Reflexões Sobre o Tratamento Dispensado às Pessoas com Sofrimento Psíquico



Acreditou-se durante muito tempo que a melhor forma de tratar os doentes mentais seria trancafiando-os em hospitais tornando-os, pela própria estrutura do modelo hospitalocêntrico, excluídos, segregados, ociosos e improdutivos.

Por conseqüência, a sociedade sempre tratou o louco como algo distante e isolado que precisava ser banido do cenário social. Destarte, durante um longo período buscou-se várias alternativas no manejo com os doentes mentais, muitas dessas como forma de aliviar as tensões sociais provocadas pelos surtos da sua própria doença. Como disse o pai da medicina, Hipócrates e o aforismo latino "sedare dolorem divinum est", analogicamente, compreende-se que por repetidas vezes o louco foi sedado, literal e subjetivamente, do convívio social por ser um possuidor de demônios ou até trancados em prisões como perigosos marginais.

Devidos as transformações advindas com a Revolução Francesa e Industrial, surge a necessidade de criação de um modelo de assistência em saúde mental. Isto porque as instituições psiquiátricas funcionavam como um meio de retirar da sociedade os indivíduos inadaptáveis a conjuntura social, procurando através do tratamento moral enquadrar o desajustado ao comportamento considerado normal. Com esse modelo desencadeou-se um processo de modificação e degradação da individualidade e identidade dos sujeitos.

A loucura sempre foi considerada pela sociedade como um fenômeno irrefutável e incompreensível. Por este motivo surgiram várias técnicas de atendimento como forma de manejo dos doentes mentais.

No decorrer dos tempos, o modelo hospitalocêntrico recebeu diversas criticas devido a segregação que se instalou nesse ambiente, passando os "loucos" a viverem na ociosidade, improdutividade e, por via de conseqüência, a exclusão social. Na década de 70 surgem os ambulatórios psiquiátricos como uma esperança para banir definitivamente todas as mazelas construídas pelo modelo de atendimento hospitalar.

Ser louco é estar com a lógica comprometida? Que lógica? Será que:

A pessoa normal em termos de ser bem ajustada freqüentemente é menos sadia que a pessoa neurótica em termos de valores humanos. Geralmente ela é bem ajustada ao preço de ter renunciado a seu próprio ego para torna-se mais ou menos a pessoa que ela crê dever ser; com isso, talvez haja perdido toda espontaneidade e individualidade genuína. (ERICH FROMAM).

Esse raciocínio tem por finalidade possibilitar uma analise critica sobre a questão do doente mental no contexto social, buscando entender de forma ampla a relação sociedade x louco.

Com a tarefa de esclarecer da forma mais concisa possível a evolução(?) do tratamento psiquiátrico que antes era feito exclusivamente em asilos e atualmente, preferencialmente, em ambulatórios, far-se-á um breve histórico das estratégias de intervenção psiquiátrica.

No período da Antiguidade e da Idade Média, vias de regra, as sociedades tinham suas economias baseadas na agricultura, havendo um grande distanciamento entre as "classes sociais" que eram marcadas de um lado pelo rei, detentor de grande poder e considerado, por algumas civilizações, como uma divindade, sendo este apoiado pelos sacerdotes e os ricos mercadores; de outro lado, vivendo de uma maneira simples, os camponeses. Como entender a loucura numa época na qual o que não se tinha idéia clara do significado era considerado coisas dos deuses?

Constata-se que nesse período os loucos provenientes de famílias abastadas tinham tratamento em casa, sendo designado auxiliares para cuidar dos possuídos; já nos casos dos menos favorecidos, vagavam pelas ruas vivendo da caridade dos outros. Cumprindo ressaltar que essa realidade apresentada no passado não se distancia muito do presente. Todavia, é verossímil o fato de que a doença mental, naquela época, não existia, mas sim um fenômeno estritamente religioso.

Com o passar dos tempos, os enfermos foram distribuídos em prisões ou depositados em asilos, isto porque o objetivo primordial era a segurança da sociedade que já estava acostumada a vê-los a margem e desta forma permaneciam com a ordem estabelecida sem o perigo de ser violentada com os surtos da sua própria doença. Por muito tempo os loucos foram retirados das ruas juntamente com ladrões, assassinos, vadios e trancafiados todos juntos; esse ajustamento servia de resposta a uma sociedade que se sentia ameaçada com tais fenômenos.

Os doentes mentais eram depositados nestes asilos e desprovidos de todos os seus direitos de cidadão, confinados, muitas vezes ate a morte, naquelas prisões. Como explica Basaglia, o hospício é construído para controlar e reprimir trabalhadores que perderam a capacidade de responder aos interesses capitalistas de produção.

