Lúcia



Lúcia

Lúcia não parece ter mais de trinta e poucos anos, apesar de já se aproximar dos cinqüenta. Para o público em geral, está sempre com altíssimo astral e às vezes se comporta como uma adolescente. Não faltam risos e observações espirituosas nas suas conversas. É, no entanto, no telefone que a Lúcia extrapola - dependendo do interlocutor, ela pode passar do ingênuo dengoso ao sedutor calculista em poucos segundos. É, sem dúvida nenhuma, uma autêntica camaleoa. O leve sotaque do Sul de Minas, que ela tenta manter bem escondido, pode ser substituído, de um instante para o outro, por um paulistanês carregado de italianices.
Ela não pode ser considerada um modelo de beleza, mas também não é feia. Mantém os cabelos lisos, que lhe descem até os ombros, cuidadosamente tingidos de preto e malha duas vezes por semana na academia para conservar a silhueta juvenil. Veste-se com uma mistura de discrição e provocação. Suas roupas, apesar de não serem espalhafatosas, trazem sempre uma dose de sedução que acabam contribuindo para essa aparência bem mais moça que possui. Lúcia tem consciência desses atributos e tira proveito deles com bastante competência.
Talvez um leitor mais apressado, depois dessa breve apresentação, imagine que a Lúcia ganhe a vida com a mais antiga das profissões. Ledo engano - a profissão da Lúcia é bastante moderna. Imagino mesmo que somente no final do século passado ela tenha se firmado. Trata-se da Terapia Holística. Sim, a nossa Lúcia trabalha como terapeuta holística, apesar de intitular-se psicóloga. E ganha muito dinheiro. É impressionante o mulherio que entra e sai da casa onde ela atende. Quase todas as suas clientes chegam em carrões imensos, do tipo SUV, que são estacionados de qualquer maneira, atrapalhando bastante os vizinhos.
A sua maneira de agir é sempre a mesma. De posse da data, do local e da hora do nascimento, ela gera o mapa astral num programa de computador e põem-se a interpretar o "momento astrológico" da sua nova paciente. Utiliza-se, durante o atendimento, de uma mistura de auto-ajuda com preceitos esotéricos e termina a sessão prescrevendo florais de Bach que ela mesma fornece e cobra à parte. Deixa sempre transparecer para a paciente, de forma bastante sutil, que compreende perfeitamente o que está ocorrendo com ela nessa delicada fase. Se a paciente demonstrar desejo de saber detalhes, ela invariavelmente se negará a fornecê-los alegando que ainda é muito prematuro para isso. Diz que os florais a ajudarão a superar esse momento difícil, marcando uma nova consulta dali uns quinze ou vinte dias, que é o tempo de duração previsto da dose de florais. A partir desse instante, a paciente torna-se dependente da sua terapeuta e estará sempre ávida em saber da evolução do seu "momento astrológico" que pode explicar todas as suas agruras.
Lúcia não deixa de anotar nas fichas das suas pacientes os telefones da residência, do trabalho e os celulares. Ela utilizará todos os meios possíveis de contato para que a sua paciente não desista de uma nova consulta. Findo o prazo previsto para o floral, ela ligará para a sua paciente para confirmar a consulta. No caso de uma paciente mais refratária, Lúcia telefonará seguidamente para ela demonstrando uma grande preocupação pelo seu bem estar. Usará toda a sorte de argumentos esotéricos para reconduzi-la à sua clientela. Caso a paciente alegue dificuldades financeiras ela acenará, de imediato, com um desconto ou mesmo de um atendimento fiado.
Grande parte das suas pacientes torna-se regular, com atendimentos semanais ou quinzenais. No final do dia, Lúcia gastará umas boas horas para atender telefonemas de pacientes que estão com algum tipo de problema e precisam urgentemente de aconselhamento. Apesar de algum desses problemas se referirem a questões de desempenho profissional, grande parte desses aconselhamentos estão ligados ao relacionamento afetivo. Nisso a Lúcia parece falar de cátedra. Ela invariavelmente orienta as suas pacientes serem firmes com o namorado ou com o marido a fim de granjearem respeito. Ela está sempre recomendando que a paciente não ligue, sob hipótese nenhuma, para o namorado, deixando que ele tome essa iniciativa. Ela procura sempre aumentar a auto-estima das suas pacientes, dizendo que são "lindas e maravilhosas" e que os homens acabarão por rastejar aos seus pés.
Talvez por seguir à risca os seus próprios conselhos, Lúcia não se casou e não tem sequer um namorado ou companheiro fixo. Apesar de espalhar aos quatro ventos que trabalha muito e que não tem perfil para o casamento, ela traz consigo uma grande frustração por estar sozinha. O que as suas pacientes não sabem, é que aquela fortaleza tão bem estruturada, desaba em algumas madrugadas chorando copiosamente como uma criança, bem no estilo "Just Like a Woman" do Bob Dylan.
