Região: Uma Releitura Historiográfica e Epistemológica do Conhecimento aos Novos Paradigmas



RESUMO: O que é região? Muitas perguntas, muitas respostas... Definir o conceito de região é bastante abrangente, complexo, polissêmico, ou seja, é um conceito imperfeito, incompleto, por que sempre esta inovando. Considerando, então, que o conceito de região é plural, móvel e configurável. Para iniciarmos a questão com o intuito de problematizar idéias, perspectivas teórico-metodológicas, posicionamentos, argumentos e concepções de região e sua construção para cada autor discutido em sala de aula, através de textos. Primeiramente devemos entender que o conceito de região, que é erigido por sujeitos atrelados a interesses em uma relação de poderes e saberes dentro de uma determinada temporalidade e espacialidade, que faz cair por terra qualquer possibilidade de essência, naturalidade e neutralidade sobre a idéia de região. Esta proposta epistemológica ao conceito de região, a aproxima do campo histórico entre outros saberes, que a denuncia através de seu processo de regionalização e historicização. Logo, os sujeitos que a compõe são também parte desse processo, vistos como contingente a medirem forças entre si. Portanto o poder está na região em meio a seus próprios sujeitos. Este simples comentário sobre a idéia de região nos remete a analisarmos, discursos, construções simbólicas, significantes e significados de saberes como a literatura e a política lingüística, por exemplo, que fazem parte de práticas discursivas e não discursivas, e que em meio as suas tramas e tessituras dão sentido ao que chamamos de região. Em síntese, pretendo discutir a idéia de região e suas tramas, baseado em textos de Antônio Jorge Siqueira, Durval Muniz de Alburqueque Jr, e Pierre Bourdieu. Levando em consideração é lógico seus lugares sociais, e posicionamentos teóricos, que estão representados diretamente em suas concepções sobre a idéia de região, mais afinal como poderemos definir o conceito de regionalismo? Palavras – Chave: Região – Historiografia – Interdisciplinaridade.  

Antônio Jorge Siqueira, aproxima em sua análise sobre a idéia de região, o conceito de nação ao de região para especificar melhor a própria idéia de região, ambos entendidos como construção, pois o seu recorte temporal é justamente o que coincidi com as transformações e mobilizações sociais que antecedem a transição do império à república. Em suma, esta aproximação estratégica de Siqueira entre o conceito de nação ao de região é central para se entender como dentro das transformações sociais citadas acima no período de transição do império à república, estar em andamento um processo de institucionalização, que visa denominar um espaço dentro da nação, como regional.

"Projetando este arcabouço de teorização política para o nosso objeto de análise, verifica-se a necessidade de se discutir as racionalidades próprias do que teria sido o processo de institucionalização do que denominamos região com todas os seus desdobramentos na nomenclatura geográfica, sociológica, política, econômica, cultural e principalmente histórica, posto que ela deverá guardar uma estreita relação com o conceito de nação." (SIQUEIRA, 2000, p. 2).

Para se entender a idéia de região para Jorge Siqueira, seu analista deve conhecer muito bem esta citação exposta acima, pois a institucionalização do conceito de região está atrelada a tentativa de solidificação e legitimação da idéia de nação. Nesta perspectiva, região para Siqueira é uma construção que se configura através de discursos, como os citados acima, e que trama uma idéia de racionalidade para delimitar uma unidade, (nação), dividida, (região). Uma unidade como língua oficial, fronteiras demarcadas, leis uniformizadoras, e símbolos que introjetem nos sujeitos, a idéia de reconhecimento e legitimidade desta unidade. Por outro lado, uma divisão que possibilite o reconhecimento também da especificidade da divisão, no caso a região para com a nação. Mas isto não significa que este processo de institucionalização e regionalização de um dado espaço resulte em uma denominação do discurso nacional perante a regional, trata-se na verdade de relação de poderes, muito ampla para se perceber o regional por exemplo como espaço desesterritorializado de poder, na verdade o discurso regional, assim como o nacional são inclusos de poder. Finalizando, a região é um discurso em litígio para Siqueira, onde a sua historicização apreendida através de discursos fundadores desconstróem a vinculação essencialista de seu conceito.

Para Durval Muniz a idéia de região é uma construção que se edifica a partir de enunciadose imagens que se repetem de diferentes formas, conceitos e discursos, que vão modelando e dando forma ao conceito de região. Mas não trata-se de um fenômeno natural, ele torna-se possível através de dizibilidades e visibilidades que inventam e reinventam a idéia de região, para tornar introspectiva tal invenção na verdades mais íntimas do sujeito, pois é na repetição de discursos inventados que se alicerça a idéia de região ao longo do tempo.