No século XVIII com o choque entre os ideais da Revolução Francesa e o modelo de atendimento disponibilizado aos doentes mentais, emerge a necessidade de criação de um espaço para alojar as pessoas que tinham comportamento desviante e, conseqüentemente, eram estigmatizadas como loucas, assim, nascem os hospitais. Num primeiro momento os pacientes eram tratados pela clinica geral, como esta não deu conta devido a ausência de outros conhecimentos inerentes ao manejo com os doentes mentais, surgindo num segundo momento a especialização psiquiátrica.

Phillipi Pinel, um dos intelectuais da época, juntamente com seus contemporâneos dão início ao chamado tratamento moral, segundo o qual acreditava que se fosse dado a mente a atenção necessária, a doença mental seria curável, com isso descartava-se as lesões cerebrais como uma das possibilidades para surgimento da enfermidade. O tratamento moral nada mais era do que ensinamentos para se ter um comportamento disciplinado e dentro dos padrões estabelecidos.

Acreditou-se, durante algum tempo, que a loucura poderia ser curada, porém com a industrialização, urbanização e o avanço do capitalismo houve uma inadaptação de certas pessoas a nova ordem social e estes passaram a representar uma ameaça a esta mesma ordem. Esses foram (ou são?) alguns fatores que contribuíram para o aumento do numero de doentes mentais.

Devido ao grande número de pacientes o tratamento tornou-se massificado perdendo sua característica familiar que facilitava as trocas interpessoais favorecendo a melhora dos pacientes. Com isso o otimismo que sustentava a crença na cura da doença foi desaparecendo.

O hospital psiquiátrico nada mais é do que o asilo de ontem com as mesmas características de ociosidade, improdutividade, cronificidade, segregação que oportuniza a exclusão social.

Devido a essa preocupação surgiram propostas para um novo modelo de assistência psiquiátrica, dentre essas propostas encontrava-se o atendimento ambulatorial com a intenção de diminuir o caráter excludente do modelo hospitalocêntrico.

Na década de 70 ocorreu a criação dos ambulatórios com uma proposta deassistência que propõe uma detenção do doente mental dentro de uma linha mais terapêutica, humanista e de respeito a cidadania na medida em que sugere a transposição dos três principais problemas do modelo hospitalar ou ambiente institucional desfavorável, a inatividade e o sentimento de irresponsabilidade que o doente mental tem em relação a si próprio, possibilitando um acompanhamento mais cuidadoso, de forma a evitar as internações e reinternações.

Sugere uma menor vinculação à instituição de tratamento já que o paciente retorna ao meio social em que vive após cada atendimento. Assim, esse tipo de atenção promoveria a diminuição da exclusão social do paciente ou a segregação do mesmo.

Não obstante, percebe-se no modelo ambulatorial que o mesmo não passou de uma modificação técnica da assistência aos doentes mentais, ou seja, ao invés dos loucos ficarem trancafiados dentro do hospital, eles recebem o tratamento com psicofarmacos adequados ao quadro clinico e retornam para casa com suas receitas. A partir desse ponto de vista é compreensível que o tratamento tido como ideal tenha se revelado tão cronificador quanto o modelo hospitalocêntrico.

Por conseguinte, observa-se que no serviço ambulatorial existe um antagonismo entre a teoria e a prática, isto porque o serviço citado prega uma política utópica de integração do paciente ao seu meio social e, também, a prevenção para que não aconteça nova crise. Entretanto, o que se nota é a permanência dos pacientes por longo período no atendimento ambulatorial, só que agora não mais trancafiado, mas indo e voltando, num circulo vicioso e agonizante.

Dentro deste contexto surge uma indagação: o ambulatório tem uma proposta terapêutica? Até que ponto a ambulatorização favorece a questão da cronificação?

Com base em entrevista realizada com 131 pacientes de ambulatórios da rede pública, foram destacados dois casos para sincronizar com o pensamento aqui abordado:

1º Caso – E.A.N, 32 anos, solteira, alfabetizada, mãe de duas crianças, mora numa invasão, desempregada, percebe auxilio financeiro da mãe que é aposentada e de amigos. Tem no prontuário diagnostico de transtorno bipolar.

Relato: venho aqui todo mês buscar meus remédios, aqui é de graça e eu não tenho dinheiro para comprar.

Questionamento sobre a eficácia do tratamento: eu to achando tudo a mesma coisa, quando falo pro doutor ele diz que é assim mesmo. Nem muda o remédio.

