Considerações em Torno do Mastro de S. Carvalho



Considerações em torno do Mastro de S. Car'v'alho*

Pode-se supor que os fatos aqui narrados (possivelmente fosse melhor dizer 'ressaltados', 'mencionados') se dão em uma comunidade pré-cristã, em tempos imemoriais quase, em uma região qualquer dali daquelas terras que, por motivo apenas de banalíssima exemplificação estão sendo mencionadas, ficariam mais tarde conhecidas como as Gálias e/ou talvez a Bretanha, em atual território francês. É quase final do verão: clima ameno, colheitas feitas (finalizadas), os animais de cria se reproduzindo e prontos alguns para o abate. A fartura de tudo emoldurando um clima de alegria em todo o lugar. É época de se festejar a Fecundidade, a da terra e a do ventre de muitas mulheres, grávidas naquele período, ou que já haviam dado à luz e que já estavam à espera de outra 'fecundação', juntamente com outras, mais moças, e que engravidariam, logo então, e pela primeira vez. Ter filhos (muitos, às dezenas, talvez) significava braços fortes para o trabalho e para guerrear ou defender o povoamento de invasores/saqueadores; ter filhas, neste caso, para procriar, gerar os tais braços fortes, tão importantes e almejados.

Em homenagem à deusa da Fecundidade, rituais diversos em festejos que poderiam durar vários dias acabavam de acontecer. Esses festejos, vários séculos depois, porque pagãos, seriam combatidos intensa e sistematicamente pela Igreja Católica, que desejava extingui-los. Como não pôde eliminar aquelas práticas religiosas ditas "primitivistas", vistas como "Coisa do Diabo!", iniciou-se um contínuo e longo processo de assimilação cultural, de adaptações católicas que impuseram o superstrato teogônico cristão-católico sobre tais práticas. Daí surgirem, por isso, as festas juninas em homenagem a santos, mera superposição religiosa que não logrou total êxito em ocultar os vestígios dos rituais que exaltavam a Deusa da Fecundidade. Daí advém o sincretismo observado entre o sacro e o profano: o mastro e a romaria de S. Pedro na Baía-do-Sol e no Areão (na antiga Colônia de Pescadores), por exemplo. A romaria (ipsis litteris ― ao pé da letra ― peregrinação rumo à cidade sagrada (?!) de Roma) logicamente sabe-se de sua óbvia origem. Mas, e quanto ao mastro?

Aqui precisamos retornar aos festejos em honra à Deusa da Fecundidade. Como esses festejos 'varavam' do dia para a noite, diversas fogueiras eram armadas e incendiadas ao redor do campo onde iriam se realizar tais homenagens. Comidas e bebidas fartas é o que não poderia faltar. Muito provavelmente o ser humano ali daquele período e daquele lugar já descobrira o processo de fermentação que originaria bebidas alcoólicas, além das feitas de ervas alucinógenas. Muito provavelmente era lua cheia. Consideremos fosse possível viajar no tempo e gravar em cópia audiovisual tudo o que aconteceria num ritual deste tipo e depois reproduzíssemos tudo em um telão com toda a fidedignidade que um documentário requer, o que exatamente veríamos ali?

Com certeza, haveria um altar com comida e bebida fartas (como oferendas), sob o abrigo da sombra de uma grande árvore. Talvez até mesmo seu largo tronco e algumas raízes expostas fossem usados como altar. E quanto à imagem da deusa, como seria sua aparência? Há uma enorme riqueza de vestígios arqueológicos que nos mostram uma figura feminina, às vezes desprovida de cabeça e membros inferiores, ostentando uma óbvia opulência física: os seios fartos, o ventre, a região glútea, tudo propositadamente exagerado, remetem-nos à idéia de fartura, tanto de alimentos quanto fartura na própria prole das mulheres dali daquele clã.

Muitas fogueiras podem ser vistas, que serão incendiadas mais tarde, com múltipla funcionalidade, certamente: aquecer, iluminar noturnamente o local, assar alimentos, espantar maus espíritos, intermediar rituais ao seu redor. Como se viu, muitas funções. Há euforia em tudo ali. Pessoas comendo, bebendo, rindo, divertindo-se. Sempre falando alto. Crianças participando de brincadeiras várias. Por todo lugar podem-se ver frutas penduradas, verdes e maduras. Flores, muitas e multicoloridas, alegrando a vista.

