Células-tronco: Uma Perspectiva Para Cura de Doenças



Francisco George Rodrigues de Andrade[1]

Introdução

Em 1999 foi demonstrado pela primeira vez que células-tronco de tecidos adultos mantinham a capacidade de se diferenciar em outros tipos de tecido, o que lhes renderam à época, pela Revista Science, o título de "Scientific Breakthrough of the Year" (Avanço Científico do Ano). No ano anterior, foram determinadas as primeiras linhagens de células-tronco embrionárias humanas, derivadas de embriões excedentes de ciclos de fertilização in vitro. (PEREIRA, 2008).

A partir de então a crescente expectativa do uso terapêutico destas células para cura de males que desafiam a Ciência tem ocupado bastante espaço na mídia em geral, especialmente a televisiva, gerando um intenso debate entre cientistas, políticos, religiosos e leigos em geral. Segundo Alessandra Vieira (2005), a perspectiva é a de que, em virtude da plasticidade que apresentam, as células-tronco sejam um verdadeiro tesouro para promover a cura de diversas doenças como o Câncer, Mal de Alzheimer, Doença de Parkinson, dentre outras, atuando na regeneração de tecidos afetados.

As células-tronco são tratadas em dois grupos distintos: as embrionárias e as adultas. De acordo com Lygia Pereira (2008), enquanto o potencial de diferenciação das primeiras está bem caracterizado em camundongos e em humanos, seu uso em terapia celular e em pesquisa tem sido dificultado por questões de histocompatibilidade, segurança e ética. Diferentemente, células-tronco adultas não apresentam esses empecilhos, mas a dimensão de sua plasticidade ainda é objeto de intensa investigação científica.

O objetivo deste trabalho é demonstrar a importância das pesquisas com células-tronco comprometidas com o desenvolvimento de novas terapias para cura de doenças, abordando as principais descobertas científicas nesta área, bem como discutir os aspectos éticos e morais envolvendo o uso de células-tronco embrionárias.

Células-tronco: o que são e onde podem ser encontradas

Todos os organismos vivos são constituídos por células. Segundo Carvalho (2001), o indivíduo humano possui em sua constituição aproximadamente 75 trilhões delas, agrupadas em torno de 200 tipos distintos, todos eles derivados de células precursoras, denominadas células-tronco, que são indiferenciadas e não especializadas.

Células-tronco são definidas como células com grande capacidade de proliferação e auto-renovação, com capacidade de responder a estímulos externos e da origem a diferentes linhagens celulares mais especializadas (PEREIRA, 2008)

De acordo com sua plasticidade e poder de diferenciação, Vieira (2005) relata que as células-tronco são de diversos tipos: totipotentes (podem produzir todas as células embrionárias e extra embrionárias); pluripotentes(podem produzir todos os tipos celulares do embrião); multipotentes (podem produzir células de várias linhagens); oligopotentes (podem produzir células dentro de uma única linhagem) unipotentes (produzem somente um único tipo celular maduro).

Em relação à idade e ao estágio de desenvolvimento do organismo de onde são obtidas as células-tronco podem ser embrionárias, quando tiradas de embriões, ou adultas, quando extraídas de tecidos adultos diferenciados.

Para se falar em células-tronco embrionárias, o assunto remete-nos às primeiras fases de vida de um indivíduo. Quando um espermatozóide se funde com o óvulo, forma-se uma única célula, denominada zigoto, que após a fecundação divide-se em duas, as duas em quatro, as quatro em oito e assim por diante. Até o estágio de oito células, cada uma delas é capaz de se desenvolver em um ser humano completo (totipotentes).

No estágio entre oito e dezesseis células, as células desse embrião se diferenciam em dois grupos: um grupo de células externas que vai dar origem à placenta e aos anexos embrionários, e outro com células internas (massa celular interna) que vai originar o embrião propriamente dito. Depois de 72 horas, o embrião chega ao estágio de blastocisto, momento em que apresenta em torno de 100 células, quando então ocorre sua implantação na cavidade do útero.

Nesse momento, as células da massa celular interna do blastocisto são pluripotentes. Estas células somáticas permanecem indiferenciadas e todas iguais entre si, quando, a partir de certo momento, por um mecanismo regulado por genes ainda desconhecido, começam a diferenciar-se nos vários tecidos que vão constituir o organismo humano: sangue, músculos, cérebro, ossos, etc (ZATZ, 2004).

De acordo com Pereira (2008) são essas células da massa celular interna do embrião na fase blastocisto que podem ser retiradas e colocadas em placas de cultura onde, em condições apropriadas, podem se manter indiferenciadas, se multiplicarem indefinidamente, mantendo seu potencial de contribuir para todos os tipos celulares adultos. Assim são as células da massa celular interna do blastocisto que constituem as células-tronco embrionárias.

As células-tronco adultas também são indiferenciadas, só que atuam na manutenção dos tecidos, repondo células mortas. Existem delas em tecidos como a medula óssea, sangue, fígado, tanto de crianças como de adultos, embora em pequena quantidade. Pesquisas vêm mostrando que o sangue do cordão umbilical e da placenta são ricos em células-tronco adultas, bem como, mais recentemente, descobriu-se que material lipoaspirado e polpa do dente de leite também as têm. No entanto, ainda não se sabe qual é o seu potencial de diferenciação em diferentes tecidos e quais delas cumprirão a promessa terapêutica (ZATZ. 2004; PEREIRA, 2008).