"Definir a região é pensá-la como um grupo de enunciados e imagens que se repetem, com certa regularidade, em diferentes discursos, em diferentes épocas, com diferentes estilos e não pensá-la uma homogeneidade, uma identidade presente na natureza. O Nordeste é tomado, neste texto, como invenção, pela repetição regular de determinados enunciados, que são tidos como definidores do caráter da região e de seu povo, que falam de sua verdade mais interior."( ALBURQUEQUE Jr, 1999, p, 24)

Esta citação retirada do texto "A invenção do Nordeste e outras artes", representam muito bem a síntese da idéia de região para Durval Muniz. A repetição de enunciados como a literatura, por exemplo, representadas em livros como o de Graciliano Ramos "Vidas Secas" que estabelecem formas de dizer e ver o regional como discurso cristalizador e conformador de idéias e paisagens, se lança como visibilidade de uma realidade que por uma certa repetibilidade, introjeta formas de sentir e conhecer o Nordeste como referente de tal discurso literário. Tais discursos sacralisam e inventam uma inverdade como verdade por conta de seu referente discursivo. Em síntese, a região para Durval é norteada por práticas discursivas como esta problematizada acima, além de outras.

A idéia de região para Pierre Bourdieu tambémse sustenta na concepção de uma construção mediada por lutas de forças entre os sujeitos de um dado espaço, que configura actos, práticas e objetivos que fazem ver e fazem crer e que se dão a conhecer e serem reconhecidos como uma região. Nesta perspectiva para Bourdieu, a região é a divisão de um ato mágico, que confirma, "regere sacra", aquilo que estava inscrito, "regere fines", suas fronteiras e o seu reconhecimento.

"O acto da magia social que consiste em tentar trazer à existência a coisa nomeada pode resultar se aquele que o realiza for capaz de fazer reconhecer à sua palavra o poder que ela se arroga por uma usurpação provisória ou definitiva, o de impor uma nova visão a uma nova divisão do mundo social: regere fines, regere sacra, consagra um novo limite." ( BOURDIEU, 1989, p. 116)

Pensar este acto mágico para Bourdieu, significa antes, pensá-lo como uma nova visão de uma divisão do mundo social, que é palco de objetivação e classificação para se tornar legítimo. Este acto mágico se instaura para Bourdieu também como acto que perpassa-se no campo do "poder simbólico", pois construções de mitos e mitologias, bandeiras, hinos, datas comemorativas, sinais, emblemas, e etc, agem como instrumentos de objectivação da realidade de um espaço, onde este passa através destes próprios instrumentos a reconhecer-se como o diferente, passando assim a demarcá-lo e a defini-lo no interior dos próprios sujeitos envolvidos neste acto mágico de divisão.

Antônio Jorge Siqueira tem como condicionante teórico – medológico em sua analise desta suposta realidade que se denomina região. As contribuições e instrumentalizações das leituras pós-estruturalistas, uma vez que esta proposta de pensamento coloca o paradigma tanto do processo de regionalização com seus atores e interesses, quanto as pretensões de impregnação naturalista em relação a região, sobre o olhar crítico de uma historicização de seu conceito. Sendo assim, o conceito de região passa pelo crivo epistemológico de análises do século XIX, contexto de sua iniciação vinculada também ao conceito de nação, até o atropelo do discurso nacional perante o regional percebido no século XX. É será através destra historicização que Jorge Siqueira se balizará para definir com mais precisão a região mediada através dos discursos.

"Em sendo uma relação social, algo historicamente produzido, a região possui uma racionalidade que se traduz em discursos e torna-se indispensável resgatar não apenas uma mas várias dizibilidades através das quais se explicitam conteúdos que se pretendem percepções práticas e saberes em torno desta realidade que se denomina região. A região, sem sendo uma produção eminentemente histórica e, como tal, explicando-se no discurso dos atores, possibilita inventar narrativas e memórias".(SIQUEIRA, 2000, p. 3)

Esta citação demarca pertinentemente a posição teórica de Jorge Siqueira. A idéia de região explicita-se como e através de discursos dada uma epistemologia, que possibilita a historicização e o processo de regionalização de seu espaço. Daí a estratégia de Siqueira em compreender discursos fundadores tanto para a idéia de região quanto para a nação, como propostas de dizibilidades e visibilidades do fim do século XIX, pois tentar problematizar a idéia de região é entendê-la através dos discursos possíveis e não possíveis de um contexto, para que não caiamos na ingenuidade de cometermos anacronismos, como por exemplo, querermos cobrar algo dizível em um contexto, onde sua janela de possibilidades não lhe permita que seja dizível em tal contexto. É por isso na minha concepção que Jorge Siqueira balisado pelas teorias pós estruturalistas parte da análise dos discursos fundadores, mais não fica preso aos seus significantes, ele parte dos discursos os ampliando para uma análise de seus múltiplos significados.

