A Gramatização: Uma Revolução Tecnológica



O nascimento das metalinguagens

Pesquisas sobre os conhecimentos lingüísticos, feitas ao longo da história, apontam para três categorias: as que visam apenas documentar, as que são homogêneas à prática cognitiva e as que se voltam para o passado a fim de legitimar uma prática contemporânea. Todo conhecimento é uma realidade histórica, já que é limitado a um determinado espaço temporal. Crê-se, de forma errônea, que o saber destrói seu passado, mas na verdade ele o organiza, o idealiza e o antecipa sem futuro. Não há saber sem passado, sem memória e sem projeto.
Muitos historiadores lingüísticos produziram obras importantes ao longo dos anos, todos eles defendem a idéia de que há um certo preconceito em se querer fazer a história da lingüística concebida como uma ciência, ou seja, como uma forma de saber cuja organização é estável. É notório, no entanto, como a ciência da linguagem evoluiu nos últimos anos. Assim, fazer a história da ciência só pode corresponder a duas estratégias: admitir que uma ciência é só a totalidade dos momentos de seu desenvolvimento e procurar, no passado, os elementos que se enquadram nas preocupações definidas por um ponto de vista datado.
Para fazer a história de uma ciência é necessário ter uma visão definida da natureza de seu objeto, no entanto um historiador não deve ter essa visão, já que ele trabalha a longo prazo e em diferentes civilizações. A linguagem humana, tal como se realizou na diversidade das línguas, e os saberes que se constituíram a seu respeito são os objetos de estudo deste trabalho.
Todo saber é um produto histórico, pois resulta de uma interação entre as tradições e o contexto em que está inserido. Por isso, saberes situados diferentemente no tempo e no espaço não devem ser organizados do mesmo modo. Esse posicionamento deixa claro que a ciência da linguagem deve ser estudada dentro de um contexto histórico, pois é inerente a ele.
Graças à riqueza do historicismo podemos estudar certos fenômenos lingüísticos através de analogias, pois elas explicam que certos elementos históricos parecem recorrentes a um determinado termo. Por exemplo, se quisermos classificar os sons de uma dada língua, a lógica determina que os apresentemos em função de suas diferenças mínimas com outras línguas estudadas.
O valor de um saber, ou seja, seu grau de adequação a um fim dado, tem a causa no historicismo. Esse preceito nega o chamado “princípio de simetria”, segundo o qual a produção de conhecimento provém das mesmas causas, variando seu valor, que já tem a causa em sua história. O saber lingüístico é múltiplo e se inicia na consciência do falante. Daí ser chamado de epilingüístico, pois é inconsciente, ou seja, não sabemos o que sabemos. Já o saber metalingüístico é constituído, representado e manipulado com a ajuda de uma metalinguagem. Esse saber metalingüístico pode ser de dois tipos: de natureza especulativa, situado no abstracionismo; e de natureza prática, situado nos domínios da enunciação, das línguas e da escrita. Os domínios dão lugar às técnicas práticas codificadas que permitem obter um resultado desejado. Estudos lingüísticos no Ocidente determinaram dois tipos de saberes: a lógica, construído sob o domínio da enunciação; e a gramática, construído sob o domínio das línguas.
Dessa forma, deslocam-se os saberes lingüísticos em direção a um tipo de saber especulativo. Este, em matéria de linguagem, nunca foi suficientemente dominante para que se pudesse pensar sua prática, sob o modo da aplicação, como é o caso das ciências naturais. Por isso, um saber lingüístico especulativo pode ser de natureza empírica. Para a história das ciências da linguagem, o surgimento da escrita é fundamental. Qualquer que seja a cultura, encontramos elementos que permitem a passagem do epilingüístico para o metalingüístico, no aparecimento de palavras, nas práticas de linguagem e nas especulações sobre a sua origem.
