A Compreensão Irônica Da Existência E O Fazer Poético No Romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas"



1. Machado de Assis versus o cânon literário: ruptura de gêneros com a "nova província do escrever".

Algo que preocupa e até incomoda muitos autores é a crítica literária. Machado de Assis também foi vítima desse mal, numa época em que o "aprisionamento" às escolas literárias era muito forte. Se ele fosse seguir à risca o que o cânon dizia, ele teria que se enquadrar totalmente nos moldes da escola da época – o Realismo -, porém ele não queria se prender a classificações tão comuns.

Sua preocupação era em retirar das outras tendências aquilo que lhe interessasse e fugir de suas falsas determinações, dando um novo tratamento aos assuntos, mostrando a sua originalidade. Machado, enfim, estava acima das escolas.

É importante perceber que essa sua "retirada de outras tendências" não constituía plágio, afinal, entre grandes escritores, não há plágio. O que existe é um procedimento de absorção e transformação, ou seja, absorve-se o que há de bom, transformando-o em melhor ainda, e incorporando-o ao seu estilo. Sendo assim, quando ingressa em um novo solo poético, o que foi importado assume uma nova disposição.

Machado tinha um estilo próprio de escrever: irreverente, debochado, livre, quase fazendo "o que dava na telha". O interesse desse autor era a arte pura e não a cópia fiel da realidade, até porque o próprio real é ambíguo, por isso não poderia ser considerando puramente Realismo. É justamente por isso que a crítica sempre ficou buscando uma forma de defini-lo e de interpretá-lo segundo os quadros tradicionais.

Machado, sempre irônico e sem deixar passar nada, faz comentários críticos sobre essa necessidade de enquadramento em estilos de época, na própria obra. Vale ressaltar que esses comentários são sutis, quase que despercebidos, pois são feitos no meio da trama, como pode ser observado no seguinte fragmento do capítulo XIV, das Memórias Póstumas de Brás Cubas, em que Brás Cubas narra o seu primeiro beijo, criticando o Romantismo e o Realismo:

(...) Como ostentasse certa arrogância, não se distinguia bem se era uma criança com fumos de homem, se um homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto que foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes e, por compaixão, o transportou para os seus livros.

Logo ao abrir o livro, o leitor se depara com uma página reservada especialmente a ele, de nome AO LEITOR. Nessa página, Machado se apropria do próprio personagem principal – Brás Cubas – para dar a sua palavra inicial à crítica literária. Machado já previa a severa tentativa que a crítica teria ao tentar estabelecer o gênero do livro, se era romance ou não era.

(...) Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião. Mas eu ainda espero angarias as simpatias da opinião (...).

Acontece que há uma ruptura com todos os gêneros tradicionais, como busca da criação do próprio gênero – gênero sui generis - comprovando mais uma vez a intenção proposital do autor de não seguir o cânon. Segundo ele, a obra de arte deveria seguir as suas próprias regras, mostrando que o escritor é um ser autônomo. Ele mostra sua irreverência, não querendo saber se o livro vai ter menos de cinco leitores, se vão falar da forma de sua narrativa, se vão especular sobre seu gênero, e muito menos se vão gostar do livro:

(...) A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se não te agradar, pago-te com um piparote e, adeus.

Essa separação de gêneros, que data da época clássica da Grécia, é no mínimo uma bobagem: é como se freassem a capacidade de um escritor. Desde sempre, há uma força dentro de nós que clama por ordem, por equilíbrio, como se organização fosse alguma virtude ou facilidade. A separação dos gêneros, portanto, traz a idéia de "gênero" pressupondo regras estáveis, uma estruturação em modelos; e o romance, é por essência, totalmente independente e alheio a tudo isso.

A palavra "crítica" vem do grego e significa julgar no sentido de apreciar. Porém, os críticos não compreendem o sentido original, e entendem tratar-se de um julgamento no sentido legal, ou seja, condenação. Movidos por este espírito, eles denigrem as obras e, conseqüentemente, os seus autores, já que não se pode falar mal de um livro, sem que isso não atinja o seu autor.

