma mudança na orientação da jurisprudência brasileira. A mudança traduz uma ânsia do judiciário brasileiro em acompanhar as transformações pelas quais passa a sociedade, considerando o juiz com um agente transformador social e não o mero refletor da legislação.

O avanço invocado é bastante significativo visto que é o entendimento da jurisprudência que facilita caminhos para a legalização do fato. Assim, os Tribunais trabalham de forma coerente ao estenderem o conceito de união estável às uniões homoafetivas, pautando-se na Constituição Federal, visando a obediência aos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da isonomia.

A omissão legal nas relações de direito às uniões homoafetivas é negar ao Direito que fatos sociais do qual é construído, não existam e se completam em plena ficção social. Cabendo assim, ao Direito albergar nos seus caminhos, permear no ordenamento jurídico os conflitos inerentes a sociedade.

Por fim, não obedecendo ao modo mais cômodo de solucionar os conflitos, é de responsabilidade do Judiciário e da sociedade romper com o conceito sacralizado de família e com os grilhões do preconceito e da discriminação, e entender que as uniões homoafetivas já atingiram a realidade da entidade familiar.


BIBLIOGRAFIA

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5ª ed., Coimbra: Almedina, 2002.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4ª ed., Porto Alegre. Revista dos Tribunais, 2008.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

RECURSO ESPECIAL:  REsp 820475 RJ 2006/0034525-4 - Voto do Ministro Antônio de Pádua Ribeiro - STJ

Relator(a): Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO
Julgamento: 02/09/2008
Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA

Publicação: DJe 06/10/2008 - Processo civil. Ação declaratória de união homoafetiva. Princípio da identidade física do juiz. Ofensa não caracterizada ao artigo 132, do cpc. Possibilidade jurídica do pedido. Artigos 1º da lei 9.278/96 e 1.723 e 1.724 do código civil. Alegação de lacuna legislativa. Possibilidade de emprego da analogia como método integrativo.

* Discente de Direito da UNDB – Unidade de Ensino Superior Dom Bosco

[1] Faz jus aqui ao principio da não tipicidade dos direitos fundamentais.


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