As palavras são, de fato, coisas entre coisas. As palavras fazem coisas graças à sua estrutura material. E quando uma linguagem é complexa, não é porque se destaca a ordem simbólica do real, mas porque o real é inteiramente simbólico. O saber metalingüístico é marcado pela transformação do saber epilingüístico. Assim, designa-se a gramática como parte essencial do saber lingüístico. O processo de aparecimento da escrita é de objetivação da linguagem, de representação metalingüística e sem equivalência anterior. A escrita desempenha um papel fundamental na origem das tradições lingüísticas, pois é um processo histórico complexo e não por ser um saber lingüístico novo.
Assim, não é possível se constituir, ao mesmo tempo, um sistema de escrita e um texto que teoriza esse sistema. Todas as tradições se interessam pela adequação do sistema escrito ao oral, supondo já resolvida a questão de constituir uma representação da linguagem da mesma forma que se elabora um código gráfico dele. O conhecimento fonético das línguas nas tradições orais nos permite compreender como um indivíduo pode ter conseguido construir um alfabeto. Se a escrita é a condição de possibilidade do saber lingüístico, é impossível que seu aparecimento seja a verdadeira origem desse saber.
Quando se fala de origem, não se trata de um acontecimento, mas de um processo delimitado pelo tempo. A origem de uma tradição pode ser “espontânea”, ou resultar de uma “transferência” tecnológica. Há poucos casos de aparecimento espontâneo: as tradições babilônicas e egípcias, que se mantiveram embrionárias; e as tradições hindu, chinesa e grega, que se realizaram a longo prazo, sendo a grega, fonte de toda a tradição ocidental.
A transferência tecnológica supõe um bom conhecimento da língua-fonte e de sua cultura. No início do séc. XX, considerava-se que um processo de dominação e de transferência ocidental em direção a todas as outras tradições tinha acabado, isso resultou em uma homogeneização relativa dos grandes traços especulativos do saber lingüístico.
Considerando, então, a escrita, sabemos que ela produz textos, por isso é evidente que supõe normas. Mas ela não parece produzir espontaneamente uma reflexão sobre a natureza da linguagem, até mesmo um saber codificado dos processos de linguagem a partir de suas técnicas. Quanto ao surgimento da escrita, o que aparece em primeiro lugar são as listas de palavras ou de caracteres. Esta última, de origem chinesa, prende-se às dificuldades de ler textos antigos. O desenvolvimento do budismo leva a transliterar textos sânscritos, já entre os babilônios também encontramos listas de palavras. Mas o que faz deslanchar verdadeiramente a reflexão lingüística é a alteridade, considerando o ponto de vista da escrita.
Nessas tradições, o florescimento do saber lingüístico tem sua origem no fato de que a escrita tem como objetivo a alteridade e a coloca diante do sujeito como um problema a resolver. Essa alteridade pode provir da antiguidade de um texto canônico ou de uma mudança de estatuto do texto escrito. Na civilização hindu antiga, a escrita não tem um estatuto privilegiado, é utilizada para contas e atos administrativos. A razão mais profunda que faz da escrita a condição de possibilidade do saber lingüístico é o surgimento de regras dentro de algumas tradições, enquanto que o estatuto da escrita nas outras tradições deriva do fato de que os textos foram a causa eficiente do aparecimento do saber.
Nota-se que, inicialmente, é preciso nomear os sons através de um sistema de notação fornecido pela escrita, em seguida eles são classificados em função de certas propriedades e ordenadas no interior das classes, que são nomeadas com a ajuda desse último elemento. Não se pode confundir o saber metalingüístico com o saber epilingüístico, nem a gramática como representação com a gramática operando na produção da linguagem. No que diz respeito à gramática como representação, é certo que ela não poderia estar ao lado do oral, se separássemos este do escrito.
Jamais se observou uma tradição lingüística espontânea nascer a partir do “domínio das línguas”. A necessidade de comunicar para trocas comerciais e políticas não provocou nem uma especulação que ultrapasse as generalidades sobre a diversidade lingüística, nem a preservação de técnicas codificadas, como os manuais de tradução. O bilingüismo desempenha um importante papel no caso da transferência cultural maciça, como por exemplo, do grego para o latim ou do chinês para o japonês, entre outras, ou na permanência das línguas mortas.
