KANT E O PROBLEMA DA EUTANÁSIA



KANT E O PROBLEMA DA EUTANÁSIA 

Thamires Araújo Ávila, acadêmica da Faculdade de Ciências Jurídicas de Diamantina - FCJ

Resumo

Este presente trabalho tem como finalidade analisar a eutanásia voluntária, sob a perspectiva de Kant1 na obra A Metafísica dos Costumes2, verificando a posição do filósofo e seus argumentos em relação ao suicídio. Para tanto, será exposto o caso do médico estadunidense Jack Kevorkian quanto a sua tentativa e forte mobilização para a discussão do suicídio na Corte Suprema, além da doutrina do direito kantiana, tendo em vista a concepção de direito, a ação e a condição justa e injusta, a vida, a autonomia da vontade do ser humano e a liberdade e o imperativo categórico quanto a razão e a moralidade pura.

Palavras-chave: eutanásia; Kant; suicídio; Jack Kevorkian; ação; autonomia; liberdade. 

Abstract

This present work intends to analyze the voluntary euthanasia from the perspective of Kant work in The Metaphysics of Morals, checking the position of the philosopher and his arguments regarding suicide. Will be exposed to both the case of U.S. doctor Jack Kevorkian as his attempt to strong mobilization and discussion of suicide in the Supreme Court, beyond the Kantian doctrine of law in view of the conception of law, action and condition just and unjust, the life, freedom of choice of being human and the freedom and the categorical imperative as pure reason and morality.

Keywords: euthanasia; Kant, suicide, Jack Kevorkian; action, autonomy, freedom. 

Dr. Morte

Jack Kevorkian, médico patologista norte-americano, conhecido como Dr. Morte (Dr. Death), foi responsável por uma grande discussão em relação à eutanásia voluntária (ocorre tendo em vista a vontade do paciente), defendendo-a veemente e assistindo 130 pacientes ao suicídio. Jack sempre afirmou que seus pacientes estavam conscientes e que desejavam a morte, diante do doloroso sofrimento com doenças degenerativas ou incuráveis, e que, portanto, os próprios acionavam a máquina. Por nunca cobrar por nenhuma assistência aos suicídios, percebe-se sua intenção de tornar a questão da eutanásia pública e não de praticar homicídios.

 Após passar por quatro processos, foi condenado por homicídio no último. Tinha o intuito de levar a discussão sobre a eutanásia para a Suprema Corte, mas isso não ocorreu, tendo em vista que esta se recusou a abordar sobre tal assunto.

 

Liberdade e ação

Quanto à posição de Kant em relação à eutanásia não há como afirmá-la com total convicção, pois ele não aborda diretamente essa questão, mas apenas o suicídio. Considerando, porém, o suicídio assistido ou eutanásia voluntária, associado ao pensamento kantiano, analogicamente poder-se-á perceber qual seria sua concepção.

Na eutanásia voluntária a vontade do paciente é levada em conta, ou seja, ele decide e participa ativamente dessa morte serena, sem sofrimento3. Mas, como saber se esta ação é justa ou não?

Para Kant, a ação só é justa quando ela puder coexistir com a liberdade de todos os seres humanos de acordo com a lei universal4, pois não se pode requerer que o princípio de todas as máximas seja como a sua. Logo, se o indivíduo não impuser obstáculos, impedir ou prejudicar a liberdade de outrem, de forma a desejar que isso também seja seguido pelos demais seres humanos no momento de suas ações ou condições, ele age de forma proba, do contrário, seria uma ação injusta. Ou seja, a ação deve ser conforme a razão pura – razão em que a liberdade está limitada às condições das leis universais em conformidade com sua ideia e que ela pode também ser ativamente limitada por outros.

