Imagem e Sintoma “O belo e o feio na contemporaneidade”



Imagem e Sintoma

“O belo e o feio na contemporaneidade” 

Amarílio Campos[1] 

A sociedade contemporânea se depara com um ritmo de interação e mudança nunca visto antes. A exposição a um universo quase ilimitado de estímulos e informações, assim como a alteração em diversos referenciais sociais, torna o homem moderno, nas palavras de Jorge Forbes[2], um ser “desbussolado”. Este texto visa relacionar de forma breve alguns aspectos desse indivíduo “desbussolado” com ênfase nos aspectos relacionados à sua imagem e seus sintomas, utilizando um referencial teórico baseado na psicanálise. 

Apresentamos inicialmente uma indagação posta por Freud em 1930, acerca da imagem do belo. Em O Mal estar na Cultura, Freud se mostra intrigado com a valorização da beleza pela civilização, ainda que, para esta, não lhe proporcione nenhuma utilidade. Sendo assim, atribui a busca da beleza ou a imagem do belo objetada como uma estratégia de busca da felicidade. É quando diz:

 “Vale a pena observar que os próprios órgãos sexuais genitais, cuja visão é sempre excitante, dificilmente são julgados belos; a qualidade da beleza, ao contrário, parece ligar-se a certos caracteres sexuais secundários (...) A beleza não consta assim com um emprego evidente; tampouco existe claramente qualquer necessidade cultural sua. Apesar disso, a civilização não pode dispensá-la.”

A relação do ser humano com o belo apontado por Freud chega até nossos dias, e, muito além de ser uma questão que a civilização não pode dispensar, ganha uma importância e destaque que talvez o próprio Freud não pudesse prever.

E como, então, esses dois pontos – o ser “desbussolado” e dimensão de destaque dado ao belo – se conectam? Bem, a sociedade contemporânea abriga indivíduos que estão frente a uma gradativa e consistente redução de papéis e rituais ligados a algum tipo de tradição. Esses rituais de alguma maneira sempre cumpriram a função de situar os indivíduos nas sociedades, indicando a cada um o que é dele esperado, a maneira mais apropriada para se comportar. Hoje, na contemporaneidade esses rituais cedem lugar a um ambiente “revolucionário”. Revolucionário porque, aparentemente, dá ao indivíduo a ilusão de que este pode se desvincular das amarras sociais para se tornar senhor de seu destino. Cada um parece poder efetivamente conquistar aquilo que quer, alcançar tudo que lhe parece prazeroso. O ambiente se mostra repleto de oportunidades a serem escolhidas e usufruídas!

            Entretanto, esse admirável mundo das possibilidades traz silenciosamente em sua constituição uma forte e constante demanda para que o indivíduo alcance sempre seu prazer, que estará disponível de alguma forma. O sofrimento passa, de forma sutil, a ser coisa para “otário”, para aqueles que não sabem aproveitar as ofertas proporcionadas pela modernidade, que tem na mídia eletrônica o principal porta-voz dessa nova ordem.

Segundo Maria Rita Kehl[3], pode-se afirmar que não é mais a Igreja Católica, o poder público, ou outro representante do poder e da tradição, mas sim a televisão, que convoca o sujeito a conquistar fama a qualquer preço, como a única possibilidade para que sua passagem por esta vida faça alguma diferença. Além disso, segundo essa autora,

“o sujeito é convocado a ser na imagem, no corpo. Os fracassos dessas tentativas de instalar o ser na imagem, produzem sentimento de aniquilamento, de um não-ser absoluto. Ao mesmo tempo, essa convocação a ser na imagem produz um certo apagamento do desejo, já que o desejo se dirige, de certa forma, a um objeto inexistente, que não tem imagem em lugar nenhum.(...) Começam a fazer intervenções perigosas nos seus corpos, lipoaspirações, operações plásticas, implantações de silicone, mudança na cor dos olhos, pensando que um corpo ‘perfeito’ é o suporte garantido do objeto de desejo.”

Além do que ressalta Kehl, na contemporaneidade o corpo torna-se a fronteira que indica a diferença de um sujeito para outro, sendo marca do indivíduo e, por excelência, aquilo que delimita sua “soberania”. Essa forma específica de individuação tem como característica fundamental fazer com que a pessoa se diferencie dos semelhantes. Entretanto, o corpo não marca somente a distinção de cada um em relação aos demais membros da comunidade a qual pertence; torna-se também permitido ao sujeito construir seu próprio modelo corporal como propriedade. Sua imagem agora é modificada na medida em que há o que ser ofertado.

Mas o que seria realmente essa tão fundamental imagem? Segundo Roland Barthes[4] a imagem corporal deve ser entendida como uma resultante da influência que o ambiente exerce sobre o sujeito, em um processo em que as representações corporais estão em constante transformação. Assim, para Barthes, “meu corpo é para mim mesmo a imagem que eu creio que o outro tem deste meu corpo”.

