Conversa Noturna



Fazia uma noite com as estrelas de sempre, porque nem sempre tem estrelas, em certa seção do Parque Ibirapuera. Três grandes seres, reunidos em torno de um ser menor, ensejavam a seguinte conversa:

- Vocês se lembram do Mercado São João? Ele foi demolido, para dar lugar ao largo do Correio e...

- Ora, faça-me o favor, isso aconteceu em 1907.

- 1911! – exclama o terceiro – e ficou muito mais bonito.

- Muito mais bonito – confirmou o primeiro – e com 3 frentes, uma delas dava para a antiga rua do Seminário.

- Não sei se eu gosto do projeto, muito acadêmico, de um tal de Domiziano Rossi.

- Talvez - hesitou o terceiro - mas a construção foi confiada ao Escritório Técnico Ramos de Azevedo. Grande homem.

- Grande...- os outros confirmaram.

- Algumas coisas nunca mudam – disse o ser menor - Os físicos as chamam de constantes da Natureza. Eles supõem que certas quantidades, como a velocidade da luz, a constante gravitacional de Newton e a massa do elétron, sejam sempre iguais, em qualquer momento ou lugar do Universo ...

- Dá para você calar a boca?! – disseram o maiores, quase em uníssono.

Nalgum ponto relativamente próximo, uma cigarra emite o som que lhe é devido.

- Agora, ao que me consta, o  engenheiro Alberto Kuhlmann venceu o concurso para construir o segundo matadouro.

- Humpf! E quem concorria com ele? Em 1885 as cartas eram marcadas...

- Como se não fossem hoje – ponderou o terceiro - Além do mais, ele venceu o concurso em 1884,  1885 foi a inauguração.

- A física progrediu – exclamou o ser menor - ao realizar medições cada vez mais precisas para seus valores. Apesar disso, ninguém até hoje conseguiu prever ou explicar essas constantes.   Os físicos não têm idéia de ...

- Cale-se! – fez o primeiro ser maior. Os outros dois maiores anuíram, com olhar severo para o menor. O primeiro retoma a palavra:

- Achei bacana terem mudado o primeiro matadouro de lugar, pois ficava uma sujeirada no córrego Anhangabaú.

- Cruzes! A sujeirada maior ficava próxima a rua Humaitá. E isso foi em 1852.

- Não, não. 1852 foi construído. Demorou para acumular a sujeirada...- salientou o terceiro.

- Quase 30 anos – ponderou o primeiro, e daí olhou com toda a severidade para o menor, e prosseguiu – Kuhlmann se formou pela Escola de Engenharia do Rio de Janeiro e...

- No Rio? O governo era no Rio! Mamata, não falei?

- Calma – pede o terceiro -  ele era tido como ousado, visionário, chegou até a projetar “elevadores por planos inclinados”, entre a rua 25 de março e a antiga rua do Hospício.

- Eis um bom nome para as ruas de hoje – ponderou o primeiro. Os três concordaram. Foi a deixa para o menor:

- Nas unidades do Sistema Internacional (SI),os  números  não seguem nenhum padrão reconhecível. A única característica comum a muitos desses valores é que, caso fossem diferentes do que são, ainda que ligeiramente, estruturas atômicas complexas como seres vivos não existiriam. 

- Pôoooooooooba! Assim não dá!

- É, não dá. Ele só atrapalha. Não dá pra transplantar ele para outro lugar? Toda noite é a mesma coisa...

- Não seria correto. É muito jovem. Os jardineiros de hoje não são confiáveis.

Um grilo, com o som que lhe é devido, manifestou-se acolá.

- Essa mudança do matadouro foi providencial...

- Não para quem morava em Santo Amaro.

- É verdade, o pobres bichos passaram a ser mortos lá, e trazidos para o Largo da Glória, que depois passou a se chamar Largo São Paulo.

Nisso, a cigarra num local e o grilo noutro, embora ao mesmo tempo, emitem os sons que lhes são devidos. Os três grandes seres se calam, e o menor, que já estava calado, assim permanece.

Sob suas copas há um pequeno banco de concreto, e nele se sentam os vigias da noite, João e Paulo. Ambos trazem lancheiras.
João está prestes a se aposentar. Paulo, jovem, com a ansiedade que lhe é devida, quer saber do veterano acerca da veracidade sobre os estranhos murmúrios que, dizem, ocorre no parque, sempre na calada noite. João dá de ombros. Diz que na calada da noite muitas coisas acontecem. Ninguém dá testemunho.

- Por exemplo: Sabe quantos mataram no Jardim Ângela este final de semana? E na Móoca? E em Heliópolis?

Paulo dá de ombros. Explica que desde que nasceu morou em bairros conturbados, e que de tanto os corpos tombarem, já virou rotina.

- Tombam, assim como as árvores – murmurou João, absorto – a propósito, qual o nome do novo vigia, o que entrou ontem?

- Simão.

Cerca de, aproximadamente, 10 minutos depois, os dois terminaram o lanche e partiram para uma caminhada sob outras árvores.

Acolá, a cigarra propagou o som que lhe é devido.

- Tombam? – indagou o ser menor, inquieto – árvores tombam?

- Não se preocupe. Nós somos tombadas. Agora, voltando à praça do Correio, uma série de prédios foram demolidos...

- Tudo velharia, estava mais do que na hora de demolirem.

- É, mas no largo no Paissandu, em 1911,  foram construídos os primeiros prédios de apartamentos...

- Ei! – exclamou o menor – vocês sabiam que existiu uma banda, e, os músicos tinham os nomes dos apóstolos? John, Paul, George e...

- Ringo!  - completou o grilo, num som que não lhe é devido.


Autor: Bernard Gontier


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