Por que importa tanto saber o gênero do livro e a que escola literária pertence?! Os críticos não possuem sensibilidade suficiente para compreender o que os escritores desejam com as suas obras. Assim, eles se acham no direito de assumir uma espécie de poder supremo, decretando leis, estipulando novas divisões, etc. Essas normas do "bem escrever" não servem de nada, apenas como uma censura aos pobres escritores: é quase como determinar que um bailarino deva dançar acorrentado.

Sendo assim, evitando esses dogmas, Machado quebra com as normas do "bem escrever", e inaugura uma "nova província do escrever", recusando-se a participar de qualquer determinação tradicional que cause um dano ao dano ao propósito da obra. A obra em si, reivindica a todo o instante a sua liberdade de criação: é ela quem conduz o escritor.

2. O Satyrikon dionisíaco em Memórias Póstumas de Brás Cubas: a mundividência tragicômica e o princípio da reversibilidade dos contrários.

Na total oposição ao que era estabelecido pela tradição cultural e literária, Machado de Assis adota uma perspectiva inovadora de transposição da visão tragicômica do drama dionisíaco para a forma da ficção irônica, celebrando o duplo domínio da vida e da morte.

O fundamento da criação literária que poematiza a tensão harmônica dos contrários é a consonância dissonante do trágico e do cômico: um não cala o elemento de oposição que vive na existência do outro. O Satyrikon é o resultado disso: o impacto dúbio sobre o leitor, que não sabe se ri ou se chora. O poeta tragicômico, portanto, possui a capacidade de suscitar emoções discordantes e complementares, movendo da seriedade ao riso, das excitações cômicas às emoções dilacerantes, fazendo com que o risível e o terrível simultaneamente se atraem e se afastem.

O narrador machadiano representa-se dramaticamente revestido de múltiplas máscaras. A máscara se impõe como símbolo da teofania dionisíaca: ela sozinha não cria nenhum desconcerto, porque nada contém dentro de si, porém, quando um rosto a veste, há certo mistério por parte de quem a vê. Assim, a máscara simboliza a manifestação do que é simultaneamente presente e ausente, mais uma vez, mostrando as unidades duais que permeiam todo o romance, em que o narrador manipula as emoções do leitor, afinando-o aos seus propósitos.

Quando Dioniso, o deus louco, chega, todos os limites que a normalidade impôs, devem desaparecer. O homem é atirado para fora de tudo que é conhecido, estabelecido e familiar, e para dentro do caos primordial. É exatamente o que acontece com o leitor desavisado ao ler estas Memórias, já que, ao mesmo tempo, Brás Cubas é cômico e rabugento, tem aspecto risonho e angustiado, e escreve seu livro com a pena da galhofa e a tinta da melancolia.

Na visão desdobrada do deus do duplo domínio do ser e do nada, a tragicomédia representa o drama universal da vida que não cessa de morrer e da morte, que não cessa de nascer. Nas Memórias Póstumas, a morte acossa a vida durante toda a narrativa. O próprio escritor surge no ato da morte: se Brás Cubas não tivesse morrido, o "defunto autor" não existiria e, conseqüentemente, não haveria estas Memórias.

O próprio título do livro já gera uma duplicidade entre a vida e a morte. Só quem é vivo é que possui memórias, mas aquilo que é póstumo pertence à morte. O que está entre essa interação é o verme, representado pela passagem do vivo para o morto, e a quem Brás Cubas dedica este livro: Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico, como saudosa lembrança, estas Memórias Póstumas.

Brás Cubas era imaturo diante das unidades duais, porém três fatos o fazem aprender a condição da mundividência tragicômica, que são: o delírio com o Mito de Pandora, a filosofia do Humanitismo, introduzida por Quincas Borba, e a Lei da Equivalência das Janelas.

Pandora, ou Natureza aparece em seu delírio, dizendo ser mãe e inimiga; aquela que dá e aquela que tira a vida, ou seja, faz da vida um flagelo e traz o rosto indiferente como o sepulcro. Brás Cubas percebe, então, que Pandora é vida e morte, e que o seu delírio, por si só, já é um movimento rumo ao caos, uma excursão às avessas, isto é, uma catábase.

Ela ensina a Brás Cubas que a vida e a morte não se contradizem e que o mundo é um jogo de sentimentos desencontrados, como: (...) - flagelos e delícias, - desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancólica, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo (cap. VII).