Esta proposta teórica metodológica rompe e amplia o determinismo econômico e geográfico muito forte na historiografia que se propõe a discutir região até a década de 70 do século XX, ainda sobre fortes influências estruturalistas. Isto fica claro na análise de Siqueira ao tomar também como depoimentos do século XIX, jornais como "Diário de Pernambuco", instituições como o "Conselho Nacional de Estatística", o "IBGE", congressos e depoimentos de parlamentares, como o congresso do "Sinimbú" na cidade do Rio de Janeiro, ou então, o "congresso agrícola" do Recife, ambos de 1878, e etc. Tais fontes além de ampliar o campo de análise do historiador(a) para as diversas esferas do social, desconstróem, primeiramente a vinculação essencialista e em seguida a sua pretensão determinista, sobre o conceito de região. Tais fontes na minha leitura são fortes indícios das influências pós-estrurualistas usadas na metodologia de Jorge Siqueira.

"Este trabalho tematiza, pois, o estabelecimento de uma nova forma de dizer e ver o regional, que abre caminho para novas formas de sentir e de conhecer. Essas novas formas de ver e dizer estão relacionadas, portanto, com outras séries de práticas, desde as economias, as sociais, as políticas, até as artísticas, que não estabelecem entre si qualquer determinação, apenas se conectam, se afastam ou se aproximam, formando uma teia de práticas discursivas ou não-discursivas; relações de força e de sentido, que, seguindo Foucault chamaremos de dispositivo, para ressaltar seu caráter estratégico."(ALBURQUEQUE Jr, 1999, p. 24)

Durval Muniz estabelece com esta citação ao meu ver seu posicionamento teórico metodológico, também pós-estruturalista, assim com Jorge Siqueira em relação a análise do conceito de região como uma invenção. Através do uso do conceito de "dispositivo", Foucault, supera a sua fase genealógica e arqueológica muito presa ao conceito de episteme, que foi muito criticado como sendo um conceito estruturalista. Mais a episteme nunca é definida por Foucault como um termo para uma forma particular de conhecimento, mas como o conjunto das relações epistemológicas entre as ciências humanas. Em todo caso o conceito de dispositivo pode ser considerado como um demarcador que redimensiona uma nova forma de dizer e ver as práticas sociais, possibilitando também novas formas de sentir e conhecer tais práticas, em síntese, ele inaugura dentro das ciências sociais a concepção pós-estruturalista. A possibilidade de consciência e determinação de um saber sobre outro cai por terra, qualquer saber como o econômico, o político, ou então a ciência, nada mais são do que práticas discursivas e não um determinante, já que são saberes envolvidos em relações de força.

Nesta perspectiva se configura a obra "A Invenção do Nordeste e outras artes" de Durval Muniz, a própria região é integrante de relações de força que a esquadrinha, exclui e inclui falas, constrói e desconstróem, memórias, mitos e etc. Durval nesta análise epistemológica sobre a invenção do Nordeste, aproxima seu campo de estudo a saberes como a história, literatura geografia, sociologia, antropologia e a lingüística para compreender melhor o seu processo de construção em suas diversas formas de linguagem, pois.

"As diversas formas de linguagem, consideradas neste trabalho, como a literatura, o cinema, a musica, a pintura, o teatro, a produção acadêmica, o são como ações, práticas inseparáveis de uma instituição. Estas linguagens não apenas representam o real, mas instituem reais."(ALBURQUEQUE Jr, 1999, p. 23)

Para Durval Muniz a região é configurada por uma teia urdida de poderes, e será estendendo esta rede de poderes baseado na concepção histórico pós-estrutruralista que a analisa através de metáforas, conceitos e discursos, como o discurso da literatura por exemplo, que constroe paisagens e memórias que encarnam seus discursos como verdade, que a idéia de região sairá da sua proposta essencialista para ganhar significado de bricolagens, tramas e tessituras a serem criticadas e desconstruídas.

