LÍNGUA: ENTRE O ESTRUTURAL E HISTÓRICO COM RELAÇÃO AO LÉXICO “VOCÊ”



LÍNGUA: ENTRE O ESTRUTURAL E HISTÓRICO COM RELAÇÃO AO LÉXICO “VOCÊ”           

Vagner Vainer Teixeira Braz[1]

João chamava Teresa de Vossa Mercê, que chamava Raimundo de vossemecê, que chamava Maria de vosmecê, que chamava Joaquim de você, que amava Lili, mas simplesmente não a chamava.[2]

(Fonte: Rede Gestão) 

Por várias leituras e discussões feitas em sala de aula na disciplina História da Língua Portuguesa – Diacronia, sobre o estudo da língua, principalmente os seus vários conceitos e que buscamos compreender conceituadamente a língua em relação à evolução do léxico “você”[3] pela forma estrutural e histórica, do princípio ao contemporâneo. Que por sua vez, foi representado por “vossa mercê” > “vossemecê” > “vosmecê” > “você” e ultimamente os falantes desta língua, que somos nós, utilizamos no dia a dia o fenômeno evolucional da palavra “você”, transformada em “cê”. Para esse estudo tomamos como corpus de pesquisa as obras literárias de diferentes tempos, cultural, político, etc. Com isso compreenderemos como se estabelece a relação entre o sistema/estrutura e a passagem histórica em busca de reflexão acerca da linguagem, da língua, da fala e da escrita nas obras Guerras do Alecrim e da Manjerona de António José da silva, Primeira Aventura de Alexandre de Graciliano Ramos e Dom Quixote de La Mancha de Cervantes. Nesse condicionamento pensamos como que se dá esse estudo pela forma das seguintes categorias:

                                     I.            A língua enquanto estrutura/sistema;

                                  II.            A língua como acontecimento histórico;

Assim sendo, comecemos nossas considerações a partir da definição de língua sua estrutura e o histórico. De acordo com certas leituras feitas, como Saussure (2006), Câmara (1979) e Houaiss (2004), a definição de língua é algo complexo e ocupa a atenção de vários estudiosos. No âmbito de nosso estudo, faremos referência a algumas delas. Para Saussure (2006):

O estudo da linguagem comporta, portanto, duas partes: uma, essencial, tem por objeto a língua, que é social em sua essência e independente do indivíduo; esse estudo é unicamente psíquico; outra, secundária, tem por objetivo a parte individual da linguagem, vale dizer, a fala, inclusive a fonação e é psico-física [...]. Em primeiro lugar, a língua evolui sem cessar, ao passo que a escrita tende a permanecer imóvel. [4]

Dentre as contribuições modernas para o conceito de língua, Câmara (1979), dedica todo um capítulo sobre a língua, desde a língua enquanto representação social até ao estilo-literário:

Assim, para estudarmos a língua, para estabelecermos o conceito de língua, temos que fazer dois desbastes preliminares: em primeiro lugar, isolar da comunicação linguística todos os elementos extralinguísticos que normalmente, muito frequentemente pelo menos, entram nessa comunicação; e, em segundo lugar, dentro da própria comunicação linguística, isolar tudo aquilo que não é especialmente comunicativo, do ponto de vista da língua rigorosamente dita.  [...] A língua assim considerada, com essa série de desbastes, se apresenta como um sistema, como uma estrutura.[5]

Em consonância aos autores, citamos o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, de Antonio Houaiss, como:

Sistema de representação constituído por palavras e por regras que as combinam em frases que os indivíduos de uma comunidade linguística usam como principal meio de comunicação e de expressão, falado ou escrito.[6]

Compreendemos, portanto, que são várias as definições e as formas sobre a língua, mas demonstram um aspecto em comum: a língua é apresentada como representação de um sujeito, ou seja, a língua é a representação social, cultural e ideológica.