O Humanitismo é uma reinterpretação sério-jocosa de todos os valores propostos pelo Humanismo do Ocidente, como bondade, solidariedade, ética, moral, etc. Trata-se de um sistema de filosofia introduzido por Quincas Borba, que ensina que o homem não deve ter nem o otimismo triunfante da vida, nem o pessimismo resignado da morte, mas a sabedoria sério-jocosa da reversibilidade geral dos contrários. E, além disso, ensina que a vida é cercada de morte por todos os lados (sendo a morte a fase contrativa de Humanitas, ou seja, o retorno ao nada); e que os vícios se tornam virtudes, e vice-versa:

(...) Se entendeste bem, facilmente compreenderás que a inveja não é senão uma admiração que luta, e sendo a luta a grande função do gênero humano, todos os sentimentos belicosos são mais adequados à sua felicidade. Daí vem que a inveja é uma virtude (cap. CXVII).

Durante todo o livro, Brás Cubas vai mostrar que aprendeu a complementaridade dos contrários, pela maneira como narra todas as mortes existentes ao longo da história: sem dar muita importância, sem sofrer, sendo imparcial, até mesmo ao narrar sua própria morte: (...) e o corpo fazia-se-me planta, e pedra e lodo, e coisa nenhuma (cap. I).

Há, ainda, a Lei da Equivalência das Janelas, em que Brás Cubas admite que um mesmo acontecimento pode provocar duas reações contrárias, dependendo do valor envolvido. Essa lei estabelece que o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência.

Ao encontrar uma moeda, ele resolve devolvê-la ao verdadeiro dono, porém, ao encontrar um embrulho com cinco contos de réis, embolsa-o. Assim, há uma desconstrução com o discurso moralista, mais uma vez, mostrando que o ser humano é tensionado pelo impacto dúbio da consciência cindida em polêmica consigo mesma, empuxada por forças simétricas e opostas.

Portanto, pode-se declarar que a ambivalência do homem é fundamento da mundividência tragicômica e da compreensão irônica da existência. Machado traz para suas obras o espírito dionisíaco do que acontece verdadeiramente dentro de cada um de nós: nunca somos felizes ou infelizes, bons ou maus por inteiro; sempre estamos em constante mudança de sentimentos e comportamentos. Se a vida fosse tão certa e equilibrada, seria de uma chatice tremenda; é preciso que haja sempre o elemento do inesperado, que nos traga novidades e nos tire da monotonia; e nesse sentido, é preciso que haja a morte para que haja a vida, pois viver é não cessar de morrer.

3. A atmosfera do livro: o desdobramento da ironia machadiana com a parábase permanente e a narrativa em si.

Primeiramente, é importante ressaltar que a ironia não é simplesmente uma figura retórica. Ela atinge uma dimensão muito maior como princípio de composição artística, pois tem a capacidade de integrar um acontecimento a um processo de reflexão crítica, constituindo, então, uma parábase permanente.

Ironia, eironeia, quer dizer questionamento e tem por fundamento uma duplicidade, em que o sujeito torna-se ator e espectador de si mesmo, abrindo um intercâmbio para a consciência, em meio à experiência, e para a razão, em meio à paixão.

Na visão da ironia e da alegoria, o homem, o mundo e o ser são manifestações dialéticas do orgânico e do não-orgânico, do realizado e do não-realizado, do finito e do infinito, do dizível e do indizível, fazendo com que todas as posições coexistam, não admitindo a separação dos contrários.

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, a função da parábase é assumida pelo narrador autoconsciente que, refletindo permanentemente sobre o ato de narrar, afasta-se dos eventos narrados para estabelecer um espaço polêmico com a sua própria obra, desdobrando-se em autor e crítico de sua criação, exigindo um leitor atento, que possa interagir com ele:

Há aí, entre as cinco ou dez pessoas que me lêem, há aí uma alma sensível, que está decerto um tanto agastada com o capítulo anterior, começa a tremer pela sorte de Eugênia, e talvez... sim, talvez, lá no fundo de si mesma, me chame cínico. Eu cínico, alma sensível? Pela coxa de Diana! Esta injúria merecia ser lavada com sangue, se o sangue lavasse alguma coisa nesse mundo (cap.XXXIV).