Não há assunto ligado ao ocultismo que a Lúcia não se interesse. Ela está sempre participando de cursos e "workshops" ligados a essa matéria. Ela recebe essa carga de informações sem qualquer tipo de ponderação ou crítica. Na realidade, Lúcia aceita todos esses ensinamentos como verdades incontestáveis. Ela nem sequer percebe que, nesse cipoal de doutrinas esotéricas que está metida, existem contradições abissais. A doutrina da moda, que já está em evidência há alguns anos, é a Feng Shui. Problemas crônicos de mal-estar, depressão e, principalmente, financeiros podem ser solucionados ou explicados em função do rearranjo da mobília, distância entre a porta de entrada e o banheiro e também pelos hábitos de deixar ou não esse banheiro fechado e o vaso sanitário tampado. Os lugares onde Lúcia trabalha ou dorme são exaustivamente examinados, com o auxílio de pêndulos, para evitar vibrações deletérias. A posição da cabeceira da cama também é cuidadosamente escolhida. Ela precisa estar apontada para leste e longe das paredes do banheiro. Deitar com a cabeça para oeste, segundo ela, leva à morte, metafórica ou não. Ela também alerta que não se deve colocar a cabeceira virada para norte para evitar que a pessoa que utilize essa cama receba uma carga demasiada de responsabilidades e acabe adoecendo por esse motivo. Lúcia também é categórica em afirmar que a pessoa que dorme com a cabeça virada para sul fica presa ao passado, não conseguindo avançar em nenhum assunto. Ela não viaja sem o seu pêndulo e a sua bússola. Realiza um verdadeiro ritual nos hotéis onde pernoita, buscando pontos energéticos e posição adequada dos móveis. Não vacila em arrastar esses móveis para colocá-los nas posições que julga correta.
Lúcia freqüenta um grupo esotérico de Atibaia, no interior de São Paulo. Quase todas as quinta-feiras, ela se dirige para aquela cidade com um grupo de amigas. Lá ela escuta embevecida as palestras do mestre que descreve acontecimentos passados há milhares de anos na Lemúria e na Atlântida. O mestre também desvenda as vidas passadas de cada participante do grupo, levando todas ao choro numa catarse. Lá ela também ficou sabendo que o ano de 2009 seria marcado por grandes catástrofes naturais como o desaparecimento da costa da Califórnia. A não realização dessa profecia foi creditada às enormes correntes de pensamento, que envolveram pessoas de todo o mundo, logrando poupar a população da costa oeste dos Estados Unidos dessa terrível provação. Lúcia e seu grupo estão agora participando ativamente de uma nova corrente para fazer frente à terrível catástrofe final, prevista para esse ano. Segundo o mestre, o globo terrestre será assolado por terríveis terremotos e maremotos, ainda nesse ano, em função da mudança do eixo de rotação da terra. Essa catástrofe, chamada de final, livraria a terra das más influências e somente os seres bons e evoluídos sobreviveriam a ela. Lúcia dedica algumas horas das suas noites, cujos horários estão sempre em conformidade com alguma efeméride astrológica, ouvindo e repetindo os textos declamados numa gravação, repletos de mantras budistas e música "new wave". Ela imagina que essa prática garantirá a sua sobrevivência e do seu grupo nessa catástrofe final.
Da mesma forma que os pacientes da Lúcia ficam extremamente dependentes da sua terapeuta, ela tornou-se também completamente subordinada a esse mestre. As suas consultas ao mestre reproduzem as mesmas ansiedades e apreensões que ela lida no consultório. Lúcia liga para ele freqüentemente para relatar indisposições ou inquietações, que são sempre diagnosticados pelo mestre como de origem astral. Ele prescreve banhos de leite e de sal grosso juntamente com um conjunto com mantras, sempre em sincronismo com eventos do calendário astrológico. Ela possui uma fé cega nesse mestre a ponto de consultá-lo em assuntos bastante íntimos como, por exemplo, a possibilidade de contaminação de determinada doença em função de uma relação sexual com um namorado imprevidente. As palavras do mestre são definitivas e esclarecedoras e não existe nenhum espaço para dúvidas ou contestações. Lúcia aguarda o "príncipe encantado" prometido pelo seu mestre que, segundo ele, haverá de chegar no momento adequado. A sua ansiedade a esse respeito é, no entanto, tão grande, que Lúcia não hesita em ligar para ele para saber se determinada pessoa, que ela acabou de conhecer, virá a ser o seu sonhado marido. O mestre, colocado nessa situação, tergiversa e procura diminuir a ansiedade da sua discípula abordando outros assuntos mais amenos.
Lúcia foi criada num meio católico bastante conservador que dominava a sua pequena cidade, no Sul de Minas. A partir da idade adulta, ela rejeitou toda aquela doutrina para abraçar o ocultismo, de corpo e alma. Ela traz hoje um verdadeiro rancor por aqueles padres e responsabiliza a igreja católica pela maioria dos males do mundo. A história das amigas da Lúcia que freqüentam aquele grupo de Atibaia também não é muito diferente. O que a Lúcia e as suas amigas não percebem, é que elas simplesmente trocaram os padres, pastores ou mesmo pais de santo pelo seu mestre. Ou seja - trocaram uma muleta por outra. É realmente desanimador constatar que a despeito dos avanços tecnológicos a grande maioria da humanidade continua precisando de muletas. São muito poucos aqueles que conseguem caminhar sem apoio. George Orwell quando escreveu "1984" trazia consigo a desilusão socialista diante do totalitarismo soviético. Fez uma previsão pessimista da humanidade que se tornou profética. A sociedade orwelliana, apesar de controlada a ferro e fogo e submetida a lavagens celebrais permanentes, não estava infeliz. Afinal possuía a "Grande Muleta" que zelava por todos.
Marco Dous 15 de junho de 2011


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