Chegamos, então, a um indivíduo “desbussolado”, desamparado em suas referências, “bombardeado” por um ambiente que ressalta e valoriza a imagem como forma de garantir felicidade e reconhecimento, além de condicionar os padrões dessa imagem. E, ainda, somamos a essa situação uma ampla oferta de procedimentos cirúrgicos ligados a estética e colocados sob a forma de “produtos” para consumo.

Inegável é que as cirurgias realizadas criteriosamente são modificadoras para o sujeito, que muitas vezes limita seu convívio social devido ao estatuto de sua imagem, a supervalorização de um ideal estético, por outro lado, leva o sujeito a crer que a plástica é um passaporte para a felicidade plena. ''É cada vez mais comum encontrar pacientes que pedem cirurgia, mas na verdade precisam de um psicólogo ou psiquiatra. Querem coisas impossíveis e acham que uma operação vai resolver sua vida'', diz Sérgio Carreirão, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.

Evidentemente, desejar uma cirurgia estética não é um fato que pode ser sempre relacionado a algum tipo de transtorno psíquico. Pessoas que se submetem a um lifting ou lipoaspiração ficam satisfeitas com os resultados obtidos. Outras, porém, procuram continuamente o bisturi para corrigir defeitos imaginários, sem obter resultados que considerem satisfatórios, fazendo de seu próprio corpo uns campos de batalha, transformando o bisturi numa forma equivocada de psicoterapia - uma busca ideal de uma imagem esquizóide, constituída mediante os imperativos de beleza contemporânea. Segundo Kehl uma depressão pode advir  “quando o corpo fracassa como lugar de sustentação de uma imagem que deve ser incontestavelmente desejável. O sujeito contemporâneo é um malabarista que não pode cair em nenhum momento, do seu lugar de visibilidade.”

Outra questão fundamental é que, frente à impossibilidade da transformação almejada no imaginário, não é raro ter um paciente que atribua a suposta culpa a outros.

Em maio de 1999, um jovem turco de 26 anos entrou em uma clínica de otorrinolaringologia em Ludwigshafen, Alemanha, e disparou contra o médico o matando. O jovem estava descontente com seu suposto nariz adunco, ao qual atribuía todos os seus fracassos na vida[5].

Torna-se relevante a seguinte pergunta: alguns pacientes querem coisas impossíveis ou realmente não sabem o que querem?  A resposta pode ser; ambos. Ou seja, para o médico, o paciente quer algo impossível, situado além do que sua técnica e competência podem produzir. Já o paciente, do ponto de vista de sua subjetividade, não sabe o que quer ou, então, parece saber o que quer, mas é conduzida por desejos que não lhe são claros ou conscientes - nesses casos, a demanda por um procedimento estético caracteriza um sintoma.

            Vale ressaltar que o conceito de sintoma citado difere do conceito de sintoma utilizado na medicina. Segundo Antônio Quinet[6], “para a psicanálise, o sintoma não remete a uma doença que tenha algum substrato anatomopatológico, ou seja, não remete a um significado generalizável nem a um significado patológico”. Em outras palavras, o sintoma não é considerado como detentor de um significado objetivo e universal. Ao contrário disso, o sintoma é entendido como elemento de um processo de subjetivação, que traz um si a marca da singularidade do sujeito. Tal entendimento traz várias conseqüências, sendo a principal delas o fato do sintoma não poder ser simplesmente eliminado, pois “longe de ser um defeito a ser corrigido, o sintoma interroga e exige interpretação”.

Para concluir podemos dizer que as alternativas oferecidas pelos procedimentos que visam aperfeiçoar a estética para os indivíduos “desbussolados” da contemporaneidade podem necessitar de um suporte baseado na escuta do sujeito, pois é em sua fala que seus sintomas podem ser detectados e melhor compreendidos. Uma intervenção cirúrgica pode tanto conduzir a um raro e gratificante sentimento de felicidade, quanto a uma forte angustia causada pela tentativa, sempre frustrada, de encobrir algo que ameaça o sujeito, algo do qual ele tenta escapar.

[1] Psicólogo, pesquisador UNIFESP/CEBRID e Membro Consultor da Comissão de Bioética da OAB/MG.
[2] Psiquiatra e Psicanalista.
[3] Psicóloga e Psicanalista.
[4] Sociólogo e Professor, pesquisador na área de Semiótica.
[5] Revista Época de 22/03/2004.
[6] Psiquiatra e Psicanalista.

Autor: Amarílio Cândido Aguiar Vasconcelos Campos


Artigos Relacionados


Uso Racional De Medicamentos

O Casamento Do Dízimo E Da Oferta Bíblica

A Influência Da Psicomotricidade Na Alfabetização

Quem Se Propõe Plantar Tem A Obrigação De Colher

A Relação Da Alma E Do Corpo Em Maurice Merleau-ponty

A Rosa Recheada De Vermes: Uma Comparação Entre Carlos Ginzburg E Umberto Eco, Sobre A Narrativa Policial Histórica

Foucault E A Sujeição