Classe "Mérdia"



Classe "mérdia"

Já faz algum tempo que esse assunto ronda a minha cabeça, mas acabo sempre postergando a sua escrita porque, ao contrário dos "causos" que costumo relatar, essa matéria não contém os elementos pitorescos ou inusitados que costumam caracterizar esses textos, mas explicita e descreve hábitos que considero deploráveis de uma parcela considerável da nossa população e, por esse mesmo motivo, me aborrece profundamente.
Creio que devo essa crônica à secretária do local onde trabalho. Trata-se de um autêntico specimen do segmento mais alto dessa classe apelidada de média, apesar desse exemplo, escolhido aqui como modelo de estudo, se julgar acima dessa classificação. Aliás, essa característica de julgar-se acima da sua própria condição social é um dos atributos dessa classe - que batizei de "mérdia". As atitudes cotidianas dessa secretária não permitem que eu esqueça esse assunto e, de alguma forma, acabaram forçando a escrita desse texto.
Talvez o leitor, depois desse preâmbulo, já esteja classificando o autor como sectário e invejoso. Não o culpo por isso porque essas são, muito provavelmente, as primeiras impressões que ocorrem a qualquer um, depois de ler esses dois parágrafos. Espero que esse leitor não desista de ler esse artigo até o fim e reavalie essas idéias, pré-concebidas, a respeito do autor.
Vou tentar descrever esse segmento da nossa sociedade, enumerando as peculiaridades mais importantes que a caracterizam, para que o leitor possa identificar com segurança todos aqueles que pertencem a ela. Se você, caro leitor, se sentir insultado com esse relato, interrompa imediatamente a leitura e aceite as minhas sinceras desculpas.
A primeira característica, que considero mais importante, consiste na ojeriza visceral a qualquer tipo de trabalho que envolva, ainda que minimamente, o esforço físico. O representante típico dessa classe se sente diminuído e humilhado se for flagrado em qualquer atividade que ele julga ser própria de subalternos. A secretária, citada no início desse texto, que assim como eu também chega cedo ao trabalho, aguarda escondida na copa a minha chegada para não precisar abrir um cadeado e uma porta que permitem o acesso à ala do prédio onde trabalhamos. Está claro que essa secretária se sente diminuída abrindo essa pequena grade e essa porta. Freqüentemente vemos motoristas buzinando furiosamente diante do seu portão para que os empregados, ou às vezes a própria esposa, venham abri-lo. Descer do carro e abrir o portão é muito humilhante para ele. Ele aguarda, sentado no volante feito um "pachá", a abertura do portão para poder entrar em casa. Creio que essa maneira de agir tão lamentável seja uma herança dos nossos colonizadores. Essa resistência ao trabalho físico é bastante conhecida entre os povos latinos. Há séculos atrás os portugueses abastados, fossem eles nobres ou burgueses, deixavam as unhas dos seus dedos mindinhos crescerem para que todos pudessem ver que não precisavam trabalhar.
Outra característica marcante de um "mérdio" é a necessidade imperiosa de ser adulado e paparicado. Esse specimen está sempre cercado de bajuladores e vassalos. Entre um empregado altivo e competente e outro completamente inapto, mas servil, um verdadeiro membro dessa classe não vacilará em escolher o segundo. Ele estará sempre à procura de salamaleques, não se importando com a qualidade do serviço prestado. Por esse motivo, as pessoas que o rodeiam ou que interagem com ele tendem a ser submissas e ter sérias deficiências de caráter. Caráter, aliás, é uma palavra completamente sem sentido para um "mérdio".
Uma terceira característica que podemos encontrar nos membros dessa classe é o total desrespeito com as outras pessoas. É no trânsito que podemos encontrar os melhores exemplos dessa particularidade. O "mérdio" não hesita em parar em filas duplas ou mesmo triplas, indiferente aos transtornos que possa causar. Na hora de estacionar ele é incapaz de ter qualquer pensamento em relação a terceiros. É comum vê-lo bloqueando carros estacionados, utilizando duas vagas nos estacionamentos ou então parando defronte de garagens. Ele só pensa no seu problema imediato e fica extremamente irritado se alguém chama a sua atenção por esse motivo. Já que estamos falando de carros, é bastante acentuada a predileção do "mérdio" por veículos enormes e chamativos. A auto-estima deles parece depender do tamanho do seu carro.
Outra característica do "mérdio" é o enorme esforço que ele despende para parecer aquilo que não é. Ele costuma ser muito inseguro da sua classificação no estrato social e está sempre tentando aparentar um nível superior à sua real condição. Lembram bastante aqueles alegres rapazes da Amway(1), que mudavam bruscamente o seu modo de vestir e se endividavam comprando carros acima das suas posses para impressionar os seus colegas de trabalho e assim fisgá-los para o seu "downline". O "mérdio" finge tanto que em determinadas situações não consegue mais distinguir a dura realidade que o cerca. Assim como os antigos membros da Amway, ele está sempre com a sua situação financeira precária e freqüentemente precisa de um empréstimo para saldar outro.
Creio que já descrevi as características mais marcantes desse specimen, objeto do nosso estudo. O leitor agora se encontra em condições de identificar com precisão qualquer membro dessa vasta família. Alguns "mérdios" mais completos possuem todas essas características descritas juntas. Outros, talvez ainda em formação, possuem somente uma ou duas dessas características. É possível que esses "mérdios", ainda incipientes, venham a adquirir as outras características que lhe faltam ao longo do tempo.
Marco Dous
02 de junho de 2011

(1) Trata-se de uma firma norte americana que fazia venda direta de produtos de limpeza e de higiene pessoal. O esquema empregado era o de pirâmide. Os primeiros vendedores dessa multinacional cooptavam outros colegas (o seu "downline") para o esquema de vendas, recebendo uma porcentagem dos lucros obtidos por eles. E esses novos colegas, por sua vez, também criavam o seu próprio "downline". Dessa forma, somente os primeiros participantes desse esquema saíam lucrando com a soma das porcentagens de toda essa cadeia de vendas.


Autor:


Artigos Relacionados


Rodas De Carros

A DiferenÇa Do Latim Vulgar E NÃo Vulgar

Dicas Para A Criação De Uma Página Web Para Pessoas Com Dislexia Usando Princípios Básicos De Usabilidade Para A Web

Ser Empreendedor. Dom Ou Necessidade?

TÉcnicas Para A ElaboraÇÃo Dos Trabalhos De GraduaÇÃo

Guia Prático Do Chefe No Serviço Público

Jogos De Estacionamento