Matemática e Linguagem - Um Diálogo Possível e Promissor



Já há algum tempo, a reflexão sobre o ensino da matemática acompanha minha ação docente e discente. Como esse ensino está perpetrar enganos e erros, que se refletem nos resultados, não só nos aferidos por avaliações formais de rendimento, mas também os presenciados no cotidiano.

Em alguns textos tive o "prazer" de ver algumas das minhas "idéias" refletidas, o que me causou alento e desalento. Alento, pois vi que não estou só, aliás, pessoas de incontestável competência. Desalento, pois daí pode-se imaginar como o quadro é "terrível". Percebi um desconforto que é de certa forma comum e latente a nós professores, não só de matemática, mas numa maioria desconfortável de vezes, especificamente nesses.

No nosso dia-a-dia, nas salas de aula, em nossas casas, nas mesas de bares, nos mais diversos lugares, torna-se "lugar comum" ouvirmos comentários do tipo: "A matemática é pra poucos", "A matemática é abstrata", "A matemática é a ciência exata", "A matemática desenvolve o raciocínio lógico". Até nos acostumaríamos com essas frases, se elas não nos doessem, nos gritassem e nos indicassem os sintomas de algo crônico e profundo. Como uma ferida cálida a nos incomodar. E, talvez o pior, é bem provável que pratiquemos essas idéias, ou talvez venhamos a praticá-las.

O que é verdade? O que é mito? Todos temos condições de aprender matemática? Ou realmente só alguns poucos? Muitas dessas afirmações já estão no inconsciente coletivo e popular, e são tidas como verdades absolutas, quando na verdade são frases ditas ao vento, vazias de significado se olhadas à luz de um espírito científico. Alguns de nós professores, mesmo sendo comprometidos com o ensino, acabamos acreditando nelas, e infelizmente acabamos porpautar nosso trabalho, com essa perspectiva, com esse olhar.

Parece-me bom e cômodo ensinar matemática, ou qualquer outro conteúdo, pra quem aprende com facilidade. Mas por que alguns têm facilidade em aprender e outros não? Essa é umas das questões relevantes, que urgem por nossa reflexão.

É comum ouvirmos a frase: "Ah! Professor não levo jeito pra Matemática", justificando fracasso em provas ou não compreensão de um ou outro assunto da Matemática. Esse "não levo jeito" quer significar: "não tenho aptidão". Será inata, essa aptidão? Pessoas têm ou não aptidão para a Música, para a Poesia. Mas, diferentemente da Matemática, Música e Poesia, ou qualquer outra atividade que supostamente exija aptidão específica, não são ensinadas compulsória e indiscriminadamente a todas as pessoas, em todas as escolas.

Poderíamos pensar então em identificar quais conteúdos um determinado sujeito teria aptidões pra aprender e ensiná-lo até esse ponto. Seria esdrúxulo: "Joãozinho você mostrou aptidão para aprender função do segundo grau". Ou: "Pedrinho você tem aptidão para aprender Topologia, Álgebra, Análise..." Seria inusitada tal situação, inverossímil e improvável. Ainda bem!

E é comum vermos indivíduos altamente capazes e notáveis em suas áreas de atuação e muitas vezes esses indivíduos nem tomam conhecimento de Matemática. É normal, ao depararmos com essa postura, a interpretarmos como uma opção entre diferentes alternativas e nunca como um impedimento ou inaptidão para aprender Matemática.

Não é o caso de definir se todos os indivíduos podem ou poderiam dedicar-se a qualquer assunto ou se existem talentos especiais. É óbvio também, que não pretendemos que todos sejam matemáticos, mas seria natural esperar-se que, na utilização cotidiana de um instrumento básico para a comunicação e representação da realidade, e como diria Paulo Freire da "Leitura de mundo", fôssemos todos humanos, igualmente capazes.

Ou será que somos mesmo tão diferentes um dos outros? Existem humanos e humanos? Hitler estava mesmo certo? Mas qual será a raça que tem o privilégio de ser apta a aprender Matemática? Ou melhor, qual seria a classe social?

