O Mito Das Três Raças



Introdução 

O conceito de mito faz brotar um ponto de origem, um centro no qual se irradia a história mítica. A ideologia do Brasil relata a epopéia das três raças que se fundem nos laboratórios das selvas tropicais. Nas sociedades primitivas, ela é um mito cosmológico, e conta a origem do moderno Estado brasileiro, ponto de partida de toda uma cosmogonia que antecede a própria realidade.
Na nossa sociedade, o problema se coloca de maneira diferente; é engendrada no momento em que a sociedade brasileira sofre transformações profundas, passando de uma economia escravista por outra de tipo capitalista, de uma organização monárquica para republicana, busca resolver o problema da mão-de-obra incentivando-se a imigração européia.
O mito da mestiçagem é ambíguo, é porque existem dificuldades concretas que impedem sua plena realização. A sociedade brasileira passa por um período de transformação, o que significa que as teorias radiológicas, quando aplicadas ao Brasil, permitem aos intelectuais interpretar a realidade, mas não modifica-la.
O processo de urbanização e de industrialização se acelera, uma classe média se desenvolve, surge um proletariado urbano no início do século XX. Este movimento de modernismo cultural trouxe consigo uma consciência histórica que até então se encontrava de maneira espaça na sociedade.
Com a revolução de trinta as mudanças que vinham ocorrendo são orientadas politicamente, o Estado procurando consolidar o próprio desenvolvimento social. Dentro desse quadro, as teorias radiológicas tornam-se obsoletos, era necessário superá-las, pois a realidade social impunha um outro tipo de interpretação do Brasil.
Gilberto Freyre e sua obra Casa Grande Senzala, vem atender a nova demanda social, ele se apresenta com uma continuidade, permanência de uma tradição, não produz seus escritos dentro da moderna universidade – que foi implantada a partir da década de trinta – como Sérgio Buarque e Caio Prado Jr que buscam em seus escritos, uma ruptura de pensamento sobre tudo pelo espaço social. Entre Silvio Romero e Gilberto Freire, não há rupturas, mas interpretações da mesma problemática proposta pelos intelectuais do final do século XIX.
A temática racial ou termos raciais, que eram usados por Euclides da Cunha e Nina Rodrigues, na época em que escreveram as teorias antropológicas que desfrutam do estatuto cientifico, agora são outras, o conceito de culturalismo é usado como referência, onde esse conceito de raça passa para o de cultura.
Assim elimina uma série de dificuldades colocados anteriormente a respeito da herança atávica do mestiço. Ela – a cultura – permite ainda um distanciamento entre o biológico e o social, que possibilita uma análise mais elaborada da sociedade. nesse processo todo de buscar legitimar a cultura, Gilberto Freyre busca transformar a negatividade do mestiço em positividade, onde permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito tempo vinha sendo desenhada.
A sociedade brasileira não mais se encontrava num período de transição, os rumos do desenvolvimento eram claros e até um novo Estado procurava orientar essas mudanças. O mito das três raças torna-se então plausível e pode se atualizar como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambigüidades das teorias racistas; ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos como carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional.
O mito das três raças, ao se difundir na sociedade, permite aos indivíduos, das diferentes classes sociais e dos diversos grupos de cor, interpretar, dentro do padrão proposto, as relações sociais que eles próprios vivenciam.

Memória coletiva

A desagregação social do regime escravocrata que atinge todos os indivíduos da sociedade, e desagregação da memória coletiva negra. Um processo de transformação da sociedade corresponde um processo de transformação de símbolos.
No domínio das crenças religiosas a macumba representa esta desagregação da memória coletiva. No rio de Janeiro, este culto chega a se organizar em seita, muito embora o processo de sincretismo já se encontre em fase avançada. Em São Paulo, o ritmo da desagregação social foi rápido, que as crenças cristalizaram-se em indivíduos, feiticeiros e mágicos. Dentro desse processo de transformação social, a macumba corresponde à marginalização do negro numa sociedade de classe em formação.
O sincretismo do negro-católico-espírita é ao mesmo tempo sinal e resposta à desagregação social, ele denota a posição marginal do negro no seio da sociedade brasileira, ele é o resultado de uma melhor integração cultural no conjunto da sociedade.

