Memórias Postumas De Brás Cubas, Um Olhar Sobre A Linguagem De Machado De Assis Em Relação Ao Homem E A Sociedade Do Brasil, No Séc. XIX



No que virá a seguir, tentaremos mostrar algumas interpretações e análises sobre aspectos do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas (primeiro romance realista do Brasil), de Machado de Assis (1839-1908), famoso e renomado escritor do séc. XIX, estudado por inúmeros autores do país e da Europa. Nesta análise, utilizaremos críticos como Valentim Facioli, no seu livro Um Defunto Estrambótico, e Roberto Schwarz, com seus livros Um mestre na periferia do capitalismo e Que horas são?.

Nesta época, final do século XIX, o Brasil adere às idéias novas e modernas vindas da Europa, sendo muitas delas conservadoras e perigosamente regressivas; e outras nem tanto, até cumpriram no Brasil um papel progressista e modernizador. Mas, ao deparar-se com a realidade local, muitas dessas idéias provocavam efeitos contrário, relacionando-as à realidade brasileira, elas funcionavam contraditoriamente, pois observava o aumento do poder da classe dominante e a escravização crescente. No entanto, a dubiedade das idéias novas (uma modernização conservadora) tornava o país mal formado, descompassado e desequilibrado com seu processo de modernização. É nesse contexto conflituoso que Machado de Assis cria seus personagens, ou seja, uma representação literária da sociedade em que vive. As Memórias Póstumas são consideradas uma sátira de projetos políticos da época, formulados a partir de sistemas de base epistemológica realista, e prescrevendo aos indivíduos uma formação intelectual e um comportamento correspondente. A obra para cumprir essa função sátira no contexto brasileiro, estrutura-se sobre o contraste dado por elementos da Divina Comédia, de Dante.

Para Valentim Facioli, em Um defunto estrambótico, Machado de Assis não pode ser visto como escritor que pretendesse criticar a sociedade brasileira com o intuito de destruir a sua ordem, mas sim um escritor que sabia descrever a sociedade do Brasil do séc. XIX, o que ela tinha de carente no sentido civilizado, como, exemplo, prática viva e constante de violência e horrores predominante da época. Em relação a isso, Valentim Facioli ainda comenta uma análise do crítico Roberto Schwarz, quando este refere-se à "volubilidade" existente dentro da obra, ou seja, esse mundo (séc. XIX) em constante modificação, mas reproduzindo os mesmos cenários sociais anteriores.

O estilo realista de Machado de Assis, apesar de trabalhar com temas sociais, difere dos seus contemporâneos pelo fato de aprofundar-se na análise interior do homem, desvendando sua fragilidade existencial consigo mesmo e com os outros homens. Entretanto, é um escritor cujas obras abarcam diferentes registros: realista, social, histórico, filosófico, científico, melancólico, entre outros, proporcionando, assim, vários aspectos a serem analisados.

Valentim Facioli considera o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas um livro extravagante, na medida em que sua narrativa causava em seus leitores, inclusive em comentadores literários da época, alguma estranheza, como se pode perceber em comentário de Capistrano de Abreu: "(...) O romance aqui é simples acidente. O que é fundamental e orgânico é a descrição dos costumes, a filosofia social que está implícita". E em comentário de alguém com pseudônimo de Abdiel: (...) "O estilo e a filosofia que se desprende das páginas deste devem de comover mediocremente e até inspirar fadiga mortal". Como podemos perceber, os comentários desses dois autores reconhecem a estranheza e novidade da narrativa machadiana com tons por muitas vezes enigmáticos. Novidade e estranheza essa que se pode perceber logo de início, quando quem narra a história é um defunto, ou seja, ele relata sua vida após a morte, tentando mostrar incessantemente que, como está morto, irá falar a verdade, apenas a verdade, mas cabe ressaltar uma pergunta: Morto fala? Machado faz uma alusão ao Brasil da época que tenta mostrar um país civilizado, o que não é "verdade", visto que ainda estávamos na escravidão, conceito de atraso para os europeus. Além de estar em constante diálogo com o leitor, clareando ou inebriando o entendimento deste sobre seus pensamentos.

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me lavaram a adotar diferente método: a primeira é que não sou propriamente um autor defunto, mas sim um defunto autor (...). A segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo (ASSIS, 2007, p.17).

Como mencionamos acima, o autor (defunto) está em constante diálogo com o leitor e tenta mostrar isenção na sua fala e nos seus atos de quando estava vivo. Facioli diz que Machado recebe influências nestes aspectos inovadores de autores europeus: como, Laurence Sterne (A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy entre 1760 e 1767) e Xavier de Maistre (Viagem à roda do meu quarto, 1794), além do escritor Almeida Garret (Viagens na minha terra, 1846). Nestas narrativas, os autores narram em primeira pessoa, com uma visão particular, e pode não ser inteiramente a totalidade dos fatos.

Existe no processo narrativo, segundo Valentim Facioli(2002, p. 73), "uma espécie de autoconsciência, ou seja, faz-se surgir uma duplicidade cultural, porque, de fato, são contadas duas histórias 1) as histórias dos personagens, onde predomina o discurso realista 2) a história do narrador, cujo o fantasma dialoga ostensivamente com o leitor".