Pierre Bourdieu desloca o campo de análise sobre o conceito de região através de uma crítica epistemológica que ele faz, a quem a toma como objeto de estudo, "as ciências sociais". Para Bourdieu o lugar da autoridade que as ciências sociais ocupam projeta e instrumentaliza um fazer ver e um fazer crer da região como ela é em sua essência e isto lhe incomoda, pois, Bourdieu sofre as grandes influência do também sociólogo, Émile Durkheim, para quem o saber das ciências sociais são e devem ser problematizadas como "representação". Portanto, a região como espaço de representações nunca pode ser vista como lugar de objectividade, tanto pelos sujeitos que a constitui e muito menos porque quem a toma como objeto de estudo, as ciências sociais. Antes, a representação nesta perspectiva durkheimiana, remete ao conhecimento do reconhecimento do objeto, e não ao seu conhecimento objectivo

"A intenção de submeter os instrumentos de uso mais comum nas ciências sociais a uma crítica epistemológica alicerçada na história social da sua gênese e da sua utilização encontra no conceito de região uma justificação particular. Com efeito, àqueles que vissem neste projeto de tomar para objecto os instrumentos de construção do objecto, de fazer a história social das categorias de pensamento do mundo social, uma espécie de perverso da intenção cinentífica, poder-se-ia objectar que a certeza em nome da qual eles privilegiam o conhecimento da <<realidade>> em relação ao conhecimento dos instrumentos de conhecimento nunca é, indubitavelmente, tão pouco fundamentada como no caso de uma <<realidade>> que, sendo em primeiro lugar, representação, depende tão profundamente do conhecimento e do reconhecimento. (BOURDIEU, 1989, p. 107 – 108)

O peso desta citação representa pertinentemente, as influências metodológicas citadas acima e as críticas feitas pelo próprio Bourdieu, a tentativa de objectivação da ciência em relação à região e sua construção. Tais críticas de Bourdieu se configuram no contexto também das críticas de Foucault, outro grande teórico do século XX. Ambos tomam a ciência, cada um com o seu referencial metodológico, como um saber que sacralisa a heterogeneidade de um espaço como sendo lugar de objectividade. Mas existe um diferencial teórico profundo entre estes dois pensadores franceses que debatem na década de 80 do século XX. Foucault não acredita na ciência como saber fora do poder. Para Foucault, a ciência é poder desde seu apriori, não há uma possível consciência das ciências sociais para que as mesmas cheguem a conhecer a verdade, ou uma realidade qualquer. Sendo assim, Foucault rompe com a idéia e o conceito estruturalistas, que hoje custa tão caro às ciências sociais, o sujeito assim como a ciência não são metanarrativos, pelo contrário, são pulverizados de consciência e de apreensão de uma realidade possível. A Antropologia, Filosofia, História, Sociologia, Psicologia, Direito, Geografia, Lingüística e etc, fazem parte dos saberes que passam por releituras após estas observações Foucaultianas.

Percebemos que Bourdieu reler o marxismo, assim como faz críticas a ciência e o seu lugar de autoridade como vimos acima, mas ainda a toma como objecto de suposta tomada de consciência a ser alcançada como uma dialética presente nas "lutas de classificações", para se conhecer a verdade de seus próprios actos

"Ora, a ciência social, que é obrigada a classificar para conhecer, só tem alguma probalidade, não de resolver, mas de, pelo menos, pôr correctamente o problema das classificações sociais e de conhecer tudo o que, no seu objecto, é produto de actos de classificação se fizer entrar na sua pesquisa da verdade das classificações o conhecimento da verdade dos seus próprios actos de classificação." (BOURDIEU, 1989, p. 111)

Segundo Bourdieu, "o conhecimento da verdade do seus actos de classificação", como vimos na citação acima, na verdade trata-se de uma inflexão da ciência para si mesmo, quando ela fizer este deslocamento dos seus próprios actos de classificação, aí é que ela vai se libertar para uma consciência possível para Bourdieu. Percebamos que a uma visão estruturalista de continuidade possível no discurso de Bourdieu.

Influências metodológicas e posicionamentos a parte, na minha concepção, Pierre Bourdieu é inovador ao aproximar-se e propor debates com a geografia, economia, sociologia, história, lingüística e etc, vistas como práticas discursivas que configuram através de lutas de classificações, a sacralização do conceito de região (regere sacra) e a demarcação, (regere fines) dentro de um espaço de relação de poder. Portanto, a identidade regional não é natural, trata-se de uma construção mediada pelas lutas sociais, dentre elas ocupando um lugar privilegiado, a ciência, que em sua necessidade de objectividade e produção de verdade que se arrasta desde o método racionalista cartesiano, deixa de lado vários aspectos até o contexto de suas fortes críticas, como por exemplo, o próprio "poder simbólico" que possibilita um novo olhar sobre a região entendida como subjectiva e espaço de representação.