Aculturação

O fenômeno da aculturação deve, portanto ser avaliada como parte integrante da sociedade global, e não, como Arthur Ramos se refere de um “ponto zero” da comunidade de origem em direção à comunidade atual.
Sociedade branca e sociedade negra participam de um mesmo conjunto: os contatos culturais e seus efeitos só podem ser compreendidos quando referidos a este conjunto, isto é, as totalidades sociais que os enquadram os orientam e os unificam.
No caso da Umbanda a religião será considerada na sua relação com um conjunto mais amplo, que é a sociedade global. Desta forma, os valores afro-brasileiros se transformam para compor uma nova religião. Nesse processo de ‘química religiosa’ reencontramos os mecanismos que caracterizam o fenômeno da aculturação: reinterpretarão, adaptação, fusão, considerando que social e o cultural são indissolúveis.
O nascimento da religião umbandista coincide justamente com a consolidação de uma sociedade urbano-industrial e de classe, transformações sociais e um movimento de mudança cultural, isto é, as crenças e práticas afro-brasileiras se modificam tomando um novo significado dentro do conjunto da sociedade brasileira. Nesta dialética entre social e cultural, observamos que o social desempenha um papel determinante.
As transformações do mundo simbólico afro-brasileiro se realiza sempre em conformidade com os valores legítimos da sociedade global – valores como a moral católica – a religião umbandista se legitima na medida em que ela integra os valores proposto pela sociedade global.
A legitimação é sensível no que diz respeito ao mercado religioso onde a umbanda, considera num passado recente como heresia, torna-se, pouco a pouco, um sistema religioso aceito peças outras profissões de fé.
A comparação da umbanda com o candomblé, onde as diferenças entre duas modalidades religiosas, que, embora tenha raízes comuns, encontra-se hoje em posição como dois pólos: podemos classificar umbanda representando o Brasil, e candomblé a África.
A umbanda corresponde à integração das práticas afro-brasileiras na moderna sociedade brasileira; o candomblé, significa justamente o contrário, isto é, a conservação da memória coletiva africana no solo brasileiro. O candomblé não é puramente africano, é um produto afro-brasileiro resultante do “bricolage”, para o candomblé a África continua sendo a fonte privilegiada do sagrado, oculto dos deuses negros se opondo a uma sociedade brasileira branca ou embranquecida.
Desta forma uma ruptura se inscreve entre Umbanda e Candomblé: para a primeira a África deixa de se constituir em fonte de inspiração sagrada; o que é afro-brasileiro torna-se brasileiro. A Umbanda aparece como uma religião nacional que se opões ás religiões de importação. Não nos encontramos mais na presença de um sincretismo afro-brasileiro, mas diante de uma síntese brasileira, de uma religião endógena.

