O Brasil Disse "não" Ao Reverendo



A apuração do resultado do referendo realizado no dia 23 de outubro de 2005 em todo o Brasil - para saber se a população concordava ou não com a comercialização livre de armas no país - apresentou resultados interessantes sob vários pontos de vista, os quais já foram analisados em abundância pela imprensa através de seus analistas políticos e econômicos. Ficou patente o desejo da população em dizer “Não”. O “Não” venceu em todas as capitais e, ainda, amealhou 69 vitórias nos 71 municípios com mais de 200 mil habitantes. Ou seja, uma vitória acachapante!

Houve quem atribuísse a vitória do “Não” ao erro da proposição, que apresentava uma dúvida sobre o que de fato se estava votando. Na verdade votar “Não” no referendo significou dizer que o país deveria continuar com um comércio livre de armas. Que também não era bem assim, pois esta comercialização em liberdade de armamentos possui uma legislação própria que a regula e a restringe. Ou seja, parece que a população votou uma coisa e realizou outra ou então que tenha votado em algo que propunha mudanças, mas que no fundo tudo deve continuar na mesma.

Além disso, alguns intérpretes da realidade política nacional, por conta dos sucessivos escândalos financeiros em que esteve metido o governo Lula, que apontaram na vitória esmagadora do “Não”, um dado simbólico como se o votar no “Não” tenha significado uma rejeição ao Governo Federal. Nessa perspectiva, o que estaria em julgamento seria o governo do PT. Muitos rejeitaram essa idéia, por considerarem o momento adequado para isso às eleições nacionais realizadas em 2006, quando o povo fez sua análise do governo Lula e do PT e reeditou, nas urnas, a escolha por Lula e seu governo desconsiderando qualquer questão ética de relevo.

Uma outra análise mostrou que populações de baixa renda - ou moradoras em áreas de risco de violência e ação do tráfico e do banditismo como favelas e subúrbios ainda não de todo urbanizados -, votaram expressivamente pelo “Sim”, principalmente no Estado do Rio de Janeiro. Analistas, então, mostraram que esta tendência representou a rejeição das armas, por uma população que sofre de seus efeitos, com a incursão da polícia em seu território na caça aos bandidos e a guerra de quadrilhas pela detenção do poder e da comercialização das drogas em “bocas de fumo” nestas localidades.

Foi triste ver famílias que perderam entes queridos por meio das famigeradas “balas perdidas” ou mesmo em função de ações de bandidos e que se envolveram de corpo e alma na campanha do “Sim” chorarem ao perceberem que estavam na contramão da história já que houve uma contundente preferência brasileira pelo “Não” neste referendo.

Mas, nosso objetivo é aprofundar essa análise para um campo que ainda não foi estabelecida. Tentar identificar a questão religiosa subjacente à opção feita pelo brasileiro. Daí o título deste artigo. Como cidadão, não posso entender que alguém se tornaria possuidor de uma arma sem a intenção de um dia, se necessário, utilizá-la. Como cristão, não posso aceitar que um irmão de fé, viesse a utilizar uma arma de forma tranqüila, mesmo que fosse em sua própria defesa ou da família. Ou seja, ser possuidor de uma arma, impõe a premeditação de utilizá-la em caso de necessidade e, conseqüentemente a possível quebra do mandamento: “Não Matarás!”.

Duas razões me levam a entender que a questão religiosa foi a mais prejudicada neste referendo e que, na verdade, o mesmo expôs a realidade nua e crua de uma população que já não mais age com base na sua crença ou religião. Primeira, onde estavam os brasileiros que se dizem católicos e evangélicos e constituem a maioria absoluta da população brasileira? De acordo com os dados do referendo, estavam do lado do “Não”. Segunda questão: Foi público e notório que as lideranças católicas através da CNBB e dos padres em suas paróquias, além de organizações como Rede Vida e Canção Nova e outras que detêm poder de mídia, estiveram do lado da Campanha do “Sim” incentivando seus fiéis a rejeitarem a livre comercialização de armas no país. O mesmo se deu entre as lideranças evangélicas e, pastores, que em pregações no rádio, na tevê e, principalmente, nos púlpitos das milhares de igrejas evangélicas espalhadas pelo Brasil, orientaram suas ovelhas a optarem pelo “Sim”. Além disso, ONGs como o “Viva Rio”, o “ISER” e outras que possuem forte apelo religioso por lidarem com questões sociais que também interessam aos religiosos, abraçaram a causa do “Sim”. Todas, sem exceção, saíram-se derrotadas.