Só falta agora o claquete para anunciar a entrada do mastro. E o que falta para isso? É que o mastro precisa antes ser adornado com frutas, flores, postas de carne assada, recipientes com bebidas, etc., para, só depois de toda essa preparação, ser conduzido ao local onde ficará erigido (daqui a pouco se saberá por que talvez fosse melhor dizer 'ficará ereto'). Mas, enquanto se filma tudo e este texto é escrito, eis que, surpreendentemente, mais ao alto da tela, à direita, surge um aglomerado multiforme de gente e mais gente ao redor de um objeto longo, largo, pesado e grosso, uma tora de uma imensa árvore, completamente adornada com frutas nela amarradas com cipós, carregadas por homens e mulheres do clã. O homem da câmera quase perde esta extasiante entrada, e que já é quase o ensaio de um gran finale, contudo se recupera eregistra o evento, para nossa sorte, e deste texto. E para a fidedignidade das informações aqui prestadas.

Relevante é o fato de que o 'mastro' é caule reto, sem curvas e sem rebarbas de galhos aparados, isto é, é liso, lisinho. Por que será? Já-já saberemos. Quase tão relevante é ressaltar que as pessoas conduzindo o 'mastro' estão inebriadas de fervoroso sentido ritualístico, imbuídas de tocante sentido místico e quase que narcotizadas pela ingestão de certos líquidos fermentados. A multidão ziguezagueia por toda a área no traslado do mastro, cantando e dançando euforicamente, até que pára num local próximo ao altar, previamente escolhido, onde já fora escavado um buraco para a fixação do mastro, que começa a ser levantado. Uma, duas tentativas falhas. Na terceira, já está ereto o mastro, resguardado, diria até, preso, estreitado confortavelmente pela terra, a mesma terra fecunda que gerou tanta fartura, e que agora acomoda tão macia e seguramente o imenso caule. Todos festejam, gritam de alegria, bebem e dançam. É só o começo de um festejo que pode durar até o outro dia.

Eis a simbologia de tudo isso: o mastro nada mais é que um símbolo fálico ― penetra a Mãe-Terra, para fecundá-la. Temos aqui o elemento masculino e o feminino juntos (a deusa em seu singelo altar). Nasce agora um questionamento na mente de nosso moço da câmera: "Se as pessoas lá no Mosqueiro soubessem o que estão carregando (um objeto que representa um pênis enrijecido), ainda teriam assim tanta disposição para carregá-lo?" Uma tentativa de resposta: "Crê-se que sim, pois a simbologia que ficou é algo um tanto assim fossilizada. Por outro lado, supõe-se que algumas pessoas deixariam de conduzir o mastro pela mesma razão que outras se sentiriam motivadas para tal, e agora com euforia redobrada até. Não é mesmo?"

É bem possível que a deusa inspirasse nas pessoas ali um desfecho um tanto orgíaco, bacanalístico mesmo, segundo o olhar descontextualizado de alguém não-sabedor do que estaria se passando por lá. No entanto, um olhar analítico nos mostra que a tal 'orgia' é justificada por conta do objetivo de procriação: os braços fortes já mencionados e as novas matrizes para gerá-los. Alguma libido acima das expectativas, alguma lubricidade além da conta é bem provável que fosse despertada, mas é fato ocasional. É certo que o conhecimento ali sobre como nascem os seres humanos era bem parco, porém já se sabia que estava relacionado ao ato sexual, por isso a multiplicidade das relações e dos parceiros.

O Mastro de S. Cara... da Praia do Bispo (que tem, no mínimo, 16 anos) remonta a essa cerimônia ancestral, levando em conta somente a parte ritualística considerada profana. A parte religiosa fica para pessoas de fervor religioso mais elevado e tradicional. Ali se recusa, portanto, o caráter sincrético do ritual, ficando tão-somente para os festejos do 1º de Julho a idéia da união do masculino e do feminino simbolizada pelo Fálico Mastro que penetra a Deusa e Mãe-Terra, para a fecundação desta. Tem-se consciência disso. É-se convicto disso. Então, quem quiser carregar o mastro, esteja convidado desde já. Que venha, divirta-se à vontade. Todos sempre serão muito bem-vindos, contanto que demonstrem o devido e circunspecto respeito pelo SANTO. Do contrário, a dimensão da heresia poderá ser proporcional ao TAMANHO do castigo ao qual o incrédulo será submetido (ou será... submetido?).
*O pejo impede-nos de usar a palavra sem o "v", destacado. Corresponde ao Deus grego Príapos, o deus de imenso falo, protetor de pomares, que usa o falo para castigar ladrões de frutas, por exemplo.


Autor: Alcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues


Artigos Relacionados


Dança Dos Mascarados: Cultura E Tradição Poconeana

O Chão

Pasma Imaginação

Amor NÃo DÁ Em Árvore

O Ciclo Do Nitrogênio E A Camada De Ozônio

Raça Barbet

As Pontuais Mudanças Trazidas Pela Lei 11.689/08 = Júri