            Segundo Saussure (2006), a língua é uma evolução no sentido de transformações e para linguística não fica imóvel no tempo, porém, evolui de acordo com processo que só a fala (oralidade) e a escrita promovem. Por isso tomamos como recorte de estudo a origem do léxico “você”, que ao longo do tempo sofreu e está passando por processo evolucionista da Língua Portuguesa e no âmbito do nosso estudo essa evolução pode ser chamada de Diacronia, ou seja, é a evolução de uma língua através do tempo. O Houaiss (2009) define o pronome de tratamento como “aquele a quem se fala ou se escreve”. Os gramáticos, por sua vez, doutrinam que esses pronomes são da terceira pessoa, substituindo o "tu" da segundo pessoa.

Andrade e Henriques (1999) descrevem que a língua é vista enquanto estrutura/sistema/código, utilizadas pelos seus falantes, como: “A língua, enquanto código ou sistema permite uma multiplicidade de usos, que podem ser adotados pelos falantes, em consonância com as exigências situacionais da comunicação”. [7]

Contudo, vivemos em contato com o meio social e por isso estamos subordinado obedecer às regras postas pela gramática, em adquirir como padrão a norma culta, que por sua vez, é prestigiada na escrita, “assim como o mapa estrutura o território para quem o percorre, a língua organiza o mundo como uma estrutura dotada de significado”. [8] Deste modo percebemos que a língua está em constante mudança, ou seja, é a diacronia. Para ficar mais claro fazemos referencia a Câmara (1979):

Ela é um sistema, uma estrutura em que os elementos estão ligados entre si por associações e contrastes, mas não é um sistema nem completo nem fechado; está, como dizia Saussure, em equilíbrio instável, com uma série de pontos fracos, e esses pontos fracos são sempre suscetíveis de sofrer modificação.[9]

Câmara (1979), afirma que a língua pode ser chamada pelo homem de representação, no qual possa perceber o ambiente em que ele está inserido. Isso só pode ser permitido graças à estrutura e a sistematização da língua. Assim ela é um aspecto da natureza cultural, em que o indivíduo se encontra, mantendo uma relação com esse espaço na criação de comunicações entre os indivíduos num determinado lugar ou no mesmo espaço cultural.

Todavia, essa representação do espaço cultural se demonstra pela língua, numa configuração formal, fazendo com que “integra os elementos culturais em grupos associativos e multiplica a aplicação de cada elemento” e nesse mesmo momento podemos fazer alusão a vários tipos de comunidades culturais, por exemplo, os falantes de língua inglesa, espanhola e portuguesa (Brasil), quando comunicamos em coletividade entendemos que o signo “giz” é o mesmo giz que o profissional da educação utiliza para escreve no quadro negro, porque logo vem em nossa mente que aquele objeto é giz, ou seja, é uma convenção já determinada pela sociedade ou senso comum, que no qual é transmitido através da tradição cultural e da convivência social. No entanto se ouvimos a palavra “chalk[10]” do inglês e “tiza[11]” do espanhol não saberemos o que significa porque não fazemos parte daquele sistema/estrutura lingüístico.

Podemos, então, interpretar que a essência da língua está relacionada na maior parte a sistematização e a configuração formal. Inclusive, “a língua em si é a configuração formal, é o sistema, a estrutura que se estabelece para a comunicação pela fala. É este seu caráter que precisamos, antes de tudo, levar em conta” [12] e que a língua se associa em si mesma os rudimentos da cultura, segundo Câmara (1979):

O estudo da configuração formal que uma língua tem em si, estabelece para si, é que se chama a gramática dessa língua [...]. A língua se apresenta, pois, como um microcosmos da cultura. Tudo que esta última possui, se expressa através da língua; mas também a língua em si mesma é um dado cultural.[13]

Agora podemos pensar a língua como fato histórico, porque a língua é um objeto de estudo de uma ciência, nela provavelmente ocorreram várias mudanças (e ocorre), e por isso possui uma história. No qual, entra em campo a elevação entre o estudo sincrônico e o diacrônico, em que o estudo sincrônico é funcionamento presente da língua. Já o estudo diacrônico, compete estudar a língua através do tempo.