A liberdade, portanto, deve ser entendida como uma vontade livre, que culmina na existência de uma lei moral, pois o sujeito não está liberto dos deveres morais (essa ideia importaria em vícios). Assim, aquele que retira sua própria vida e toma isso como uma máxima, estaria indo de encontro à lei moral, ou seja, ao imperativo categórico kantiano “age somente se tu puderes desejar que a tua ação seja convertida em lei universal5. Perceber-se-á, dessa forma, que o imperativo categórico é uma das principais ideias para se conceber apropriadamente a moral e a ética, e que a ação contrária às últimas, como no caso do suicídio, seria imoral, injusto e antiético.

 

Autonomia da vontade e eutanásia

Para Kant:

Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer). O princípio da autonomia é portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal.6

Dessa forma, autonomia da vontade é aquela concebida independentemente de impulsos ou inclinações naturais, de forma que o sujeito age de acordo com sua própria máxima, seus próprios princípios, desde que eles coexistam com a lei universal.

O fundamento do direito é a moralidade pura, precisamos do dever para agir moralmente. Ou seja, o direito e a lei moral, não são mesclados nem se relacionam ao empirismo. Significam uma relação externa e prática de escolha livre, pois é de uma pessoa juntamente com a outra – coexistência das liberdades a partir da lei universal. Assim, o direito assegura e protege a liberdade dos indivíduos, e isso ocorrerá por meio da coerção, que só será legítima quando é em relação ao imperativo categórico, à razão, não podendo escapar desses. Para Kant, portanto, o Direito é “o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode unir-se ao arbítrio de outro segundo uma lei universal da liberdade”7.

A moralidade fundamenta-se na autonomia do indivíduo, em que ele mesmo cria a sua própria máxima, livre e deliberadamente, de acordo com a lei moral e é através do imperativo categórico que se percebe se a máxima é universal. Assim, se levarmos em conta que quem se suicida destrói a moralidade na sua própria pessoa, visto que a moralidade se finda em si mesma, o suicídio deve ser condenado8. Logo, apenas o ser humano que “age de modo tal que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim, jamais simplesmente como um meio”9 age moralmente. Nas palavras de Kant:

Segundo o conceito de dever necessário para consigo mesmo, o homem que anda pensando em suicidar-se perguntará a si mesmo se a sua situação pode estar de acordo com a ideia da humanidade como fim em si mesma. Se, para escapar a uma situação penosa, se destrói a si mesmo, serve-se ele de uma pessoa como de um simples meio para conservar até o fim da vida situação suportável. Mas o homem não é uma coisa; não é um objeto que pode ser utilizado simplesmente como um meio, mas pelo contrário deve ser considerado sempre e em todas as suas ações como um fim em si mesmo. Portanto não posso dispor do homem na minha pessoa para o mutilar, o degradar ou o matar.10


Consoante esta perspectiva, o indivíduo jamais poderá utilizar-se, ou a outrem, como meio para realizar algo (pois não é um objeto) e sim como um fim, independentemente do quanto seja insuportável suas condições de vida. Se esta, para Kant, existirá enquanto o sujeito abrir os olhos e se relacionar com os objetos através dos sentidos, o indivíduo que tenha representações está vivo. Assim, independentemente da situação do corpo ou mente, se formos capazes de atuar de acordo com essas representações a vida existe e deve ser conservada.

 

Considerações finais

Concorde às exposições dadas anteriormente, analisando a eutanásia voluntária quanto à ação do sujeito, a autonomia da vontade, a liberdade, o imperativo categórico e a razão, encerraremos essa discussão.

Ao olharmos o suicídio assistido realizado pelo médico norte-americano Jack Kevorkian e os seus pacientes, ao decidirem pela morte, concluiríamos que Kant não se põe a favor, pois ambos usar-se-iam, ao realizar o ato, como um meio para atingir um determinado fim; fim este que Kant acredita não ser decidido pelo indivíduo, mas pela divindade, pois apenas Deus tem o direito de retirar a vida do ser humano. Todavia, apesar do filósofo afirmar pela indisponibilidade do próprio corpo para o suicídio, alguns percebem certa contradição, ao entenderem que cada um possui autonomia para criar a sua própria máxima, agindo voluntariamente e decidindo sobre sua própria vida. Contudo, é de suma importância compreender que o filósofo prussiano também afirma que devemos, segundo a ética, agir de forma que a nossa vontade possa se tornar universal, porém, ao optar pelo suicídio, o sujeito estaria sendo contrário à moral, assim essa vontade jamais se tornaria lei universal.