Veja o caso dos dois municípios que foram campeões do “Sim” e do “Não”. Em Marechal Thaumaturgo, uma pequena cidade do Acre, 97,44% dos votos válidos foi para o “Não”. Também Coqueiros do Sul, RS, teve votação expressiva para o “Não”, 96,61%, embora o lugar não possua índices preocupantes de violência. O prefeito da cidade, Acácio Scheidt de Souza (PDT), que também votou pelo “Não” acha que a votação expressou uma questão cultural: “As pessoas têm armas em casa para defender o patrimônio.”

A única cidade onde o referendo não revelou um “Não” ao reverendo foi a campeoníssima do “Sim”. Em Rio de Pires, BA, município que dista 750 quilômetros de Salvador, apresentou o maior percentual de votos no “Sim” em todo o país. Ou seja, 80% dos eleitores cravaram um “sim” nas urnas. O que aconteceu ali? Um padre, Jacques Schzartz, estabelecido há 21 anos na região, conclamou os fiéis a votarem no “Sim” e eles obedeceram. A cidade só tem uma agência bancária e os únicos registros de crimes na delegacia local são roubos a bancos, escassos, mas que quando ocorrem são perpetrados por bandidos que vêm de fora. Até o vigilante bancário da cidade, um dos poucos a ter porte de arma, votou pelo “Sim”, ou seja, contra o comércio livre de armas e justificou: “Somos uma gente muito simples, votamos contra o comércio de armas porque temos medo dos efeitos delas e queremos que permaneçam longe daqui.”

Em minha análise modesta dos fatos, este referendo que pode ter vindo em boa hora, em péssima hora ou mesmo apenas como elemento furtivo para desviar as atenções das falcatruas do governo Lula, revelou algo que os religiosos deveriam estudar com mais carinho. Um estudo aprofundado do tema poderá fazê-los perceber até que ponto estão sendo relevantes como liderança para um povo que está cansado de ser enganado, que está ansioso por resultados práticos para sua sobrevivência e que está confuso em sua religiosidade e em sua relação com o sagrado. Esta confusão é proveniente da miscigenação religiosa já existente no país pré-evangélico e que se multiplicou com a explosão das seitas neo-pentecostais a partir da década de 80 do século XX.

Se a liderança religiosa do país pregou o “Sim” – e que força mais forte e mais objetiva para disseminar idéias e inculcar hábitos e costumes que a força religiosa? – como ficou evidente em toda a Campanha, com adesão de líderes católicos e evangélicos a este movimento, por que o “Não” ganhou? Houve uma rejeição contundente a este discurso dos religiosos. Falou mais alto a “raiva” do povo ao governo Lula? Foi mais forte a dor do povo que se sente desprotegido e não vê o governo fazendo nada para pacificar as relações sociais e proteger a população das investidas da bandidagem? Foi uma questão de ressaltar certos direitos individuais de escolha que o governo estava abarcando para si? Não importa que linha de raciocínio venhamos a utilizar. Um cristão não pode ficar do lado errado, apenas para dar uma “lição de moral” no outro, se alinhar com quem esteja fazendo um protesto coletivo, ou mesmo defender seus interesses particulares, patrióticos ou de crença. A verdade deve estar sobre todas as coisas. Como disse o Mestre, “Seja o vosso falar: ‘Sim, Sim’, “Não, Não’.”