Ele ironiza os leitores superficiais que lêem apenas em busca de entretenimento, querendo só a parte de "ação" da narrativa, não estando interessados na aquisição de conhecimento. Além disso, como foi dito anteriormente, Machado ironiza os críticos literários, que não são capazes o suficiente de entender as sutilezas da obra.

Porém, a ironia fundamental de todo o livro realiza-se em relação à não-compreensão da posição ambígua e contraditória do homem: a tradição dicotômica do pensamento ocidental, o puritanismo filosófico e o maniqueísmo religioso não se compatibilizam com a natureza dual do homem, desfigurando a realidade da condição humana. Logo, Machado possui uma compreensão irônica da existência, ou seja, o homem é bom e mau ao mesmo tempo, de acordo com o princípio da reversibilidade dos contrários.

Essa dualidade do ser humano, expressa ricamente através da ironia, pode ser exemplificada com as diferentes atitudes de Brás Cubas, em relação à moeda e ao embrulho de dinheiro encontrado, como já foi expresso anteriormente na lei da equivalência das janelas. A mudança na postura do personagem é evidente, mostrando que as pessoas são assim mesmo: fazem o que convém, de acordo com seus interesses pessoais, até sendo hipócritas consigo mesmas.

Essa mudança brusca de comportamento, realizada pela dualidade dos contrários, também é presente em outros personagens da obra, como, por exemplo, Virgília, que traiu o marido, mas chorou a sua morte com sinceridade; Marcela, que parecia amar Brás Cubas, mas o interesse era no dinheiro dele; Dona Plácida, que condenava Brás Cubas e Virgília por serem amantes, mas diante de cinco contos de réis, não falou mais nada; e Prudêncio, que sofreu os castigos de escravo, mas quando recebeu sua alforria, arrumou um escravo para castigar.

Sendo Memórias Póstumas de Brás Cubas um romance autoconsciente, exibe e ostenta a sua condição de artifício e ironiza a questão da verossimilhança do início ao fim, ressaltando que o mundo ficcional é um constricto autoral elaborado sobre um fundo de convenção literária.

É uma narrativa dialogicamente estruturada, em que o leitor é fundamental, pois há um intenso processo de comunicação com ele, como se ele desempenhasse um papel no texto. Assim, o autor compartilha com o leitor a tarefa de narrar. Vejamos o capítulo IX, que trata da Transição, em que Machado chama de maneira nada modesta a atenção do leitor para a maneira coerente de sua narrativa:

E vejam com que destreza, com que arte faço eu a maior transição deste livro. Vejam: o meu delírio começou em presença de Virgília; Virgília foi o meu grão pecado da juventude; não há juventude sem meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci. Viram? Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor: nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método, sem a rigidez do método.

Observa-se uma ruptura com o tempo e o espaço, quebrando a linearidade lógica, não havendo um encadeamento de eventos, mas sim uma livre associação de idéias, em que a própria obra conduz o escritor, e não o contrário, já que ele se deixa levar por tudo que vai vindo à mente naquele momento.

Essa recusa de usar a linha reta se dá porque ela é sinônima de tédio, monotonia, e falta de imaginação. É a adoração de leitores superficiais e preguiçosos, que querem chegar logo ao final da história para saber o que acontece, ao invés de repararem as minúcias da obra, dissecando-a. Logo, nessa obra há a preferência pelo círculo, pela diagonal, pela espiral, mas nunca pela linha reta. O narrador pode até perder o fio da meada: (...) Pobre Destino! Onde andarás agora, grande procurador dos negócios humanos? Talvez estejas a criar pele nova, outra cara, outras maneiras, outro nome, e não é impossível que...Já me não lembra onde estava....Ah! nas estradas escusas (cap. LVII).

Esses movimentos que trazem um desvio ao caminho da trama, constituem digressões, e são espaços da parábase. O narrador tem o privilégio de interromper o ritmo das ações para comentar, generalizar, contar algo que ele tenha se lembrado, etc. Assim, ele pode lançar a história para frente, para trás, como quiser, fazendo um movimento progri-regri-digressivo, criando dificuldade aos leitores que tem pressa de chegar ao final.

