Fernando Pessoa: As Múltiplas Almas Que Dividem Um Ser



Dessa forma para Fernando Pessoa A arte, em sua plena definição, é a expressão harmônica de nossa consciência das sensações ... é a sensação multiplicada pela consciência. Diante desse raciocínio de Pessoa entende-se que cada idéia, cada sensação expressa pelo sensacionalista tem que ser expressa de uma maneira diferente daquela que exprime outra.

Para Tereza Cristina Cerdeira, Fernando Pessoa joga de forma consciente um jogo infinito, pois ela acredita que ao inventar outros eus ele cria uma maneira de iludir o vácuo do real e que ao gerar poetas deixou textos que se negam a submeter-se a um único autor.

O eu múltiplo é, paradoxalmente, o eu dilacerado, numa inesperada matemática em que multiplicar-se é dividir-se. Ser muitos é exacerbar a consciência do nada, é perscrutar por muitas vias o vazio do ser, é experimentar a sensação dolorosa de partir-se em cacos, sem a proposta de vir um dia, a recompor o vaso, por serem mais os cacos que a loiça, porque o todo não é a soma das partes, porque o eu é uma ficção. 1

Assim, de acordo com Tereza Cristina nota-se que o sujeito perde definitivamente a ilusão do centramento e da inteireza do eu, dissolvendo inexoravelmente a imagem do todo, do pleno e do integro.

Para realçar tais perspectivas o poema Não sei quantas almas tenho revela um eu partido, um eu esfacelado pelo tempo impossibilitando-o de se encontrar consigo mesmo, impossibilitando também do auto-conhecimento promovendo um inevitável estranhamento de si mesmo.

Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem  alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo:  "Fui  eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu

Fernando Pessoa

A multiplicidade é destaca por Ítalo Calvino como sendo um dos valores que ele gostaria que fosse transferido para a Literatura do novo milênio. Para Calvino quanto mais à obra tende para a multiplicidade mais se distancia da sinceridade interior de quem escreve.

Fernando Pessoa, poeta múltiplo, já procurava despersonalizar-se para fazer surgirem vários eus nesta perspectiva. A fragmentação instala-se em sua poesia demonstrando que o conceito de individualidade inexiste exprimindo um caráter múltiplo do ser. Não sei quantas almas tenho

Ítalo Calvino pergunta, portanto a cerca desta questão:

Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras. 2

Assim Calvino também contribui para a concepção sobre a inexistência de uma personalidade unificada como garantia de uma verdade que não seja parcial.

O poema se intitula e se inicia com a frase: Não sei quantas almas tenho. Essa colocação evidencia ao mesmo tempo duvidas existenciais e a certeza de um eu múltiplo. Tal aspecto é almejado por Ítalo Calvino ao idealizar: Quem dera fosse possível uma obra que nos permitisse sair da perspectiva limitada do eu individual. 3 Essa expectativa de Calvino é demonstrada nesta poesia de Fernando Pessoa, a qual revela a consciência da multiplicidade, da mutabilidade, e da limitação de apenas ser um ser:

Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.

Nota-se que a mutabilidade e a inconstância revelam o desconhecimento de um eu devido ao seu caráter de multiplicidade: Torno-me eles e não eu.. Para tanto, nota-se que o conceito de individualidade inexiste já que.

Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.

 Assim, o que Ítalo Calvino almejava como saída da perspectiva limitada do eu individual 4 realiza-se nesta poesia.

As antíteses que caracterizam o eu lírico através de uma descrição paradoxal de um eu multifacetado, revelam que o ser consiste na soma de vários aspectos contraditórios. Dessa forma constata-se uma negação do ser e uma revelação do não ser.

Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só.

Assim, nada mais sensato do que a busca do auto-conhecimento para fazer existir um desconhecido de si próprio: Não sei sentir-me onde estou. confessando alheamento e movido pela consciência da ausência de si, de um eu que não se mostra único, mas como um livro com diversas páginas e por se compor delas torna-se Diverso, móbil e só como traduz Calvino uma biblioteca ... onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras 5

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.

Também se observa que o ato de pensar pode contribuir e interferir no trato de questões existenciais que afligem o eu-lirico.

O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.

A identidade do ser e do não-ser, ou seja, o mistério do ser revela-se na poesia como um reflexo dos dilemas existenciais, sobretudo a dúvida sobre as sensações:

Noto à margem do que li
O que julguei que senti.

Assim, nestes versos, confirma-se o anterior Quem sente não é quem é.

O eu-lírico então, ante a multiplicidade do ser só pode revelar duvidas como consciência de si mesmo.

BIBLIOGRAFIA

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo, Cia. das Letras, 1990, p.138.

CERDEIRA, Cristina Cerdeira. Fernando Pessoa. A Aventura suicida da modernidade. In: O Avesso do Bordado.Ensaios de Literatura. Rio de Janeiro: 1995.

PESSOA, Fernando. Não sei quantas almas tenho. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/fpesso35.html> em: 19/10/2006.


Autor: Sandra Moreira dos Santos


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