Pereira (2008) destaca ainda que as células-tronco mais conhecidas são as que estão presentes na medula óssea, as quais desde 1950 vêm sendo utilizadas no tratamento de doenças que afetam o sistema hematopoiético. Até recentemente acreditava-se que tais células tinham um potencial de diferenciação restrito a somente células do tecido onde elas residem. No entanto, a autora enfatiza que, nos últimos anos, o avanço de pesquisas na área vem questionando essa visão tradicional, mostrando indicações de um potencial bem mais amplo de diferenciação, sendo capazes de dar origem a tecidos diferentes daqueles de onde elas residem.

Carvalho (2001) relata um caso em que num estudo conduzido por cientista italianos, realizado em 1998, células da medula óssea regeneraram um músculo esquelético. Pereira (2008) também se refere a outros estudos com modelos animais, onde células da medula óssea, quando injetadas na parede o infarto logo após a ligação da coronária, também promoveram a formação de novos músculos cardíacos que ocupavam até 68% da porção infartada do ventrículo.

Células-tronco na construção de tecidos para transplante e para cura de doenças

Espera-se que a medicina regenerativa, como é chamada a terapia com células-tronco, traga grandes benefícios para a melhora e o aperfeiçoamento dos programas de transplante de órgãos e tecidos. É sabido que, com o passar do tempo, órgãos e tecidos do nosso corpo vão gradualmente perdendo sua capacidade de funcionamento, seja por motivo de doença ou devido o processo natural de envelhecimento. Segundo Pereira (2008), isso acarreta uma grande procura por reposição desses órgãos e nem sempre dá para atender a essa demanda, seja pela escassez de doadores, ou pela atual incapacidade de transplante de certos órgãos ou tecidos, como o muscular e o nervoso.

Pereira (2008) afirma que além de atenderem a uma parcela ínfema dos pacientes (cerca de 5 a 10% nos Estados Unidos), os programas de transplantes de órgãos tem um alto custo, o que é de particular importância para a saúde pública no Brasil, onde são custeados pelo Ministério da Saúde.

Dentro desse contexto, entra em cena o uso terapêutico de células-tronco: elas se apresentam como fonte ilimitada de tecidos para transplante. Com base na plasticidade e potencial de diferenciação que apresentam, teoricamente, poderiam ser multiplicadas em laboratório e induzidas a formar tipos celulares específicos que, quando transplantados, regenerariam o órgão doente.

De acordo com Vieira (2005), algumas doenças que seriam beneficiadas com o uso de células-tronco são: Câncer, na reconstrução de tecidos; cardiopatias, na reposição do tecido isquêmico com células cardíacas saudáveis e para o crescimento de novos vasos; Osteoporose, repopulando o osso com células novas e fortes; Doença de Parkinson, na reposição das células cerebrais produtoras de dopamina; dibabetes, infundindo o pâncreas com novas células produtoras de insulinas; cegueira, na reposição de células da retina; danos na medula espinhal, na reposição das células neurais; doenças renais, na reposição de células, tecidos ou mesmo o rim inteiro; doenças hepáticas, na reposição de novas células hepáticas ou fígado todo; Esclerose Lateral Amiotrófica, na geração de novo tecido neural ao longo da medula espinhal e do corpo; Doença de Alzheimer, na reposição e cura das células cerebrais; Distrofia Muscular, na reposição do tecido muscular e, possivelmente, carreando genes que promovam a cura; Osteoartrite, no desenvolvimento de cartilagem nova; Doença Auto-Imune, na repopulação das células do sangue e dos sistema imune; doenças pulmonares, no crescimento de um novo tecido pulmonar.

Apesar das conquistas e avanços na área, principalmente o sucesso obtido em relação às experiências com animais, a pesquisadora salienta que alguns objetivos ainda precisam ser alcançados para utilização de células-tronco na terapia de doenças tais como a compreensão dos mecanismos de diferenciação e desenvolvimento; identificação, isolamento e purificação de células-tronco adultas; controle da diferenciação de células-tronco para tipos celulares alvo necessários para o tratamento das doenças; conhecimento nos transplantes de células-tronco por meio da demonstração do controle apropriado do crescimento, bem como a obtenção do desenvolvimento e função da célula normal; e, por último, a confirmação dos resultados bem sucedidos dos animais em seres humanos.

Debate ético em torno do uso de células-tronco embrionárias

Desde as primeiras evidências quanto à possibilidade do desenvolvimento de pesquisas científicas com o uso de células-tronco embrionárias, têm-se levantado um intenso debate entre a comunidade científica e alguns setores da sociedade, dentre eles a Igreja Católica. Enquanto estes argumentam estar dispostos a defenderem o direito à vida, independentemente do estágio em que ela ocorra, aqueles contra-argumentam que não é justo deixar pessoas acometidas por males ainda incuráveis sofrendo o resto da vida em detrimento da conservação de "pré-embriões" ou "conjunto de células", como afirma Segre (2004).

