Constituição E Democracia



A Constituição Federal da República do Brasil completou vinte anos no dia cinco de outubro e, em todos esses anos, passou por diversas emendas e inúmeras propostas de modificações para sua adequação à nova realidade social. A Constituição Federal é o mandamento supremo dos direitos e deveres dos cidadãos, por isso mesmo foi denominada de "Constituição Cidadã", dado o seu conteúdo democrático e proteção às garantias fundamentais dos brasileiros.

Contendo relevantes princípios, o texto constitucional serve de base para legislações inferiores e regulamentações da atividade estatal, no entanto, nos últimos anos passou-se a discutir sobremaneira a necessidade de sua adequação às novas situações fáticas, advindas do impacto globalizante da economia, das relações internacionais, da tecnologia da informação e das enormes diferenças sociais existentes no país.

A principal discussão acerca das alterações constitucionais gira em torno da problemática da manutenção da segurança jurídica em uma legislação que tem exigido contínuas mudanças. Existem correntes oposicionistas que defendem linhas para a ocorrência dessas alterações, a primeira seria a reforma do texto, propriamente dito, com a intervenção do Poder Constituinte derivado e, a segunda, defende o método interpretativo, que se faz através da hermenêutica constitucional.

O desafio inserto nas opções propostas é a manutenção da ordem e da confiabilidade dos cidadãos quanto à segurança jurídica, visto que, é salutar que uma sociedade mantenha princípios basilares para nortear suas relações e necessidades legítimas. Necessário, portanto, que qualquer alteração a ser realizada no texto constitucional seja uma adequação dos parâmetros já estabelecidos, a fim de que não colida com o princípio democrático originário.

A hermenêutica, como método de análise, interpretação e adequação normativa à realidade aplicada, revela-se como um mecanismo adequado de controle constitucional, no entanto, deve ser utilizado com limitações e ponderações, a fim de que não cause verdadeiras contradições em sua aplicabilidade jurídica, decorrendo desse ponto, a necessidade de delineação das dimensões subjetivas concretas ou abstratas de seu efetivo exercício.

Verifica-se, nesta esteira, que é possível valer-se da interpretação constitucional por meio das Ações Diretas de Inconstitucionalidade e Ações Declaratórias de Constitucionalidade. O Judiciário, ao analisar e declarar legítima a controvérsia jurídica tem o poder de decisão, desde que o resultado tenha estrita obediência ao texto constitucional e, ainda, vinculação aos princípios fundamentais da "prevalência constitucional", "conservação das normas" e o da "exclusão da interpretação".

Além das questões quanto à tecnicidade objetiva que deve revestir a interpretação das normas constitucionais, o país depara-se com outro problema que influencia diretamente as questões referentes às alterações da Carta Magna, que é o contorno político que estas interpretações podem adquirir. Não se propõe que as decisões de caráter constitucional não envolvam conteúdos de ordem política, isto seria praticamente inviável, entretanto, é imprescindível estabelecer uma margem de segurança, a fim de que ideais político-partidários não se sobreponham aos princípios norteadores do Direito Constitucional.
Deste modo, fala-se não mais de uma interferência política, mas de uma "politização" do Judiciário, o que vem suscitando acirrados debates e críticas favoráveis ou não, no mundo jurídico. De fato, esta aproximação do Poder Judiciário com a política resulta justamente da ausência da participação popular nas necessárias e inadiáveis alterações que o texto constitucional exige, face às mudanças sociais já destacadas e, entre tantas, podem ser citadas algumas recentes como a autorização para as pesquisas com células-tronco e a proibição do nepotismo em todas as esferas da Administração Pública.

A citada ausência popular se caracteriza pela ineficiência de seus representantes legais que formam o Poder Legislativo, detentor imediato desta prerrogativa de revisão legal, incitando diretamente a efetiva e esperada participação do Supremo Tribunal Federal, que supre com grandeza esta falha democrática. Por esta razão, estudiosos do constitucionalismo contemporâneo preocupam-se com a limitação desta lenta substituição do Poder Legislativo e uma suposta acomodação e inércia quanto aos controles de constitucionalidade.

No entendimento de Celso Fernandes Campilongo, existem estruturas diferentes entre o mundo jurídico e político que não podem ser confundidas: "A representação política tem estruturas, funções e técnicas de atuação que não lhe permitem substituir ou suprir as deficiências e lacunas dos sistemas econômico e jurídico. A economia e o direito, por sua vez, operam em bases que não se confundem com as da política. É evidente a enorme relação entre estes sistemas. Mas isso não significa que um determine o outro. Política, economia e direito podem trocar prestações, mas nunca atuar com lógicas intercambiáveis. Dito de outro modo: os sistemas sociais particulares são funcionalmente isolados e, por isso, só podem ser autocontrolados e auto-estimulados. Só a política pode reproduzir o sistema político.Quando o sistema político se confunde com os sistemas econômico e jurídico; quando há sobreposição de funções entre os sistemas; quando a diferenciação funcional encontra resistência em estruturas hierárquicas, o poder passa a ter donos – como diz Raimundo Faoro – e a democracia transforma-se num lamentável mal-entendido".