O que vemos é a confusão entre "interesse" e "aptidão" para a Matemática. Esse interesse pode ser: construído, alicerçado e desenvolvido. O professor, munido da linguagem adequada, sensibilidade, boa vontade, paciência e dedicação, pode gradativamente levar seus alunos a elevados níveis de conhecimento matemático e a uma utilização sistemática desse conhecimento. E até mesmo em alguns casos, a Matemáticos ou professores de Matemática, dependendo dos respectivos "interesses", não "aptidões".

Faz-se necessário refletir sobre as realidades sociais desses sujeitos, sobre seus lares, suas estruturas familiares, quem são seus pais e mães? Médicos e médicas, pedreiros, engenheiros e engenheiras, professores e professoras, presidiários e presidiárias, traficantes, vendedores e vendedoras ambulantes? O que esse ou aquele sujeito teve em sua mesa? Qual o seu café da manhã ou almoço ou jantar? (Se teve). Por que alguns têm e outros não? Quanto tempo o pai ou a mãe passa com esse filho? Eles ajudam-no a fazer os deveres? Acompanham-no na vida escolar? Qual o vocabulário de um e outro? O que determina a aprendizagem ou não é um conjunto de fatores ligados à vida cotidiana do sujeito, e dizer que alguém não tem capacidade de aprender, porque não nasceu pra isso, é por demaisinfeliz.

É preciso pensar seriamente nas dificuldades impostas pelo formalismo da linguagem matemática, nas dificuldades impostas pelo modelo político-econômico vigente em nosso país, nas dificuldades impostas pela "instituição" escola. Refletir e inferir sobre esses assuntos é um caminho na busca de soluções sérias, não mirabolantes, nem milagrosas, mas eficazes.

Por que muitos pedreiros, carpinteiros e marceneiros, analfabetos, usam o teorema de Pitágoras sem nunca terem ouvido falar dele? Todos podemos desenvolver um "pensamento matemático", em algum momento de nossas vidas? Vemos nos sinais de trânsito, meninos, meninas, adolescentes, adultos vendendo doces, frutas, brinquedos, os mais variados objetos. E muitos desses não freqüentam a escola ou freqüentaram-na ou deixaram de freqüentá-la há muito tempo. Mesmo quando o faziam, em geral apresentavam inúmeras dificuldades em operar com adições, subtrações, multiplicações e divisões, sem contar com dificuldades na escrita, leitura e fala. Em suma, eram fracassados escolares, no sentido mais amplo do termo. E agora, nos sinais, realizam essas operações com desenvoltura e naturalidade, recebem dinheiro de seus fregueses, dão troco, calculam os preços de um ou de vários produtos, dividem os lucros. E realizam esses cálculos com exatidão e na maioria das vezes mentalmente. Não erram no troco, pois senão vai-se embora o lucro, ou os fregueses, e, em ambos os casos, é prejuízo. Já no ambiente escolar não conseguem ou conseguiam realizar os mesmos tais cálculos. Como explicar isso? Como entender esses sujeitos e fazer da escola um lugar onde possam se desenvolver com plenitude e exercer sua cidadania com dignidade.

Como e por que a grande maioria das pessoas perde o interesse e cria aversão à matemática? À escola? O ensino-aprendizagem é "prazeroso e doloroso". É culpa de professores? É culpa de livros? É culpa dos meios de comunicação? É culpa do aluno? Podemos culpar professores, podemos culpar alunos, podemos culpar pais e familiares, podemos culpar o governo, podemos nos culpar, podemos culpar quem quer que seja, mas ainda assim não estaremos atacando o problema.

 A dificuldade em aprender está também no ambiente "escola". Do contrário, tanta gente não aprenderia, em outros espaços, a lidar com valores monetários (ambulantes), com geometria (pedreiros), estando distantes da escola. Quaisquer que sejam as respostas àquelas questões, se houverem, valerão a pena. Entender os motivos dessa aversão à matemática e à escola será um primeiro passo, dos muitos que precisam ser dados no sentido conhecer essa "moléstia' e tentar sua cura, que é transformar nossas escolas, torná-las eficientes, torná-las públicas (no sentido lato da palavra), uma escola de todos e para todos. Professores, pesquisadores, estudiosos, educadores de um modo geral saem com ganhos em suas diversas áreas de atuação, se buscarem o cerne dessas e de outras questões, se não se prenderem a preconceitos, se pautarem suas práticas na busca de soluções, se pautarem suas práticas na busca de um sonho possível, a nossa educação básica, por que não de nossa escola pública.

