Marta Do Sinal



Terça-feira, 8:30 da manhã. Cidade grande, agitada, nervosa... cruzamento de uma das principais avenidas. Como sempre, o trânsito estava terrível, pessoas se aglomeravam dos dois lados da pista, esperando a chance de cruzar a via correndo, antes que novamente o avanço dos carros impedisse o seu progresso. Marta estava entre elas. Mas, ao mesmo tempo, estava sozinha. Havia tempos que vivia em um mundo particular, alheia a maioria das coisas que aconteciam a sua volta. Ou pelo menos, aquelas que não interagiam diretamente com ela. Neste dia em especial, sentia que alguma coisa diferente iria acontecer. Acordou com a sensação de que deveria estar ali, naquele local, mais ou menos naquele horário, esperando pelo sinal. E ela foi. Esperou pelo sinal, que abriu, fechou, tornou a abrir e a fechar, e assim, sucessivamente, tantas vezes que já tinha perdido a conta. Estava parada, como que congelada na beira da calçada, assistindo a um filme mental com todos os principais momentos de sua vida. As lembranças boas sucediam as lembranças ruins, e se sobrepunham a elas, todas, uma a uma, como que comprovando e atestando que nada pode danificar o equilíbrio, a serenidade e mesmo a felicidade de quem vive com fé. Ou, com confiança em sí mesmo e em algo maior, como preferir. Todas as más lembranças eram sobrepostas... menos uma. A mais triste de todas, aquela incompreensível e praticamente inaceitável, que lhe privou os sentidos de tudo o que mais amava.

Para as pessoas ao seu redor, aquela mulher de meia idade, parada como estátua a margem da rua, já não causava estranheza nenhuma. Estavam acostumadas a vê-la naquela local, dia após dia, durante os últimos dois anos, como se cumprisse um ritual... ou um castigo, dependendo da percepção de quem observa. Moradora de um dos melhores condomínios da região, Marta já foi uma mulher feliz, equilibrada, de bem com a vida e com todos. Aparentemente, não havia situação, por mais ruim que pudesse parecer que lhe tirasse a serenidade, a leveza com que encarava o dia a dia e a vida, em todos os seus aspectos. Agora, passados dois anos, o que sobrou era apenas uma sombra, um espectro transparente da mulher enérgica, alegre e feliz que todos conheciam. Vinha todos os dias, com chuva ou com sol, com frio ou calor, no mesmo horário, e se colocava a beira da calçada, próxima da esquina, como que esperando o sinal para atravessar, mas não saia do lugar. Ficava parada, inerte, como parte dos objetos da rua, até as 12hs aproximadamente, ou até que alguém da família ou algum amigo passasse pelo local, e a levasse pelo braço novamente para casa. Por esse comportamento, aos poucos foi ficando conhecida como Marta do Sinal.

Marta esperava o sinal. E continuava esperando, dia após dia. Já havia desistido de tentar explicar ou justificar a qualquer pessoa o motivo de sua atitude aparentemente tão estranha. Em seu íntimo, nunca desistiu, nunca perdeu a serenidade, e nunca deixou de acreditar que estava certa, mesmo que por fora fosse apenas uma casca quase sem vida.

De repente, algo diferente aconteceu. Uma brisa suave começou a soprar-lhe o rosto, refrescante, perfumada até, aliviando o calor escaldante que fazia no dia e parecia também brotar do asfalto. Marta sentiu o coração se agitar. Sabia que alguma coisa diferente estava acontecendo. A brisa aumentou de intensidade, tornando-se um vento fresco e bom, que lhe agitava os cabelos desgrenhados. Nesse momento, duas novas sensações lhe encheram a alma de alegria e nova esperança, de que realmente estava certa em seus atos aparentemente tresloucados. Primeiro, o leve perfume de erva doce lhe invadiu os sentidos e as lembranças, trazendo a sua mente a imagem e todas as sensações de quando banhava seu pequeno filho, Tiago, e entre brincadeiras e muito carinho, lhe lavava os cabelos finos e delicados com um delicioso shampoo, que o menino adorava, e cujo perfume lhe invadia agora todos os poros do corpo. A sensação de estar novamente naqueles dias era tão forte, que sentiu ao mesmo tempo grande alegria, e grande tristeza, pela saudade que nunca lhe abandonava, e era a sua cruel companheira nos últimos dois anos.

A segunda sensação foi a de um toque, em sua mão esquerda, de uma pequena e delicada mãozinha, a procurar seu lugar entre os dedos amorosos da mãe. Os mesmos dedos, que certo dia fraquejaram e se abriram, deixando escapar de sua segurança o pequeno Tiago, que correndo e sorrindo, brincando de fugir da mãe, lançou-se ao meio da avenida. O sinal estava abrindo. Marta estava parada, conversando com a irmã. Tiago, estava indo embora... Apagou-se seu sorriso luminoso, e junto com ele, apagou-se também a vida de Marta.

Agora, sentindo o perfume no ar e o toque da pequena mão, não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Mesmo tendo esperado e acreditado que era possível e era verdade todos esses anos. Ele falou que seria assim. Ele disse que voltaria. Ele prometeu que reuniria entes queridos. Ele prometeu que traria novamente vida a carne morta. E Ele estava cumprindo. Marta olhou para sua mão, com o rosto lavado de lágrimas, e viu sorridente e feliz, como naquela dia, com a mesma roupa, com os mesmos sapatos novos, seu pequeno Tiago, novamente com ela. Uma luz suave envolveu os dois, mãe e filho, e de repente, desapareceram, como se nunca estivessem estado ali. Ao mesmo tempo, em várias cidades do mundo, grandes, pequenas, vilas, povoados, zona urbana e rural, cenas semelhantes se repetiam. Histórias de vidas anônimas eram consertadas, pessoas de fé eram recompensadas. Havia chegado, o Dia do Senhor.

Autor: Adelar Duarte


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