Percebe-se nesse caso que a paciente entendia o tratamento como o uso exclusivo dos medicamentos, sem ter uma relação aberta com seu médico que facilitaria o atendimento. Menezes (1993:14) esclarece de forma singular essa situação:

A proposta da ambulatorização perde de vista a articulação orgânica, existente entre o setor de internação dos hospitais psiquiátricos e os ambulatórios dos mesmos, onde os últimos possuem a mesma linha terapêutica dos primeiros, bastante caracterizada no manejo dos psicofarmacos e na ausência de intenção de tratamento da enfermidade mental. Um tratamento vem sugerir um início, um meio e um fim, tanto a internação como a ambulatorização ultrapassam os limites do tempo de duração do tratamento.

2º Caso: I.F.C, 29 anos, solteiro, residente no interior do Estado, professor primário, desempregado, diagnostico de esquizofrenia.

Paciente retraído, sem querer responder aos questionamentos, acompanhado da genitora que relata: ele era um rapaz normal, agora esta assim...

Questionada sobre se o paciente exerce alguma atividade: Ah, desse jeito quem vai querer. Esse aí não tem mais jeito, só se Deus tiver pena...

Quando o paciente foi abordado sobre seu desejo de realizar alguma atividade, ele faz um gesto com a cabeça dizendo que sim. A genitora simultaneamente faz um outro gesto dizendo que não e diz: que nada, dorme o dia todo...Antes era um menino tão inteligente, hoje está assim, ninguém...

Durante a entrevista, repentinamente, o paciente interrompe dizendo: eu sei fazer poesia. A genitora sorri e balança a cabeça negando.

Neste 2º caso observa-se a falta de credibilidade, de estimulo por parte da família (representada pela genitora) ao paciente. Percebe-se, também, que quando uma pessoa traz consigo o estigma de louco existe uma transformação na forma de tratamento das outras pessoas para com ela, existindo uma morte civil repugnante. De um modo geral, a sociedade deixa de considerar todos os sentimentos, ações, vontades e palavras exteriorizadas pelo doente e tudo isso passa a ser rotulado como "coisa de maluco", conforme retrata Motta (1992:48)

Assim, a loucura inscreveu-se na ordem politica: os loucos foram excluídos do estatuto da cidadania e do reconhecimento dos seus direitos fundamentais no espaço social. Transformada na figura da enfermidade mental a loucura passou a ser representada como efetivamente destituída da razão. De forma que como alienado da razão o louco não é considerado como sendo propriamente um sujeito.

Vale ressaltar que por parte da maioria dos entrevistados não existe expectativa quanto a possibilidade de alta devido a cura da enfermidade.

O ser humano na sua trajetória de desenvolvimento e amadurecimento, através das relações intra e interpessoais, desenvolve capacidade de integração da vida psíquica que em situações desfavoráveis entra em um processo de desestruturação e desagregação que se manifesta em forma de alterações do comportamento rotuladas de psicoses, psiconeuroses ou psicopatias, e que no fundo refletem uma regressão do individuo a estágios anteriores ao seu desenvolvimento psicológico.

Ao invés de ser olhado como um indivíduo lesado e irrecuperável, o doente mental deve ser entendido como uma pessoa dissociada em partes doentes e partes sadias que devem ser levadas em consideração quanto ao fator terapêutico.

Conclui-se que não é esse ou aquele serviço, unicamente, que virá resolver as questões pertinentes a doença e ao enfermo mental, mas, sobretudo, o compromisso, o respeito e a crença na capacidade produtiva do doente mental. Todos esses fatores conduzirão os diferentes a uma existência mais libertaria, ainda que diferente, mas não desigual.[i]


[i] Texto construído a luz do pensamento dos seguintes autores: Benilton Bezerra, Roberto Machado, Alfred Moffat, Eduardo Mourão Vasconcelos, Avelar de Castro Loureiro, Franco Rotelle, Michael Foucault, Franco Basaglia, Lancetti, Mítiam Dias, Regina Giffoni Marsiglia, Agnes Miles, Silvério Almeida Tundis, E.Goffman, A. Turaine, Saraceno Benedetto, Abnoel Leal Souza, Alberto Andery, F.L.Mueller, J. Pikunas, C.R. Rappaport, Maxwell Maltz, William Menninger, Robert Mezer, Magda Carvalho Motta, Jucileide Autero, Tatiana Muniz, Boletim Hospital Juliano Moreira, Boletim da luta Antimanicomial e Manual de informações do Hospital Juliano Moreira.


Autor: Andréa Araújo


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