Roberto Schwarz, em Que horas são?, relata que Machado de Assis transcende o romance realista europeu, desrespeitando o senso da verossimilhança, marca forte do estilo literário realista, ou seja, trata na ficção a realidade social sem construções metafóricas exorbitantes, ele foge desta linha realista sem se descaracterizar completamente. Isso se pode perceber com o extremo egoísmo do seu protagonista (Brás Cubas), além de acrescer que o cálculo econômico não é o motivo real para os seus atos e sim um álibi para seu verdadeiro desejo, a notoriedade.

Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro, sede de nomeada. Digamos: - amor a glória (ASSIS, 2007, p. 19).

No realismo, os fatos narrados tentam demonstrar o homem e a sociedade em sua totalidade de maneira clara. Não basta mostrar a face sonhadora e idealizada da vida como fizeram os românticos, era preciso mostrar o cotidiano massacrante, do amor adúltero, da falsidade do egoísmo humano e da impotência do homem comum diante dos poderosos.

Valentim Facioli, em seu livro, ainda refere-se à paródia existente na narrativa, principalmente no personagem Brás Cubas, utilizando uma linguagem ambígua, crítica, satírica etc, encenando na narrativa a sociedade da época. Mas, antes de qualquer coisa, devemos separar o eu - lírico do eu - empírico da narrativa, uma vez que o autor nunca fala em nome próprio, devendo então conter esse distanciamento e dissociação do autor e do personagem.

Como menciona Facioli, no seguinte trecho:

A interpretação da prática paródica nas Memórias Póstumas é muito complexa e deve ser feita em dois níveis. Um para Brás Cubas e outra para Machado de Assis, com intermediação entre eles da distância irônica que separa a personagem-narrador do seu criador. Para Brás Cubas a paródia praticada por ele remete primeiramente para seu caráter moral, de sujeito pretensioso, muito rico, superior ao meu social em que vive seu cotidiano (...). O autor Machado de Assis na prática da paródia, que, utilizando o que chamamos mais adiante de ironia estratégica, faz com que tudo isso esclareça, com esse perfil ou croquis de Brás Cubas, a vida prática e ideológica da fração "letrada e esclarecida" da classe hegemônica escravista brasileira (FACIOLI, 2002, p.79-80).

Podemos perceber que não foi por acaso que Brás Cubas foi concebido, retratando, assim, o símbolo da crise e da morte do período escravista brasileiro. Machado cria este narrador-personagem no gosto pelos temas da morte e da melancolia conforme a situação vivida pelo país desta época. Simboliza a burguesia triste por ver um regime que lhe tinha dado tantos lucros chegar ao fim. Valentim, sobre o aspecto racial da obra, diz que: "Brás e o Brasil se assemelham, assim, ponto por ponto, ambos sobre as costas negras, sobre o tráfico africano e a escravidão, engendrados pelo capital mercantil internacional" (FACIOLI, 2002, p.27).

As pretas, com uma tanga no ventre, a arregaçar-lhes um palmo dos vestidos uma dentro do tanque, outras fora, inclinadas sobre as peças de roupas, a batê-las, a ensaboá-las (...) (ASSIS, 2007, p.37).

No aspecto social, Roberto Schwarz, no seu livro Um mestre na periferia do capitalismo, menciona que o casamento e a política, em Memórias Póstumas, são tratados como um jogo de benefícios, o que era bastante comum na época, na sociedade brasileira deste século, pois o status social das famílias ricas era assim preservado, na medida em que os ricos casavam seus filhos com membros da mesma classe social, preservando a perpetuidade hierárquica. Machado critica essa sociedade que manipula o poder, assujeitando a maioria da população com estratégias matrimoniais sem vinculo afetivo, eram apenas com interesses de ambas as partes.

– Virgília? Interrompi eu.

– Sim, senhor; é o nome da noiva. Um anjo, meu pateta, um anjo sem asas. Imagina uma moça assim (...)... Filha de Dutra.

– Que Dutra?

– O Conselheiro Dutra, não conheces; uma influência política.

(ASSIS, 2007, p. 68)

Por tudo o que foi exposto acima, podemos perceber uma visão crítica de Machado de Assis a sua realidade e sociedade da época, uma vez que, faz inúmeras críticas às relações sociais (casamento, amizades etc.) evidenciadas no contexto do Brasil do século XIX. Machado com seu caráter realista de retratar a angústia do homem com seus problemas consigo mesmo e com sua sociedade, consegue passar uma clareza nua e crua das relações de interesse e ambição desta sociedade. Utilizando também, muitas vezes, o artifício da fuga dessa linha "real", ou seja, a análise dos fatos com muitos meios estilísticos, conseguindo, assim, tornar-se visível nacional e mundialmente pela sua linguagem e narrativa complexa, mas ao mesmo tempo denunciativa e esclarecedora.

Referência Bibliográfica

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Editora Martin Claret, 2007.

FACIOLI, Valentim A. Um defunto estrambótico: Análise e Interpretação das Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Nankin Editorial, 2002.

SCHWARZ, Roberto. Complexo, Moderno, Nacional, e Negativo. In: Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das letras, 1987. p.115 – 120.

_______________. A sorte dos pobres. In: Um mestre na periferia do capitalismo. 34. Ed. São Paulo: Duas Cidades, 2000. p. 85 – 114.


Autor: Filipe da Silva Oliveira


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