O importante não é o que narrar, mas narrar como se narra, levando à auto-reflexão crítica, como pode ser observado em: (...) Tu tens pressa de envelhecer e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem (cap. LXXI). Assim, o romance é uma parábase de ponta a ponta, em que texto e metatexto caminham lado a lado.

Brás Cubas, um defunto autor, paira acima dos cadáveres e, assim, tudo vê e tudo sabe. De sua posição privilegiada, supera as unidades duais, adquirindo a consciência irônica de conciliá-las e aceitá-las. Além disso, não se escandaliza mais com a ambigüidade humana, tirando todas as máscaras e libertando-se da alma exterior.

Pode, ainda, atuar no duplo domínio do vivo e do morto, vendo a morte do ponto de vista da vida, e a vida do ponto de vista da morte; e transita entre o entrar e sair da pele do personagem, podendo falar do ponto de vista do ator e do espectador.

Assim, o aspecto fundamental na análise da narrativa é que a própria possui uma perspectiva dual, através de dois "eus", que são um e o mesmo: o eu-narrante (narrador) e o eu-narrado (protagonista) e que, por sua vez, são os desdobramentos do próprio defunto autor.

O narrador é o espectador crítico, ironicamente distanciado dos eventos; enquanto o protagonista é o ator que se deixa levar emocionalmente pelos acontecimentos narrados. Isso mostra a utilização simultânea dos pontos-de-vista do narrador, que é espectador e eu-narrante, constitui o eu de agora, representado pela consciência; e o do protagonista, que é ator e eu-narrado, constitui o eu de outrora, representado pela experiência. Assim, enquanto o eu de outrora admite um mundo maniqueísta, o eu de agora é regido pelo princípio geral da reversibilidade dos contrários.

Diante de Marcela, por exemplo, o defunto autor admite essa dupla postura. No papel de eu-narrado, ele mostra-se totalmente envolvido com os eventos narrados, que foram vivenciados por ele: (...) Tive ímpetos de a estrangular, de a humilhar ao menos, subjugando-a a meus pés. Ia talvez faze-lo; mas a ação trocou-se noutra; fui eu que me atirei aos pés dela, contrito e súplice; beijei-lhos, recordei aqueles meses da nossa felicidade solitária, repeti-lhe os nomes queridos de outro tempo, sentado no chão, com a cabeça entre os joelhos dela, apertando-lhe muito as mãos; ofegante, desvairado, pedi-lhe com lágrimas que me não desamparasse (cap. XVII).

O que aconteceu naquela época – outrora- é compartilhado com o leitor baseado na experiência do eu-narrado, mas, a reflexão crítica póstuma do eu-narrante serve para complementar, à medida que mostra o amadurecimento obtido agora com a consciência: Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos (cap. XVII). Assim, o ator mostra-se ingênuo, enquanto o espectador enxerga tudo além, de maneira madura.

Diante disso, há ainda a Teoria do Medalhão: em vida, Brás Cubas mostrou-se com ares de futilidade, querendo ser reconhecido, preocupando-se com as aparências. Por isso, resolveu criar um emplasto, um remédio destinado a aliviar a melancólica humanidade.

Somente depois de morto, em sua posição privilegiada de eu-narrante, já maduro e desmascarado, confessa que só teve essa idéia, pois queria ter o gosto de ver impressas em todos os lugares essas três palavras: "Emplasto Brás Cubas":

(...) Para que nega-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: - amor da glória (cap. II).

Pode-se concluir que Machado é um verdadeiro escritor, distinguindo-se dos escrivinhadores, já que compõe uma arte poética: o narrador autoconsciente, em parábase, chama a atenção do leitor para a coesão e coerência interna da sua obra. A advertência ao leitor é um alerta para o tipo de leitura que o romance requer: uma leitura progri-regri-digressiva, circular, antilinear, capaz de estabelecer correlações, decifrar as entrelinhas, perceber as sutilezas narrativas, questionar, concluir, e principalmente, fazer com que o leitor saia da inércia e torne-se participante da obra.

Referências Bibliográficas

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Garnier, 1992.

SOUZA, Ronaldes de Melo e. Introdução à poética da ironia. Linha de Pesquisa (2000) 1: 27-48.

SOUZA, Ronaldes de Melo e. O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006, 57-67.


Autor: Fabiana Gonçalo


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