É comum ouvirmos os seguintes comentários: "quando estudei, a escola pública era muito melhor, nós aprendíamos mesmo", "o 1º grau de antigamente vale mais que o 2º grau de agora". Ouvimos isso de educadores, de nossos familiares, do padeiro da esquina, de amigos, de pessoas comuns e até mesmo de autoridades.

A escola pública "de antigamente" era, porém, outra escola: elitizada, excludente, pra poucos e, portanto não pode, nem deveria ser comparada à de hoje. A escola pública foi aberta, e tenta não reter, não excluir, tenta sim, tornar-se includente. No entanto ela não foi estruturada para tal. Hoje, quem a freqüenta são os filhos dos trabalhadores ou os próprios trabalhadores. O resgate da dignidade dessa "escola pública" é o resgate da dignidade do cidadão brasileiro. Esse resgate de cidadania passa também pelo ensino da matemática.

Tenho consciência de minhas limitações espaço-temporais e intelectuais, portanto, não tenho a pretensão de sozinho, vir a responder essas questões, mesmo porque elas envolvem áreas distintas do conhecimento, e que estão muito além de minha competência, mesmo que esteja imbuído de toda boa vontade possível. Lançá-las-ei com a certeza de que não poderia respondê-las todas, mas também com a certeza de que, de alguma forma, minhas dúvidas, indagações e incertezas são as de muitos, e podem contribuir na reflexão dessas e de porventura outras questões. Isso já seria motivo suficiente de alegria e por que não, de satisfação, e assim já justificaria esse trabalho.

Nesse texto, fazemos uma tentativa de aprofundar a discussão e reflexão sobre algumas características atribuídas à Matemática. Ela consta nos currículos escolares de praticamente todos os países do mundo. E mesmo assim seu ensino é considerado confuso e insatisfatório. Não revela suas verdadeiras especificidades, não considera a formação do conhecimento dos indivíduos, não considera aspectos cotidianos.

As razões pelas quais ensinamos essa "Matemática" permanecem obscuras e intocadas. Em nosso entender, só tendo certa clareza sobre essas razões o professor poderá desenvolver seu trabalho de forma satisfatória e prazerosa.

Com efeito, parece-nos haver falta de clareza nas finalidades do ensino de muitas outras disciplinas, mas tal esclarecimento nos parece mais relevante nos casos: da Língua Materna, conforme Machado (1993): "a primeira língua que aprendemos" (p.9), e da Matemática, pelo fato de ambas terem valor instrumental e constituírem ferramentas para a compreensão e "leitura do mundo". E são também provavelmente, os primeiros conjuntos de símbolos que aprendemos a manipular, com o específico objetivo de nos comunicarmos. Assim, os reflexos desse não esclarecimento expandem-se a muitos ramos do conhecimento.

Só a Matemática é exata?

Matemática: a disciplina da qual muitos têm "medo", "receio", "pavor". Ela é que trata de coisas: "exatas", "abstratas", que poucos têm "capacidade de compreender". Ela é que "desenvolve o raciocínio", que pode e deve ser "aplicada a tudo". Verdades? Mentiras? Buscando responder a essas questões postas, argumentaremos na tentativa de fazer "tremer" as bases nas quais essas afirmações estão fundamentadas. Verdadeiros "alicerces" sobre os quais está erigida a visão de Matemática, de grande difusão na nossa sociedade. Tentaremos mostrar que uma das muitas dificuldades em aprender e ensinar Matemática, pode estar em sua linguagem, de sintaxe e simbologia próprias. E, talvez, o mais relevante seja o fato de essa "linguagem" Matemática ser uma linguagem própria para a mídia escrita, seu ensino precisa de uma oralidade, da mediação, que é a da Língua Materna. Por isso vemos essa essencialidade e relevância no ensino das duas: Língua Materna e Matemática.

Sob quais pontos de vista a Matemática é considerada exata? A resposta é às vezes esta: "Tudo pode ser demonstrado em Matemática, ela exprime seus resultados numericamente e trata de proposições sem ambigüidades, ou seja, falsas ou verdadeiras".

A "demonstrabilidade" de suas proposições é talvez o mais firme pilar dessa tal "exatidão" conferida à Matemática. Mas o que significa demonstrar?