A cultura popular e cultura dominante: dois tipos de movimentos opostos

O primeiro ocorre quando as classes dominantes se apropriam, reelaboram e posteriormente transformam em símbolos, nacionais manifestações culturais originalmente restritas as camadas populares e que frequentemente eram reprimidos pelo Estado.
O segundo, percorre uma trajetória inversa e ocorre quando as classes populares se apropriam, reelaboraram e posteriormente em símbolos nacionais manifestações culturais originalmente restritas as classes dominantes e que frequentemente lhes configuram uma marca distinção.
O movimento de apropriação de expressões de outros grupos e sua recodificação e introdução num outro circuito no qual estes elementos são dotados de novos significados e, portanto, utilizados de forma a afetar seu significado original. Além da relação entre a cultura popular e a cultura hegemônica, envolve também a intervenção do Estado e a ação dos meios de comunicação de massa.
A existência de três momentos no processo de dominação cultural. No primeiro o da ‘rejeição’, a cultura popular é vista como ‘deleito’ ou ‘desordem’ e contra ela são acionados os aparelhos repressivos como a polícia. No segundo, o da ‘domesticação’, o aparelho cientifico das classes dominantes é utilizado para separar os componentes da cultura popular considerados perigosos daquelas considerações apenas figurativos ou exóticos. Está é a fase da dominação simbólica que se caracteriza pelos registros, conceptualizaçoes, tipologias, interpretações, teorias e moldes.
No terceiro o da ‘recuperação’, a ação simultânea dos aparelhos ideológicos e da indústria cultural transforma as expressões culturais das classes dominantes em itens codificados de museus e exposições em mercadorias exóticas para consumo turístico, em instrumentos ideológicos e inclusão pedagógica, etc.é importante pensar dentro do processo de apropriação como foram introduzidos os elementos nacionais – ou incorporados como em um processo de aculturação e apropriação dos elementos afro-brasileiros, no contexto nacional –, onde a feijoada hoje é um prato nacional. Enquanto nos Estados Unidos a feijoada é comida de negros.
A diferença está do significado simbólico do prato. Na situação brasileira, a feijoada foi incorporada como símbolo da nacionalidade, enquanto nos Estados Unidos se tornou símbolo da negritude, no contexto do movimento de libertação negra.
O samba também foi apropriado e transformado em símbolo nacional. Na fase em que era produzido e consumido no ‘morro’, a policia reprimia com severidade, obrigando-o inclusive a se ocultar no candomblé, considerado então um pouco mais aceitável. Entretanto, com o passar do tempo, a importância crescente do carnaval provocou a transformação da repressão a apoio manifesto.
As escolas de samba desceram para as avenidas legitimamente e o samba passou a ser consumido por uma população que ultrapassara de muito as fronteiras do morro, do Rio de Janeiro ou mesmo do Brasil. A malandragem na música popular brasileira ocorreu um processo de apropriação e ressematização. O fim da escravidão no Brasil não significou o surgimento de uma sociedade mais aberta, mas continuidade do padrão de dominação oligárquica.
Noel Rosa destaca em uma entrevista que o samba está na cidade. Já esteve, é verdade, no morro, isso no tempo em que não havia aqui em baixo samba. Quando a bossa nasceu, a cidade derrotou o morro. O samba lá em cima perdeu o espírito, seu sabor inédito. Em primeiro lugar, o malandro sofreu uma transformação espantosa. Antes era diferente; agora está mais ou menos banalizado. A civilização começa a subir o morro, levando as suas coisas boas e suas coisas péssimas.
O futebol que é um esporte popular e sonho de muitos elementos das classes subordinadas ascenderem socialmente e se presta á difusão de uma imagem de “democracia racial”. Por ser, hoje, um esporte popular entre todas as classes sociais, o futebol pode ser manipulado como um poderoso símbolo de unidade nacional e coesão social e racial.
Como símbolo de identidade nacional, a imagem que é veiculada através do futebol brasileiro corresponde, em boas medida, à do malandro. Há uma crença generalizada de que nosso futebol vale pela esperteza, pela criatividade e pelo improviso de nossos jogadores.
A idéia de que nosso “caráter nacional” e a influência que sobre ele teria tido o negro se revelaria no futebol fica claro no que Gilberto Freyre diz a respeito do assunto: o nosso estílo de jogar foo-tball me parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, manha, de astúcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de brilho e de espontaneidade individual em que se exprime o mesmo mulatismo de que Nilo Peçanha foi a melhor afirmação na arte política.
Finalmente é importante pensar o que significa, em termos de hegemonia, a tendência de apropriar, recodificar e transformar manifestações culturais, inicialmente restritas a certos grupos, em símbolos nacionais.
O grupo que reelaboram e utiliza o produto cultural acabado tende a ser diferente daquele que o produziu. Estando a distinção entre produtores e consumidores da cultura presa a uma distinção de classe, a relação entre eles assume necessariamente uma conotação política, isto é, ela tem implicação em termos de poder, assim, as diferenças culturais aparecem, não como simples expressão de particularidade do modo de vida, mas como manifestação de oposições ou aceitações que implicam num constante reposicionamento dos grupos sociais na dinâmica das relações de classe.

Bibliografia

OLIVEN, Ruben, Violência e Cultura no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1989.
ORTIZ, Renato. A Morte Branca do Feiticeiro Negro: umbanda e sociedade brasileira. Brasiliense, falta o ano.
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. Brasiliense, falta o ano.

Autor: Prof. Ubiratã Ferreira Freitas


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