Os argumentos de Jorge Siqueira à sua análise e idéia de região se sustenta em perceber este espaço condicionado por discursos, tramas e tessituras de poder. No caso da região Norte, nomenclatura que divide o espaço brasileiro até a década de 30 do século XX, com o Sul, onde só em 1938, o Conselho Nacional de Estatística reconfigura o espaço nacional, em cinco regiões, dentre elas podemos encontrar a nomenclatura Nordeste. Podemos perceber com base no artigo de Siqueira o peso de discursos aprendidos dentro de uma historicização que vão montando o discurso regional através de uma fala regionalista. A junção de signos que compõe o conceito de região carrega antes uma linguagem de poder, os discursos da região Norte, na segunda metade do século XIX, constroem um "outro" imaginário, ora associados à centralização política e administrativa do estado nacional que suprimi as demandas de interesses locais e regionais, ora associado a ascensão do espaço regional do Sudeste, industrial e agro-exportador da economia cafeeira. E o mais interessante, tais prerrogativas de interpelar o regional perante o nacional são subsidiadas por uma elite agroçucareira e por oligarquias de cunhos mandonistas e locais.

" "Sim, meus senhores, o sanguinolento movimento revoltoso ou revolucionário(como o quiserem qualificar) de 1848, e a concepção do pleno(sic) direito de representação das minorias(hoje consagrado em nossas leis, imperfeitamente embora) brotaram pelo mesmo motivo, repito-o, e a um tempo aqui nesta mesma terra de 1817 e 1824, nesta terra que já desde o século décimo sétimo sabia heroicamente manter-se brasileira, até mesmo quando a coroa portuguesa havia disso perdido as esperanças"." ( SIQUEIRA, 2000, p. 8)

 

Esta citação que representa o discurso inaugural e oficial de abertura do congresso agrícola do Recife, de 1878, está associada ao discurso "identitário", um dos discursos alencados na problemática de Siqueira para se discutir o conceito de região. Percebamos como trata-se de uma trama que configura um "outro" imaginário identificado tanto como a centralização do poder nas mãos do Estado, como também a ascensão do poder econômico, político e administrativo do Sul. Debates muitos representados no contexto do discurso congressista citado acima. Mas o interessante é que estrategicamente tal discurso congressista volta no passado e vai até 1817 a 1824, para demarcar uma diferença perante este "outro" imaginário. Trata-se de uma trama que ajuda a configurar em meio a outras tramas este outro que se distingue da identidade regional nortista desde longa data, pois o discurso identitário, demarca a diferença, logo a identidade se legitima como o "eu" diferenciado do "outro". Ou seja, o Norte, desde de 1817 e 1824, heroicamente defende os interesses da terra brasileira, quando o "outro", segundo o discurso identitário já havia perdido as esperanças.

O discurso identitário comentado na citação acima, associa-se também a "interpelação" do regional para com o nacional, de "denúncia" e de "estratégia" das prerrogativas do contexto de 1878. Mas tais discursos como defende o próprio Siqueira são anacrônicos, uma vez que no contexto do fim do século XIX e início do século XX, as transformações sociais por qual o Brasil está passando, são reflexos dos interesses de novos atores sociais, como os viabilizados por uma moderna burguesia em ascensão, grandes industriais que visam acúmulo de capital e principalmente o espaço nacional, que entra em processo de redimensionamento e reconfiguração social política e administrativa. Logo o discursonacional atropela o regional.

A fabricação da identidade espacial pretendida a dar-se ser e ser reconhecida como discurso de região Nordeste, para Durval Muniz, data da primeira e segunda décadas do século XX, como vimos entendidas como práticas discursivas que constroem dentro de uma certa repetibilidade tal conceito. Estas práticas se alicerçam em agrupamentos conceituais que surgem de relações de poderes e que forjam idéias pasteurizadas de um espaço. Demarcam o acidental, determinam o indeterminado, homogeneízam o heterogêneo, fixam a fixidez e pretendem dar-se a parecerem-se como naturais, quando na verdade são históricos, como poderes e linguagens que agem na produção imagética e textual desta espacialização.