Portanto, a atividade jurisdicional não deve ser submetida a critérios políticos e a interpretação da letra constitucional deve atender prioritariamente o interesse público, considerando a sociedade pluralista brasileira, sendo assim discutida e analisada de forma a manter sua finalidade democrática e legitimamente prevista na Constituição Federal.

Outra discussão derivada da questão interpretativa constitucional foi suscitada por ocasião da criação do Conselho Nacional de Justiça, que levou a Associação dos Magistrados do Brasil à propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3.367/DF, julgando-se legítima sua capacidade, em razão de constituir-se, segundo Carlos Brito, uma entidade de classe de âmbito nacional que evidencia o estreito vínculo objetivo entre as finalidades institucionais e o conteúdo do ato normativo por ela defendido.

A Associação dos Magistrados questionou a constituição, composição e competência do Conselho Nacional de Justiça, uma vez que ao referido órgão compete a aplicação de sanções disciplinares e fiscalização dos atos do Judiciário, apresentando propostas políticas judiciais ao Congresso Nacional, o que, do ponto de vista dos Juízes, resultava em uma afronta a independência do Poder.

Na Sessão Plenária do dia 13 de abril de 2005, o Supremo Tribunal Federal, admitiu em parte a ação e, no mérito, julgou improcedentes os pedidos, mantendo a constitucionalidade dos dispositivos contidos no artigo 103-B da Constituição Federal. O Ministro Cezar Peluso, Relator da ADI-3367/DF, assim manifestou em seu voto: "(...) a independência do Judiciário e da magistratura guarda singular relevo no quadro da separação dos Poderes e, nesses limites, é posta a salvo pela Constituição da República. De modo que todo ato, ainda quando de cunho normativo de qualquer escalão, que tenda a romper o equilíbrio constitucional em que se apóia esse atributo elementar da função típica do Poder Judiciário, tem de ser prontamente repelido pelo Supremo Tribunal Federal, como guardião de sua inteireza e efetividade. Ninguém tampouco tem dúvidas acerca da superior importância atribuída pela Constituição Federal às normas da separação dos Poderes, em conformidade, aliás, com nossa tradição republicana. Já no art. 2º, estatui: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". E logo o sublima a cláusula irremovível, vedando, no art. 60, § 4º, inc. III, seja "objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) III – a separação dos Poderes". Donde se tem logo por indiscutível que o princípio da separação e independência dos Poderes integra a ordem constitucional positiva, em plano sobranceiro. E, nessa perspectiva, cada um deles tem sua organização regulada em capítulo distinto no Título IV: arts. 44 a 75 (Legislativo), arts. 76 a 91 (Executivo) e arts. 92 a 135 (Judiciário). Sob o prisma constitucional brasileiro do sistema da separação dos Poderes, não se vê a priori como possa ofendê-lo a criação do Conselho Nacional de Justiça. À luz da estrutura que lhe deu a Emenda Constitucional nº 45/2004, trata-se de órgão próprio do Poder Judiciário (art. 92, I-A), composto, na maioria, por membros desse mesmo Poder (art. 103-B), nomeados sem interferência direta dos outros Poderes, dos quais o Legislativo apenas indica, fora de seus quadros e, pois, sem laivos de representação orgânica, dois dos quinze membros.

A longa discussão da criação do Conselho Nacional de Justiça ampliou o debate sobre a manutenção da independência dos Poderes, aludida pelo Relator Ministro Cezar Peluso e remete ao ponto anterior desta argumentação, que é a intervenção do Poder Judiciário e as limitações de competência na revisão do texto constitucional.

Ora, se os magistrados defenderam a autonomia do Poder Judiciário, muito embora a argüição de inconstitucionalidade tenha sido julgada improcedente, tal ação reflete uma preocupação com a ordem jurídica, preocupação esta que deveria se estender face ao parasitismo político do Poder Legislativo, que ameaça os próprios fundamentos constitucionais.

Conclui-se, desta feita, que urge fomentar o debate e a consciência para a cidadania, no sentido de levar o principal agente e destinatário do Direito, o povo, ao efetivo exercício de suas prerrogativas constitucionais e que as interpretações e adequações da Constituição Federal reflitam as reais necessidades sociais e o interesse público.


Autor: Nayá Fonseca


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