De acordo com Zatz (2004), as células-tronco embrionárias podem ser obtidas tanto de embriões excedentes das técnicas de reprodução assistida como também através da clonagem terapêutica, técnica que consiste na substituição do núcleo de um óvulo por outro de uma célula somática qualquer, deixando que ele se divida em laboratório, podendo utilizar as células dele resultantes, que na fase de blastocisto são pluripotentes, para fabricar diferentes tecidos.

Um debate se intensificou no Brasil a partir da Lei de Biossegurança (BRASIL, 2005) que no seu artigo 5º regulamentou as pesquisas nessa área, permitindo ouso de células-tronco embrionárias para pesquisa e terapia, desde que sejam obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, não utilizados no procedimento, que sejam inviáveis e que tenham sido mantidos congelados por mais de três anos. Ela determina que deve haver consentimento dos genitores, bem como a submissão prévia dos projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa. A lei veta a comercialização de material biológico para esse uso, além de proibir a clonagem humana, para qualquer finalidade.

Em relação ao debate em torno do conceito do momento de inicio da vida a partir da fertilização, Segre (2004) contra-argumenta e expõe o seu ponto de vista claramente favorável ao uso de células-tronco embrionárias, independente de sua fonte:

A sempre renovada discussão referente ao momento no qual o embrião humano passa a "merecer" respeito à sua vida e integridade, apenas comprova a aleatoriedade e o caráter pragmático da caracterização do início da vida. Esta observação encontra esteio, por semelhança, na recente mudança do conceito de morte, quando a morte encefálica, por motivação essencialmente utilitária, foi identificada com morte. Assim como o desenvolvimento das técnicas de transplantes de órgãos vitais, a partir de doadores "mortos", passou a exigir a redefinição do momento de morte, para que esses fossem viáveis, o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida está estimulando um questionamento do momento de início da vida, para que, pelo destino que não se sabe qual dar aos embriões excedentes, este outro avanço científico (a reprodução assistida) não seja obstaculizado. (...) Face às premissas supra, está clara a nossa posição francamente favorável à utilização de células-tronco, a partir de pré-embriões produzidos in vitro, sejam eles resultantes de fecundação ou de clonagem (SEGRE, 2004).

Em 29 de maio de 2008, o Supremo Tribunal Federal (STF) acabou com impasse da discussão em torno do tema, rejeitando a Ação Direta de Insconstitucionalidade contra o artigo 5º da Lei de Biossegurança, proposta em 2005, pelo então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, que defende que o embrião pode ser considerado como vida humana (CUOLO, 2008). Para o procurador, o referido artigo seria inconstitucional porque na concepção dele fere a garantia de direito à vida, assegurado pela Constituição.

Considerações finais

Concordando com as palavras de Pereira (2008), as pesquisas com diferentes tipos de células-tronco devem encaradas com entusiasmo e cautela simultaneamente. É próprio de toda área de pesquisa em desenvolvimento avanços e retrocessos. Ainda não se sabe quais tipos de células cumprirão a promessa terapêutica e serão mais adequadas para o tratamento de doenças.

Além do mais, as pesquisas voltadas ao desenvolvimento de terapias com células-tronco precisam se nortear pela sua universalização para toda a população, pois frequentemente as técnicas médicas mais avançadas ficam restritas a uma pequena parcela da população que pode pagar por elas. A expectativa é a de que, no caso de células-tronco, as novas terapias substituam as atuais mais caras e ineficientes como os transplantes de órgãos como fígado e coração, por exemplo, e sejam disponibilizadas à sociedade como um todo.

Referências:

CARVALHO, A. C. Células-tronco: a medicina do futuro. Revista Ciência Hoje,  Rio de Janeiro,  v. 29,  n. 172, 2008.  Disponível em:

< http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/biologia/bio10a.htm>. Acesso em: 05 mai. 2008.

CUOLO, E. STF aprova realização de pesquisas com células-tronco embrionárias. Folha Online, São Paulo, 29 mai. 2008. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u406855.shtml>. Acesso em: 29 mai. 2008.

PEREIRA, L. V. A importância do uso das células-tronco para a saúde pública. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro,  v. 13,  n. 1, 2008 .  Disponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232008000100002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 05 mai. 2008.

SEGRE, M. A propósito da utilização de células-tronco embrionárias. Estud. av.,  São Paulo,  v. 18,  n. 51,   2004 .   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000200017&lng=&nrm=iso>. Acesso em: 05 mai. 2008.

TAKEUCHI, C. A; TANNURI, U. A polêmica da utilização de células-tronco embrionárias com fins terapêuticos. Rev. Assoc. Med. Bras. ,  São Paulo,  v. 52,  n. 2,   2006 .   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-42302006000200001&lng=&nrm=iso>. Acesso em: 05 mai. 2008.

ZATZ, M. Clonagem e células-tronco. Estud. av. ,  São Paulo,  v. 18,  n. 51,   2004 .   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-




Autor: José Robério de Sousa Almeida


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