Ao votar na idéia contrária à pregação dos religiosos, o povo posicionou-se de forma livre e isolada dos freios impostos pela religião. Do ponto de vista sociológico já se tem sabido que a religião é o último reduto de transformações sociais. A ortodoxia e o conservadorismo encontram na religião terreno fértil para se disseminar. E assim, a religião tem contribuído para a preservação de certos valores e costumes ao longo das eras. Com este referendo, quando o povo disse “Não” ao reverendo, percebeu-se que a religiosidade no Brasil está às portas da europeização da fé, onde igrejas, templos e líderes religiosos secularizados, tal seu comprometimento com o materialismo e o hedonismo, já não ditam a cartilha do comportamento e das escolhas dos fiéis quanto à sua vida, de há muito.

O que ficou evidente foi a mudança do foco de sustentação da religiosidade. Até algumas décadas atrás, o religioso intencionava estar bem com seu Deus e para tanto procurava cumprir os Seus desígnios sagrados. O líder religioso (padre, pastor e outros) cumpria a função de ministro de Deus, intérprete dessa vontade sagrada, extraídas da Bíblia e repassada ao cidadão comum, ao fiel freqüentador dos cultos. Ou seja, a religião tinha como foco tornar o crente um obediente à vontade de Deus, apaziguando sua consciência no tocante ao estar no centro da vontade de Deus e promovendo obediência aos seus mandamentos.

Hoje, o fiel procura na religião não uma “obediência a Deus”, mas uma “satisfação pessoal”. A religião não tem o sentido do sagrado, mas, muitas vezes, o sentido do profano. Não é voltada para a divindade, mas para a humanidade. Não objetiva agradar a Deus, mas satisfazer aos homens. O Culto não é para Deus, mas para os freqüentadores habituais de templos. A congregação não é composta de adoradores, mas de expectadores que aplaudem o espetáculo e se emocionam com as cenas propostas tais quais num grande teatro da religião universal. Os pastores/padres, cantores e dirigentes não são mais facilitadores e ministros da adoração e do louvor, são artistas que não podem deixar o espetáculo cair.

Quando o povo brasileiro diz “Não” ao reverendo, ao líder religioso que lhe expôs a doutrina bíblica da paz, os conceitos e valores da pacificação, o mandamento da não-violência, o oferecer a outra face e caminhar a segunda milha, o orar pelos que vos perseguem e amar aos vossos inimigos; está embutida nesta rejeição de uma clara orientação bíblica, uma declaração contundente que já se revelava bem forte nas últimas décadas, mas que ficou evidente em nível nacional a partir de uma iniciativa exo-eclesiástica: NÃO QUEREMOS UMA RELIGIÃO QUE INTERFIRA NAS NOSSAS ESCOLHAS ÉTICAS!

Alguns movimentos religiosos estão ensinando para os brasileiros uma religioterapia, uma espécie de catarse coletiva ou individual, em que os valores religiosos se misturam com uma pseudociência da psicologia, buscando promover um bem-estar físico em detrimento da necessidade gritante do ser humano que é o seu bem-estar espiritual; a satisfação da alma que repousa tranqüila descansando em Deus como afirmara Agostinho.

Dizer “Não” ao reverendo que propôs uma votação no “Sim” com relação à não-possibilidade de uma comercialização livre de armas no país, significou um profundo descarte da religião como normatizadora das escolhas do povo no campo ético-comportamental. A população não quer interferência da religião no que diz respeito aos aspectos morais, relativos a estilo de vida, modos de ser, decisões comportamentais que firam aspectos de hábitos, costumes, e atuem no plano do lazer, diversão, vícios ou outras questões que podem ser qualificadas de escolhas pessoais.