" Esse livro pretende levantar as condições históricas de possibilidade dos vários discursos e práticas que deram origem no recorte espacial Nordeste. Longe de considerar esta região como inscrita na natureza definida geograficamente ou regionalizada "pelo desenvolvimento do capitalismo, com a regionalização das relações de produção", que é outra forma de naturalização, ele busca pensar o Nordeste como uma identidade espacial, construída em um preciso momento histórico, final da primeira década deste século e na segunda década, como produto do entrecruzamento de práticas e discursos "regionalistas". Esta formulação, Nordeste, dar-se-á a partir do agrupamento conceitual de uma série de experiências, erigidas como caracterizadoras deste espaço e de uma identidade regional."( ALBUQUERQUE, 1999, p. 22)

Esta citação é demarcação de um ponto central da minha leitura dá excelente obra, " A invenção do Nordeste e outras artes", de Durval Muniz. Primeiro, porque ele trás a concepção do espaço chamada região, como vimos na citação acima ratificando o meu próprio comentário, como resultado de uma construção de experiências que agrupam, conceituam e configuram um dado espaço como regional. Segundo, ele demarca o recorte temporal de sua análise, as duas primeiras décadas do século XX, entendidas como momentos históricos precisos de tal construção.

Abrindo um parêntese em relação a uma discussão feita em sala de aula, sobre o recorte temporal preciso da construção da idéia de região Nordeste como um espaço de dizibilidade e vizibilidade. Entendo que uma definição para a construção do Nordeste entendida como resultado de "experiências históricas", merece uma análise um pouco mais aprofundada, pois o conceito de "experiência histórica" é muito abrangente, o que nos permite enveredarmos por outros argumentos e olhares que contribuem e enriquecem o debate sobre a precisão histórica da construção da idéia de região.

"A rigor, não existiu uma "invenção do Nordeste" nos anos 1920. O que existiu foi a instituição imaginária, em décadas anteriores, de uma porção do antigo Norte considerada seca, "flagelada', "sofrida", a qual naturalmente foi mudando de nomenclatura. Conforme será mostrado abaixo, o vocábulo Nordeste não surgiu de repente na década de 1920, conquanto remonta ao ano de 1909, tornando-se, a partir de então, sinônimo da referida porção nortista recortada do antigo Norte. Antes disso, no entanto, já era pública e notória a distinção entre esse último e a parte dele identificada como uma região marcada pela "miséria" e pelo "sofrida", embora ainda não existisse um vocábulo qual ratificasse e oficializasse a distinção."(ARANHA, 2006, p. 92)

Esta citação retirada da obra de Gervácio Batista Aranha, "trem imaginário na Paraíba e região: tramas político-econômicas (1880-1925)", é no mínimo intrigante e totalmente pertinente para enriquecer a discussão que gira em torno de uma delimitação temporal sobre a construção da região Nordeste.

Trata-se de uma discussão conceitual e teórica, Gervácio compreende o que Durvalchama de Nordeste, nas duas primeiras décadas do século XX, de uma "instituição imaginária" perceptível em suas análises desde 1870, através de buscas em arquivos como é o caso de falas de parlamentares por exemplo como a do Sr.Francisco de S. Meira de Sá. Proferido em 27 de outubro de 1909, e que foi publicado na revista do Instituto Histórico Geográfico Paraibano. Tal parlamentar ao defender concessões para a estrada de ferro Mossoró-são Francisco, entende uma parte do antigo Norte como flagelada, sofrida, ressecada e abandonada pelos poderes públicos. Sendo assim, em 1909, a nomenclatura Nordeste é uma representação daquele antigo Norte sofrido, que imaginariamente já se entendia como parte miserável desta região, e que não contava ainda com o vocábulo para confirmar tal distinção como dizível, mais que já era percebida no imaginário dos sujeitos que testemunharam neste contexto, logo tais testemunhos como o do senhor Francisco de Sá que chegam até nós representa muito bem esta instituição imaginária construída desde 1870, para Gervácio.

Para sintetizar essa discussão, trata-se de uma questão metodológica que influencia o olhar de cada autor para delimitar a construção de um momento preciso de se pensar o Nordeste. Gervácio parte do conceito de " representações imaginárias", de Jacques Le goff, que toma o real não como uma categoria de imitação, mas criteriosamente o "imaginário" é tomado como parte do vivido, não havendo separação entre palavras e coisas, portanto, o imaginário dos sujeitos desde 1870 é compreendido por Gervácio como representação de um nordeste imaginário. Já Durval, influenciado pelas propostas metodológicas foucaultianas, caracteriza o Nordeste como representação de uma invenção de práticas discursivas, que na década de 20, se apresentam como afirmadoras do conceito de Nordeste. Trata-se de uma visibilidade que afirma com autoridade, o que é Nordeste? até onde vai seus limites geográficos, culturais, étnicos, religiosos, lingüísticos, etc ?, as palavras para Durval estão distintas das coisas diferentemente de Gervácio que as vê como unidas. Concluindo a questão, as idéias de região defendidas e alencadas por Durval, devem passar por aproximações inter-relacionais de críticas aos saberes que a costuram, onde ao serem analisadas implodiram suas categorizações, hierarquizações, esteriotipações, estigmatizações, tipos e tipologias, que excluem e incluem discursos como naturais.

