Mitigação do Devido Processo Legal e da Ampla Defesa nos Processos de Multas de Infrações de Trânsito da Superintendência de Engenharia de Tráfego



O princípio da presunção de legitimidade, inerente à Administração Pública e implícito no ordenamento jurídico brasileiro, informa que os fatos e procedimentos realizados pela administração são considerados legítimos e verdadeiros, sendo dos administrados o munus de provar o contrário.

É lastreado nesse princípio que o Código de Trânsito Brasileiro – Lei 9.503/97 -regulamenta o processo administrativo de infração de trânsito, de modo que leva à aplicação da árida sanção administrativa, a qual permeia a esfera patrimonial do administrado.

Neste ensejo, dessarte, apesar de gozar das prerrogativas da legitimidade e veracidade a administração pública ao aplicar as regras do CTB, por vezes, inviabiliza a defesa dos administrados, mormente no que tange a inexistência de condições à produção de provas face ao procedimento de autuação adotado.

Assim, pergunta-se; de que maneira o princípio da presunção da legitimidade mitiga as garantias constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, quando da aplicação de multas de infrações de trânsito decorrentes de processos administrativos previstos no Código de Trânsito Brasileiro?

Frente à inexistência de meios e recursos para a produção de provas, a garantia constitucional do devido processo legal e da ampla defesa, art. 5º, LIV e LV da Constituição Federal, tem sido mitigada.

A Administração Pública, mesmo no exercício do seu poder de polícia e nas atividades self executing não pode impor aos administrados sanções que repercutam no seu patrimônio sem apreservação da ampla defesa, que in casu se opera pelas notificações apontadas no CTB.

Assim sendo, o presente trabalho científico pretende verificar em que medida os processos administrativos punitivos de infrações de trânsito mitigam os princípios do devido processo legal e da ampla defesa, uma vez que a Administração Pública, por meio de seus órgãos, goza da presunção de legitimidade dos fatos e procedimentos, de modo a assinalar a possibilidade de inversão do ônus da prova.

Registre-se que não se pretende querer estabelecer premissas irrefutáveis, uma vez que esta é uma proposta de uma visão constitucionalista do processo administrativo de autuação e imposição de penalidade decorrente de infração de trânsito, fruto da constatação da arbitrariedade praticada pela Administração Pública quando da aplicação das multas de trânsito, realidade vivida pelo autor junto ao exercício de atividades em órgãos públicos, bem como sujeito passivo nas relações acima traçadas.

Os princípios do direito administrativo consubstanciam as premissas básicas de um dado regime jurídico administrativo. Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos.

Assim, é possível identificar princípios que orientam a Administração Pública e seus atos administrativos. Para melhor compreender o significado do termo princípio, vale trazer à giza o ensinamento de Celso Antônio Bandeira de Mello, ipisis verbis:

"Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo."[1]

Dentre os diversos princípios norteadores da Administração Pública, os quais constroem os direitos e limites jurídicos de forma genérica, destaca-se o Princípio da presunção de legitimidade, no que tange a seara dos atos administrativos.

Cuida-se, o sobredito princípio, nas doutas palavras de Maria Silvia Di Pietro Zanella, com grifos introduzidos, de:

Esse princípio, que alguns chamam de princípio da presunção de legalidade, abrange dois aspectos: de um lado, a presunção de verdade, que diz respeito à certeza dos fatos; de outro, a presunção da legalidade, pois, se a Administração Pública se submete à lei, presume-se, até prova em contrário, que todos os seus atos sejam verdadeiros e praticados com observância das normas legais pertinentes. Trata-se de presunção relativa (juris tantum) que, como tal, admite prova em contrário. O efeito de tal presunção é o de inverter o ônus da prova. Como conseqüência dessa presunção, as decisões administrativas são de execução imediata e têm a possibilidade de criar obrigações para o particular, independentemente de sua concordância e, em determinadas hipóteses, podem ser executadas pela própria Administração, mediante meios diretos ou indiretos de coação. É o que os franceses chamam de decisões executórias da Administração Pública".[2]

Pois bem, a atuação da Administração Pública tem suporte, em qualquer situação, na presunção de que seus atos praticados são verdadeiros, traduzem a realidade fática e, ademais, praticados de acordo com as disposições legais, as quais a administração esta obrigada a orientar-se.

Ocorre que, como pontuou a insigne doutrinadora, o segundo aspecto deste princípio relaciona-se à presunção de legalidade. Nessa senda, como à Administração somente é permitido fazer o que a lei autoriza e partindo do pressuposto que princípio é uma norma genérica que compõe o ordenamento jurídico, a Administração Pública não pode, sob qualquer hipótese, esquivar-se da aplicação do princípio do devido processo, que engloba o contraditório e a ampla defesa, consignados no art. 5º, LIV e LV da Carta Magna.

Estabelecidas assim, as primeiras premissas constitucionais que lastrearão o trabalho científico, mister se faz delinear de que maneira esses princípios são observados nos processos administrativos de infrações de trânsito, cujo procedimento está previstos na Lei n. 9.503 de 23 de setembro de 1997 – Código de Trânsito Brasileiro.

De fato, é somente através do processo administrativo que se pode garantir aos administrados o direito de influir na formação da vontade estatal, estabelecendo-se um verdadeiro diálogo entre aquele e a Administração Pública, no intuito de se preservar o interesse coletivo que deve nortear todas as atividades do Poder Público.