Assim sendo, para essa pesquisa retiramos fragmentos de diversas obras literárias e de terminadas eras da Língua Portuguesa, em que ao lermos estas compilações observamos que o léxico inicial e variável do pronome de tratamento ou indefinido “você” era transcrito das seguintes maneiras: “vossa mercê” > “vossemecê” > “vosmecê”.  Comecemos primeiramente, pela peça teatral Guerras do Alecrim e da Manjerona de António José da silva, que foi apresentada no Teatro do Bairro Alto de Lisboa, no Carnaval de 1737 (século XVIII):

D. Lancerote – Amado sobrinho, dá-me os braços. É possível que vejo a um filho de meu irmão!

D. Tibúrcio – Sim, senhor; mas primeiro mande VOSSA MERCÊ ter cuidado naqueles chouriças que vêm no alforje, não as dizime o arrieiro, que tem em cada mão cinco águias rapantes.[14]

Na sequência o conto Primeira Aventura de Alexandre de Graciliano Ramos, em que Alexandre recorda sua meninice para narrar como recuperar uma égua que tinha escapado da estância de seu pai:

A reza acabou lá dentro, e ouvi a fala de meu pai: - “Vocês não viram por aí o Xandu?” – “Estou aqui, nhor sim, respondi cá de fora.” – “Homem, você me dá cabelos brancos, disse meu pai abrindo a porta. Desde ontem sumido!” – “VOSSEMECÊ não me mandou procurar a égua pampa?” – “Mandei, tornou o velho. Mas não mandei que você dormisse no mato, criatura dos meus pecados.[15]

No romance Dom Quixote de La Mancha de Cervantes (2002), em que se passa a trajetórias de um cavaleiro e foi traduzida para o Português em 1794 (século XIX):

Má sorte me dê Deus, da primeira que me vier, se o trocasse eu, ainda que me dessem quatro fangas de cevada de quebra. VOSMECÊ talvez nem acredite no valor de meu ruço, pois ruça é a cor do meu jumento.[16]

Na peça Guerras do Alecrim e da Manjerona de António José da silva, observe-se que o léxico utilizado é “vossa mercê”, qual se originou em Portugal, na língua portuguesa. Assim sendo, a “vossa mercê” é vista como forma de tratamento pessoal (tradicional), que é ato de graça ou benfeitoria que se concede a um indivíduo de alto escalão. Vinda para o Brasil na era colonial e, se difundiu pelo território brasileiro no ato da fala e da escrita. Aprova-se o ponto de vista da perda de propriedades nominais no processo de gramaticalização de “vossa mercê” para o pronome você.

Do mesmo modo, no conto Primeira Aventura de Alexandre de Graciliano Ramos e na narrativa Dom Quixote de La Mancha de Cervantes, destaca-se a evolução da palavra “vossa mercê” para “vossemecê” / “vosmecê”, em que era utilizada como tratamento oferecido aos indivíduos que não tinham senhoria.  No contexto dos dois fragmentos mostra um progresso diacrônico ocorrido na língua, num espaço rural ou pelas estradas do mundo. Sendo assim, interpretamos que o sentido está interligado na mudança da língua de cada época, ou seja, ocasionando o aparecimento das variantes linguísticas.  Também, vale apena ressalta, que a palavra VOCÊ para ter está estrutura que tem hoje ela sofreu várias modificações gramaticais, fonéticas e ortográficas.

Sobre esse assunto Câmara (1979), afirma que nesses estudos, a língua é vista como fato histórico, pertencendo aos estudos diacrônicos e focaliza-se “a língua, historicamente, no século XIX, as mudanças que ela sofre através do tempo foram concebidas dentro da idéia geral da evolução” [17] e mostra a essência da língua como histórico com a simples resposta: “por que está ela sempre em mudança” [18]. 

Enfim, “uma língua não muda “de vez em quando”; qualquer língua “viva” se transforma continuamente” [19]. Assim sendo, os vieses destacados em nosso estudo, a língua enquanto estrutura e como fato histórico, fez com que pararmos para refletir que a língua tem uma estrutura e que nesse esqueleto possuiu e possui uma história, em que podemos partir de uma mudança na língua e estudar a diacronia.