Que isto já era um lugar comum na esfera do catolicismo, estava mais do que evidente a partir de uma preocupação do clero com a preservação da ortodoxia teológica em detrimento do modus vivendi do fiel. A eleição do Cardeal Ratzinger em substituição a João Paulo II no papado representou esta tendência conservadora dos líderes católicos. Mas, ainda não se tinha uma análise mais acurada desta mesma tendência no evangelicalismo brasileiro. É bem verdade que os movimentos neo-pentecostais, a partir da década de 80 do século XX, introduziram uma nova forma de ser evangélico no país em que a preocupação com as emoções do indivíduo na sua relação com o divino se sobrepunha a qualquer preocupação de caráter ético-comportamental.

Isto equivale a dizer que este novo movimento egresso do pentecostalismo brasileiro relaxou em sua cobrança ética para atrair fiéis, aproximando-se mais do estilo Católico de lidar com questões de moral. Este afrouxamento do policiamento da conduta do fiel representou uma virada de mesa na forma pentecostal de ser: de uma imposição exagerada de aspectos visíveis do comportamento como não-pintura facial; regulação do uso de adereços, corte de cabelos e uso de calças compridas; exigência de saias bem abaixo dos joelhos, com relação ao sexo feminino e, para os homens, veto ao uso de barba e deixar os cabelos crescerem etc, passou-se a experimentar uma total liberdade nesta área que no meio á denominada de “usos e costumes”.

E este afrouxamento moral descambou para complicadores reais para o conceito de “religiosidade evangélica” no país, passando-se a admitir práticas e comportamentos que feriam frontalmente a ética cristã do ponto de vista bíblico. E todos sabemos que a doutrina da “inerrância da Bíblia” é cara ao movimento evangélico, bem como a aceitação das Escrituras Sagradas como “única regra de fé e prática”, diferentemente da forma Católica de conceber a questão. De modo que as igrejas neo-pentecostais passaram a admitir em sua membresia, pessoas amasiadas, a liberdade com relação ao uso de bebidas alcoólicas, vício do cigarro e outros, práticas de culto muito próximas do fetichismo e do animismo, uma relação muito estreita entre celebração de culto e arrecadação de dinheiro, sem contar a prostituição que se deu entre religião e política com fatos vergonhosos para ambas as instituições na histórica recente do Brasil.

Tudo isto estava muito evidente, mas o desrespeito a orientação dos líderes religiosos brasileiros no sentido de votar no “Sim” e com isso afastar o Brasil de uma armamentação exagerada e conseqüente multiplicação da criminalidade, mostrou de forma contundente que os religiosos brasileiros de qualquer estirpe não mais ouvem Deus para suas decisões, mas ouvem o apelo do bolso, da emoção, do prazer e do coração. Eros e Dionísio governam as ações e Theos assiste triste os destinos pelos quais transita a sua Criação.

Cabe aqui uma digressão útil na potencialidade do jogo de palavras que se arquiteta com amamentar/armamentar. A primeira é vida; a segunda morte. A primeira é humano-divina; a segunda demoníaca. A primeira é uma expressão de amor; a segunda de ódio. A primeira propõe uma proteção real, no calor do regaço; a segunda uma proteção fictícia na explosão do balaço. Todas as campanhas da Igreja de Cristo na face da Terra hão de ser pela Paz, pela Vida e pela Alegria. E quem é de Cristo, quem é da Igreja de Cristo, nunca fará outra opção que não seja as que o próprio Cristo fez. Estamos chegando à época do Anti-Cristo e será preciso ter muito cuidado na separação do joio do trigo.

O referendo pelo “Não” à comercialização livre de armas no Brasil revelou um profundo desconhecimento ou desinteresse na associação da Teologia com a Práxis. Crê-se uma coisa, vive-se outra. A preocupação é o bem-estar do homem e não a satisfação de Deus, contrariando o que preceitua o Salmo 37.4: “Agrada-te do Senhor e ele te concederá o que deseja o seu coração.” O homem quer agradar a si mesmo e dessa forma alcançar tudo que quer, prescindindo de Deus. É tempo de revermos os rumos da Igreja Evangélica no Brasil e tomarmos cuidado para, como cristãos, não nos associarmos às obras infrutuosas das trevas.

Autor: Josué Ebenézer de Sousa Soares


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