Ao buscarmos essa resposta, encontramos dois caminhos que se bifurcam, numa das estradas o formalismo, segundo Machado (1993), "corrente filosófica que identifica a Matemática com o estudo dos sistemas formais" (p.36). Os formalistas pretendiam conduzir a Matemática à formalização completa. Uma teoria formal é aquela que se refere a um conjunto de objetos, seus termos fundamentais, suas regras de obtenção de fórmulas a partir desses tais termos, seus axiomas ou postulados e suas regras de inferência. Os termos fundamentais (primitivos) descrevem os objetos. As regras organizam o discurso a respeito desses tais objetos. Os axiomas são admitidos como verdades iniciais. Demonstrar, nesse sentido, é apresentar uma proposição como conseqüência de um argumento, no qual as premissas ou são axiomas ou proposições já demonstradas a partir desses.

Na outra via encontramos a idéia de demonstração em seu "sentido lato". Segundo Moles, em Machado (1993):

"Demonstrar um fato é construir um sentimento de evidência desse fato em um indivíduo receptor, comunicando-lhe uma mensagem cujos elementos formam uma série de evidências elementares"(p.37).

A completa "demonstrabilidade" da Matemática ficou definitivamente abalada a partir dos trabalhos de Gödel (1931), que verificou-se ser possível demonstrar que, em sistemas formais que admitam uma interpretação da aritmética, é impossível conjugar completude e consistência[1], ou seja, nem tudo pode ser demonstrado em Matemática. Contraditório? Paradoxal?

Com maior ou menor formalidade, procura-se demonstrar proposições, em qualquer ciência. Na ânsia de se configurarem como ciências referenciadas no paradigma da modernidade e buscarem conferir à suas proposições um certo sentido (menos ou mais radical) de exatidão mesmo as ciências humanas adotaram numa certa fase uma perspectiva dedutiva. Porém, até no caso da Matemática, vimos não ser possível conciliar completude e consistência em um sistema formal. Demonstrabilidade pode ser tomada então como garantia de exatidão?

Expressar "numericamente"seus resultados é outro desses pilares da "exatidão matemática". Talvez isso revele em nós um resquício de herança cultural. Os gregos, (em especial os pitagóricos), afirmavam, "os números governam o mundo". E pensavam esse "mundo" de alguma forma ligado à sua religiosidade. Talvez por isso dedicassem esse respeito quase divino à Matemática e às suas expressões, dentre elas os números. Simetria, harmonia, perfeição eram então associadas aos resultados matemáticos, muitas vezes numéricos. Esse culto à onipresença da Matemática resiste até o século XX,vejamos o que pensava Einstein, refletindo sobre um questionamento seu:

"Como pode a matemática, sendo acima de tudo um produto do pensamento humano, independente da experiência, se adaptar tão admiravelmente bem à realidade objetiva?"(Apud Machado, 1993, p.40).

Nesse sentido, se considera-se que os números governam o mundo, pode-se assumir como conseqüência que o argumento matemático, que deles se vale, ganhará ares de perfeição,exatidão e certeza.

Mas o que pensa o homem comum acerca dos números? Talvez que eles se originem dos processos de contagem e de medição, que têm uma estrutura própria, um conjunto de leis que os regem.

Se por um lado são depositários de grande confiabilidade, causam às vezes certo desconforto, devido à imprecisão dos processos de medição. Além disso, um mesmo número pode ser usado pra representar várias idéias diferentes. Um número não é apenas expressão de quantidade ou medida (por exemplo, a sala de número 20 não tem necessariamente o quíntuplo da área da sala de número 4). O número é também (e talvez originariamente) expressão da ordenação. E também a indicação de uma operação, como seqüência de iterações.

Assim, será necessário aprender a conceber os números em suas várias possibilidades para que não nos percamos em discussões infrutíferas como aquela, citada por Machado(1993, p. 43), trata-se de um questionamento feito por um advogado e respondido por um matemático por meio da seção Folha Ciência do jornal a Folha de São Paulo:

"Se tenho uma fita de 1000 mm e a divido em 3 partes, consigo juntá-las e obter a fita original. No entanto, se divido 1000 por três, obtenho 333,333333333333333 juntando as três partes, não resulta 1000, mas 999,999999999999999. Se a Matemática é uma ciência exata, por que ela não consegue exprimir uma divisão materialmente possível?"