Na minha análise, Pierre Bourdieu usa como principal argumento para se pensar tanto a construção do regionalismo quanto nacionalismo, as "lutas simbólicas", pois é nelas onde se encontram alojados, agentes que agem no jogo de transformação, e conservação das relações de forças simbólicas e materiais, que constroem o discurso de regionalismo e nacionalismo. Parte dos grupos envolvidos nas "lutas simbólicas", ocupam lugares que lhes possibilita instrumentalisar e formular actos de dominação simbólica e "material". Para Bourdieu é desta dominação simbólica que surge o estigma, como representação de uma suposta afirmação de interesses dos agentes envolvidos nas lutas simbólicas, mas o estigma também é poder de barganha para quem é estigmatizado. É e a partir desta "apropriação" que Bourdieu lança mão da "revolução simbólica".

"Abolir o estigma realmente( e não magicamente, quer dizer, por uma simples inversão simbólica dos sinais de distinção que pode levar até uma redefinição dos limites no interior dos quais a legitimidade da identidade assim definida se acha garantida) implicaria que se destruíssem aos próprios fundamentos do jogo que, ao produzir o estigma, gera a procura de uma reabilitação baseada na auto-afirmação exclusiva que está na própria origem do estigma, e que se façam desaparecer os mecanismos por meio dos quais se exerce a dominação simbólica e, ao mesmo tempo, os fundamentos subjetivos e objectivos da reinvindicação da diferença por ela gerados."( BOURDIEU, 1989, p. 126)

Esta citação de Bourdieu retirada do livro " O Poder Simbólico", sintetiza de forma clara e objetiva a sua proposta de reler o marxismo para além de um determinismo economicista, ou então, de uma luta de classes e da idéia de apropriação dos meios de produção, para se fazer uma revolução. Diferentemente destes exemplos, Bourdieu defende o conceito de "revolução simbólica", que parte da própria construção do estigma, contra a "dominação simbólica", que terá como finalidade, não uma conquista ou reconquista de uma identidade por exemplo. Para Bourdieu tratar-se-á de uma "reapropriação colectiva" de poderes e saberes que tem poder de construir e avaliar a identidade, pois o estigma produz a revolta contra o próprio estigma, não trata-se de reconfigurar um outro estigma, pelo contrário. Primeiramente a revolução simbólica destrói o estigma e a própria dominação simbólica que o promove através do seu discurso objetivo, promovendo em seu lugar uma reivindicação das "diferenças" geradas pela própria apropriação colectiva de poderes.

Concluindo, Bourdieu na defesa de seus argumentos e análises teóricas, torna-se inovador ao diferenciar poder econômico e materialismo histórico, de poder simbólico, onde a partir de tal distinção, passa a defender a implosão da idéia de regionalismo assim como a do nacionalismo, que são entendidas para Bourdieu como construções de categorizações e subdivisões, que inviabilizam a idéia de "revolução simbólica", que para Bourdieu tem a capacidade de redistribuir os poderes em sua forma colectiva na esfera social.

Assim como problematizam, Antônio Jorge Siqueira e Durval Muniz, a idéia de região Nordeste como construção que torna-se possível através de práticas discursivas. Podemos dizer que as imagens de Nordeste problematizadas em suas análises, estão encarnadas nestas práticas discursivas que são apreendidas como janelas que tornam dizíveis e visíveis num processo histórico tanto a idéia de Nordeste como sua paisagem.

Sendo assim, para Durval Muniz, um arquivo de práticas discursivas num processo de construção de uma visibilidade para a região Nordeste, configuram um feixe de referentes discursivos que amarram a região Nordeste como espaço de imagens cristalizadas. Segundo Durval, esta construção é fundamental para que esta paisagem torne-se um discurso de credibilidade e coerência. E é fazendo a apreensão desta configuração em suas análises que Durval faz duras críticas a literatura, teatro, tele-novelas, poemas, músicas, assim como construções de mitos símbolos e etc. Pois para Durval, estas "práticas discursivas" são na verdade "arquivos imagéticos vivos" que corporificam, petrificam, homogeneízam e caricaturizam a região, através de seus lugares de autoridades e com uma certa repetibilidade que agem diretamente na região associada a formas paisagísticas específicas e irredutíveis de transformação.