 

 

 

 

 

 

Referências:

 

ANDRADE, M.M. e HENRIQUES, A. Língua Portuguesa: Noções Básicas Para Cursos Superiores. – 6ª Ed. – São Paulo : Atlas, 1999.

AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos de Gramática do Português. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2000, p. 28.

CÂMARA, José Mattoso Jr. Introdução as Línguas indígenas Brasileiras. 3ª Ed., Rio de Janeiro, 1979.

CERVANTES SAAVERDRA, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha, volume 2. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

Dicionário Oxford Escolar: Para Estudantes Brasileiros de Inglês. Oxford  university press, 2009.

GARCÍA, M.L.J. e HERNÁNDEZ, J. S. Minidicionário de Espanhol. São Paulo: Scipione, 2000.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1997.

RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros textos. São Paulo, Record, 1991.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo : Cultrix, 2006.


[1] ([email protected]), acadêmico do Curso de Licenciatura Plena em Letras na Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, do Campus Universitário de Pontes e Lacerda-MT. Trabalho de História da Língua Portuguesa - Diacronia, sob orientação do Profª. Msª. Marlene Flores.

[2] Paródia do Poema Quadrilha de Drummond, que elucida as variações que originaram o pronome de tratamento “você”.

 http://www.tinotec.com.br/blog/dica-ortografica-quadrilha-dos-pronomes/

[3] a) apesar de funcionar como forma de tratamento de segunda pessoa, esse pronome leva o verbo para a terceira pessoa; b) excetuando-se o extremo Sul e alguns pontos da região Norte, no Brasil você toma lugar do tu como pronome de segunda pessoa, como forma de tratamento ger. íntimo, entre pessoas de mesmo nível social, etário etc. ou de superior para inferior; c) vocês, além de preencher as funções do pl. normal de você, tb. se emprega como o pl. de tu no lugar de vós, e como pl. de o senhor, a senhora. (HOUAISS, 2009)

[4] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo : Cultrix, 2006,  p. 27 e 37.

[5] CÂMARA, Joaquim Mattoso Jr. Introdução as Línguas indígenas Brasileiras. 3ª Ed., Rio de Janeiro, 1979, p. 14 e 15.

[6] HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro : Objetiva, 2004.

[7] ANDRADE, M.M. e HENRIQUES, A. Língua Portuguesa: Noções Básicas Para Cursos Superiores. – 6ª Ed. – São Paulo : Atlas, 1999, p. 36.

[8] AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos de Gramática do Português. – Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2000, p. 16.

[9] CÂMARA, Joaquim Mattoso Jr. Introdução as Línguas indígenas Brasileiras. 3ª Ed., Rio de Janeiro, 1979, p. 71.

[10] Dicionário Oxford Escolar: Para Estudantes Brasileiros de Inglês. Oxford  university press, 2009.

[11] GARCÍA, M.L.J. e HERNÁNDEZ, J. S. Minidicionário de Espanhol. São Paulo : Scipione, 2000.

[12] CÂMARA, Joaquim Mattoso Jr. Introdução as Línguas indígenas Brasileiras. 3ª Ed., Rio de Janeiro, 1979, p. 25.

[13] CÂMARA, Joaquim Mattoso Jr. Introdução as Línguas indígenas Brasileiras. 3ª Ed., Rio de Janeiro, 1979, p. 18.

[14] MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 179.

[15]  RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros textos. São Paulo, Record, 1991.

[16] CERVANTES SAAVERDRA, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha, volume 2. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

[17] CÂMARA, Joaquim Mattoso Jr. Introdução as Línguas indígenas Brasileiras. 3ª Ed., Rio de Janeiro, 1979, p. 66.

[18] CÂMARA, Joaquim Mattoso Jr. Introdução as Línguas indígenas Brasileiras. 3ª Ed., Rio de Janeiro, 1979, p. 70.

[19] AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos de Gramática do Português. – Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2000, p. 28.

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Autor: Vagner Vainer Teixeira Braz


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