Consequentemente, tendo em vista que o sujeito agiria imoralmente por restringir sua liberdade ao retirar sua própria vida, um bem indispensável e indisponível, e ir de encontro ao imperativo categórico por não agir em conformidade com uma lei moral/universal, além de utilizar-se com meio ao cometer o suicídio, ainda que seu corpo e sua mente sofram demasiadamente, considerar-se-á que Kant é contrário à eutanásia voluntária. Entretanto, esse assunto ainda é algo discutível e em aberto, principalmente no âmbito da autonomia da vontade do ser humano em que cabe a cada um decidir sobre sua própria existência. Além disso, a intenção deste trabalho não foi de esgotar o assunto – muito pelo contrário – e sim de pôr-se a doutrina do direito de acordo com o suicídio, segundo pressuporia Immanuel Kant e concluindo, portanto, que este se colocaria adverso à eutanásia.

1 Immanuel Kant (Königsberg, 22 de abril de 1724 — Königsberg, 12 de fevereiro de 1804) foi um filósofo prussiano, considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna. Suas principais obras são A Crítica da Razão Pura (1781), A Crítica da Razão Prática (1788) e Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785).

2 A Metafísica dos Costumes – 1785, 167 f.

3 AURÉLIO. O mini dicionário da língua portuguesa, 4ª edição.

4 “Lei universal” deve ser entendida como no imperativo categórico kantiano : “age somente se tu puderes desejar que a tua ação seja convertida em lei universal”, assim, uma lei aceita e adotada universalmente.

5 KANT, Immanuel. Foundations of the Metaphysics of Morals. New York: The Liberal Arts Press, 1959, p. 39.

6 KANT, 1974, p. 238.

7 KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. (Trad. Edson Bini) Bauru, SP: EDIPRO, 2003, p. 76.

8 MASCARENHAS, Camila Pinheiro. Kant e a eutanásia: como um clássico da filosofia responderia a um problema colocado pela medicina contemporânea? Campos dos Goytacazes, 2009, p. 54.

9 KANT, I. 1974, p. 229.

10Idem, p. 230.

Referências bibliográficas

KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. Bauru, SP. Edipro, 1974.

FODERARIO, Vinicius Elias. A eutanásia voluntária vista a partir do princípio de autonomia em Kant.

FÁBIO, Valenti Possamai. Autonomia e dignidade em Kant e a eutanásia voluntária.

FONSECA, Ana C. da Costa. “You don’t know Jack” e a recusa de discutir a questão da eutanásia. 2011.

MASCARENHAS, Camila Pinheiro. Kant e a eutanásia: como um clássico da filosofia responderia a um problema colocado pela medicina contemporânea? Campos dos Goytacazes, 2009.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Aurélio, o dicionário da língua portuguesa. Séc. XXI.

PEREIRA, Rosilene de Oliveira. Os fundamentos kantianos: liberdade, moralidade e Direito. An. Filos. São João del-Rei, n. 10. p. 145-149, jul. 2003.

LUNARDI, Giovani Mendonça. A ideia de Liberdade em Kant: uma reflexão para os Direitos Humanos em tempos de Globalização. Grupo de pesquisa “Ética e Direitos Humanos” da Universidade Federal de Rondônia/UNIR. Projeto de doutoramento na Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS.


Autor: Thamires Ávila


Artigos Relacionados


Liberdade E Autonomia

Um Tabu Chamado Suicídio

O Tombado

Liberdade! Liberdade!

Ja Ta Na Hora

A Eutanásia E As Suas Diversidades éticas

A Moral Kantiana E O Imperativo CategÓrico