Tal compreensão se afigura como imprescindível, notadamente quando do exame de processos administrativos de autuação e imposição de penalidade, como, por exemplo, o decorrente da prática de infrações de trânsito, os quais, oriundos do exercício do poder de polícia do Estado, repercutem de forma eminentemente árida na órbita jurídica dos cidadãos.

Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:

[...] estão aí consagrados, pois, a exigência de um processo formal regular para que sejam atingidas a liberdade e a propriedade de quem quer que seja e a necessidade de que a Administração Pública, antes de tomar decisões gravosas a um dado sujeito, ofereça-lhe oportunidade de contraditório e de defesa ampla, no que se inclui o direito de recorrer das decisões tomadas.[3]

Nesse diapasão, conforme ensina Alexandre de Moraes:

[...] por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela acusação, caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.[4]

A ampla defesa e o contraditório, portanto, sintetizam o aspecto formal do princípio do devido processo legal. Entretanto, o "due process of law" deve ser tomado, também, sob a ótica material, traduzida na idéia da necessária verificação da razoabilidade e proporcionalidade imanente à medida estatal examinada.

Nas palavras de Lúcia Valle Figueiredo:

[...] o due process of law passa a ter um conteúdo também material, e não tão-somente formal - quer dizer, passa a ter duplo conteúdo: substancial e formal. Os processualistas da atualidade entendem está contido, no due process of law, conteúdo material. Somente respeitará o due process of law a lei - e assim poderá ser aplicada pelo magistrado - se não agredir, não entrar em confronto, não entrar em testilha, com a Constituição, com seus valores fundamentais.[5]

Não obstante a importância do princípio constitucional do devido processo legal, em face a sua relevância, o processo administrativo de autuação e imposição de penalidade deve ser igualmente orientado pelos demais preceitos constitucionais que vinculam toda atividade da Administração Pública.

Como se percebe, é através do respeito aos ditames estabelecidos na Constituição Federal que o processo administrativo possibilitará a prolação de decisão equânime e voltada para o interesse público, legitimando, por conseqüência, a atividade da Administração Pública em prol de uma finalidade coletiva.

A Constituição Federal de 1988 é tomada, portanto, como a principal referência durante o deslinde do processo administrativo de autuação e imposição de penalidade decorrente de infrações de trânsito, que se fará legítimo na medida em que efetivar os princípios e regras contidas expressa ou implicitamente no texto constitucional.

Na lição de Luís Roberto Barroso:

A idéia de efetividade, conquanto de desenvolvimento relativamente recente, traduz a mais notável preocupação do constitucionalismo nos últimos tempos. Ligada ao fenômeno da juridicização da Constituição, e ao reconhecimento e incremento de sua força normativa, a efetividade merece capítulo obrigatório na interpretação constitucional. Os grandes autores da atualidade referem-se à necessidade de dar preferência, nos problemas constitucionais, aos pontos de vista que levam as normas a obter a máxima eficácia ante a circunstância de cada caso.[6]

A aplicação dos princípios constitucionais, hodiernamente, assume o caráter direto e imediato, ao revés do antigo caráter subsidiário que lhe era emprestado pela legislação ordinária, pelo que os princípios podem e devem incidir diretamente para regular o caso concreto, notadamente, no que concerne ao processo administrativo de conteúdo punitivo.

Assim, fica demonstrado que todo o ordenamento jurídico vigente deverá refletir os princípios constitucionais sob pena de ineficácia das normas que regulamentam o Estado Democrático de Direito.

O Princípio de presunção de legitimidade, nos casos de processo administrativo de conteúdo punitivo, então, devem proporcionar o devido processo legal, a partir da garantia ao contraditório e da ampla defesa, que somente serão consolidados com a disponibilização de meios idôneos de produção de provas à efetiva e eficaz defesa.

A mitigação às garantias constitucionais, dessarte, apresentam-se na medida em que o Estado, protegido pelas ultrapassadas presunções de veracidade e legalidade dos atos e fatos, não proporcionam meios aos administrados para a produção de provas imprescindíveis à defesa no processo punitivo. É o que sempre ocorre com as multas devido a ausência de cinto de segurança, cujos agentes competentes sequer param os motoristas para a notificação da infração.

Outras situações insidiosas, como as multas por falar ao telefone celular enquanto dirige, têm, também, no bojo dos seus procedimentos a inviabilidade do administrado produzir prova em contrário, tornando-o vítima das prerrogativas da Administração Pública.

Para os casos de infração a legislação de trânsito deve o Poder Público lavrar o auto de infração de trânsito, em consonância com os aspectos formais da legislação que o informa e sob a égide da Constituição Federal, evitando-se, assim, a supressão das garantias do devido processo legal e eventuais vícios em sua estrutura jurídica.

Alfim, se o ordenamento jurídico deve lastrear-se nas normas-princípios constitucionais, então o ato administrativo de autuação de infração de trânsito não pode viger com base no princípio da presunção de legitimidade, vez que este colide com o princípio maior, o devido processo legal, o qual proporciona segurança jurídica às relações processuais.

O interesse público que deve ser salvaguardado, nestes casos, é a segurança jurídica, bem como a eficácia do Estado democrático de direito. Logo, conclui-se que inobservância às diretrizes constitucionais no que se refere ao procedimento estabelecido no Código de Trânsito Brasileiro, portanto, mitiga o devido processo legal- contraditório e ampla defesa – no que concerne a inviabilidade do administrado produzir provas e contraditar as alegações do Poder Público.


[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 747 - 748

[2] PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004,p. 72.

[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 11. ed.São Paulo: Malheiros, 1999, p. 71.

[4] MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 122.

[5] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.431.

[6] BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 246.


Autor: Lorena Braga


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