A resposta dada pelo matemático foi:

"A pergunta é interessante, mas acho que alguns termos devem ser postos de maneira mais precisa. Quando se pega uma fita de 1000mm seccionando-se em três pedaços iguais, cada pedaço tem um comprimento representado matematicamente por 333,333333...mm, onde aparece uma quantidade infinita de dígitos 3 e não só quinze dígitos 3. Ao somarmos, obtemos 999,999999...mm, onde aparece uma quantidade infinita de dígitos 9 e não só quinze dígitos 9, como descreve a pergunta. Deste modo, o que está em jogo é: que número é este que é representado por uma quantidade infinita dedecimais? Vou defini-lo. Sejam S1=999,9; S2=999,99; S3=999,999;...; Sn=999,999...9, isto é, n noves após a vírgula. Por definição, 999,999...(infinitos noves) é o menor número que é maior que Sn para todo n. Prova-se que 1000 satisfaz a definição acima. Logo, a soma das três partes é 1000."(p.43)

Esse exemplo nos ilustra dois pontos de vista, preestabelecidos, um querendo argumentar e sobrepor-se ao outro, não importando em refletir sobre seus argumentos, nem em clarear sua visão do outro. Na verdade, não se estabeleceu um diálogo, apenas um e outro falam, sob seu ponto de vista, em sua linguagem e fechados em seus interesses. Infelizmente, é também isso que muitas vezes ocorre em sala de aula. O aluno fala de uma coisa, faz um questionamento e o professor por sua vez, ao respondê-lo, fala de outras coisas, não se entendem e "se vão felizes" vida afora, por não se dedicarem à compreensão da perspectiva do outro, ou sequer conceber que os números e a Matemática podem ter dimensões diferentes.

Abstração matemática

"Abstrato e concreto", no senso do homem comum não existe nada tão nitidamente mais fácil de se separar, nada tão dicotômico. O abstrato trata de coisas da imaginação, do pensamento, das idéias, do não-palpável, do intangível, do inefável. O concreto, das coisas manipuláveis, que podem ser tocadas, do real. Coisas que estão presentes no "aqui e agora". Creio que todos distinguimos concreto e abstrato.

É fato, a Matemática trata de coisas abstratas: números, pontos, retas, tangentes, em alguns casos realmente não manipuláveis. Mas o fato de tratar de algumas idéias abstratas justifica sua não-compreensão? Talvez tenhamos de refletir se não existe algum interesse em mantê-la, "obscurecida", supostamente por sua abstração. Mesmo porque, não é só a Matemática que trata de assuntos abstratos e mesmo afirmando não compreendê-la, há aqueles que a buscam, e buscam também compreender seus conceitos e idéias.

Alguns outros conteúdos escolares, aliás, a maioria dos outros conteúdos tratam de assuntos abstratos. Uma obra literária, por exemplo, nos conta sobre fatos e personagens que nunca existiram realmente ou que se existiram, quase sempre interagimos com eles na obra literária não como pessoas, mas como personagens, ícones: são abstrações na sua forma mais genuína. E com tudo isso, muitos a apreciam e procuram compreendê-la e, mesmo que não a amemos, não temos pavor ou medo dela. A menos que se trate de uma história de terror.

A psicanálise, fundada por Freud, trata de conceitos demasiados abstratos, e como diz o dito popular, "só Freud explica". Mas o próprio Freud dizia: "Tenho capacidades e talentos muito restritos. Nenhum para as Ciências Naturais, nenhum para a Matemática, nada para as coisas quantitativas" (apud Machado, 1993, p.21).

Será que se justifica, então, argumentar que um mau desempenho em Matemática se dá pura e simplesmente por ela tratar de coisas abstratas? Reflitamos.

O conhecimento é construído, partindo do concreto ao abstrato? Ou do abstrato ao concreto? Na verdade não existe um caminho unidirecional para se alcançar ou construir o conhecimento. Certo é que abstrato e concreto se articulam, as abstrações são mediações necessárias à construção do conhecimento, assim como também o são as manipulações de objetos concretos, ou mesmo as referências a eles.