"É sobre esta paisagem e seu processo de construção que versa este texto, na tentativa de desconstruí-la e reenvia-se à sua dispersão de origem, para desanuviar os horizontes, retirando esta pátina que parece cobri nossos olhares quando se trata de ver e dizer a região Nordeste, para, talvez, voltar ao zero da paisagem, permitindo que pensemos e vejamos outros possíveis Nordeste, outras e distintas paisagens regionais."( ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003, p. 3)

Esta citação sintetiza a proposta de Durval, fazer o caminho oposto ao processo de uma construção de discurso regionalístico e suas paisagens cristalizada. Onde, através de novos olhares, estes possibilitem um novo problemático e não sintético dizer e ver deste e de outros espaços. Para que o Sertão nordestino, por exemplo, não seja caricaturizado ironicamente tanto por veículos de comunicação, os mais variados possíveis, especialmente os do Sudeste e Sul brasileiro, que distorcem o imaginário de boa parte dos próprios nordestinos que intersubjetivisam em si como se fossem hospedeiros de uma doença, este imaginário, de um espaço denominado Sertão, infestado de esfomeados, magricelos, desdentados, analfabetos e desnutridos além de dividirem este espaço miserável com animais também agonizantes por conta da seca que racha o seu solo. Para concluir, poucas palavras já bastam, o Nordeste tem problemas como qualquer outra região, ninguém tem dúvidas disso, o que o próprio Durval questiona é a cristalização da idéia de um Nordeste, ou Sertão nordestino tomados a partir de uma concepção que o esteriotipiza e cria verdades sustentados através de paisagens fixas, onde na verdade elas não são significados de um espaço determinado.

Já Antônio Jorge Siqueira, trabalha a paisagem do Nordeste como parte de "Símbolos discursivos" e "significantes imaginários" mediados por uma estrutura de poderes. E a interessante á análise destes dois conceitos para se entender com mais precisão como Siqueira discuti as paisagens de Nordeste.A concepção de símbolo é o que representa a um dado objeto, e que remete a um outro, ou seja, é um referente de múltiplas significações. Significante imaginário é a própria significação de pensar o imaginário dos sujeitos perante um objeto qualquer que seja, daí que símbolos discursivos e significantes imaginários serem entendidos por Siqueira como conceitos de significações possíveis para se pensar a imagens do Nordeste. Pois, discursos como "identitário" ou o "denúncia" por exemplo, citados por Siqueira em seu artigo, apreendem a uma análise, os lugares de suas duas falas, que estão encarnados de símbolos e imaginários de seus contextos. Por exemplo, o recuo histórico do discurso inaugural do congresso agrícola do Recife de 1878, que vai até 1817 e 1824, para legitimar a identidade nordestina, ou então a pretensão de denúncia de grupos oligárquicos nordestinos, ao se referirem ao pode centralizador do Estado Nacional, as causas de revoltas como o " quebra quilos".

Tais discursos através de seus símbolos discursivos e significantes imaginários, revelam em si as imagens e paisagens de Nordeste, sejam estas imagens para demarcar a diferença de Nordeste como o eu, diferente do outro, o poder central, ou então ao narrarem

"Essas populações não têm confiança alguma em ninguém, nem mais esperança de melhora pelos meios conhecidos, pois que por esses meios marcharam elas de dia em dia no caminho das privações e das necessidades. Essas populações depravadas pela obstinada negligência do governo, privadas de todos os favores da civilização, não conhecem outros recursos, outros meios de ação, que não sejam estes movimentos desordenados, essas agitações violentas, própria de sua natureza inculta e bravia."( SIQUEIRA, 2000, p. 13)

Esta citação resume, pertinentemente a utilização dos conceitos de "símbolos discursivos" e "significantes imaginários" que apreendem as imagens de Nordeste através de seus discursos. O congressista, que profere este discurso citado acima, simboliza e torna significante as imagens de Nordeste, contidas no seu próprio discurso. E tanto o historiador Jorge Siqueira quanto o seu leitor, podem compreender melhor as tramas e tessituras que construíram paisagens associadas a região Nordeste.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA

  • SIQUEIRA, Antonio Jorge de. Nação e Região: os discursos fundadores. Ciclo de Conferências Brasil 500 anos realizado pela Fundação Nacional de Arte - FUNARTE - em sua quarta edição Nação e Região, no Rio de Janeiro, aos 11 de outubro de 2000. p. 1- 18.
  • ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. A Invenção do Nordeste e outras artes. 1. ed. São Paulo/Recife: Cortez/Massangana, 1999. v. 2000. 340 p.
  • BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Lisboa: Difel e Bertrand Brasil, 1989.

Autor: Luciano Agra


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