O primeiro aparecimento conhecido dos paradigmas sistemáticos e de uma terminologia gramatical aconteceu no início do segundo milênio. Por isso, a primeira análise gramatical não nasceu da necessidade de falar de uma língua qualquer, mas da necessidade de compreender um texto. Atualmente, a gramática é apenas uma técnica escolar destinada às crianças que dominam mal sua língua ou que pretendem aprender uma língua estrangeira. Isso ocorre devido ao desenvolvimento do sistema escolar e da própria gramática.
Antigamente, em tempos bem remotos, não se tinha a idéia de fazer uma gramática apenas para aprender a falar. Aprendemos a falar espontaneamente, ou seja, falando. Mas uma coisa é certa: se existe um sistema de escrita, para utilizá-lo é necessário aprendê-lo de modo especial. Por isso, a gramática é uma das formas de saber lingüístico mais trabalhadas. E um saber gramatical só pode ter nascido de uma prática textual na base de uma prática da escrita.
De fato, a formulação de regras nasce espontaneamente de um domínio de enunciação em uma disciplina sob a forma da lógica e da retórica. A primeira, nas Índias e na China, foi uma disciplina extremamente refinada; a última, depende do estatuto da palavra e de seu papel social. Desde Platão e Aristóteles percebe-se a distinção entre ónoma/rhêma, que corresponde ao mesmo tempo à oposição verbo-nominal e à oposição sujeito/predicado. A gramática só nasce mais tarde, na Escola de Alexandria, definida como “o conhecimento empírico levado o mais longe possível e que se lê nos poetas e nos prosadores”. A força da gramática estava no fato de que ela adapta a teoria das partes do discurso à gramática natural.
Para que a decomposição do enunciado seja de fato um acontecimento gramatical é preciso que reencontre a morfologia como tradição ocidental, ou que se ligue à morfossintaxe como tradição sânscrita. Por outro lado, a tradição chinesa não conheceu o nascimento espontâneo da gramática, mas conheceu uma reflexão sobre os tipos de unidades, em função de sua significação e de sua adequação a certas finalidades. Houve, aí algumas especulações sobre a relação da linguagem com o real. A chamada “Escola dos Nomes”, da tradição chinesa, distinguia o nome e a atualidade, sendo que esta é concebida como aquilo que se fala e o nome como aquilo que serve para falar dele, o que pode ser comparado à tradição grega do ónoma/rhêma, visto acima. Assim, os nomes são divididos em três partes: os gerais, que servem para todas as coisas; os classificadores, que são os nomes comuns; e os nomes próprios.
O chinês não tem morfologia, contrário ao japonês, que tem sufixos e conjugações. Ainda que a tradição lingüística resulte do chinês, a análise morfológica já estava presente na adaptação de seus dois tipos de escrita: o kanji, ideograma que se preocupa com o valor lexical; e o hiragana, que serve para anotar as desinências gramaticais.
O desenvolvimento dos saberes lingüísticos se dá de forma extremamente complexa. Suas causas são a administração dos grandes Estados, a literalização dos idiomas e sua relação com a identidade nacional, a expansão colonial, o proselitismo religioso, as viagens, o comércio, os contatos entre línguas e o desenvolvimento dos conhecimentos complexos, como a medicina, a anatomia e a psicologia. Antes do séc. XIX europeu e do desenvolvimento da fonética não conhecemos nenhuma inovação tecnológica que tenha agido sobre o conhecimento da linguagem.
O aparecimento da imprensa e o desenvolvimento do capitalismo mercantil foram decisivos para a gramatização. Uma gramática pode ter a finalidade de se aprender uma língua estrangeira. Assim, os contatos entre as línguas se tornaram elementos determinantes dos saberes lingüísticos e as gramáticas se tornaram de suma importância no conhecimento das línguas. Desse saber multilíngüe nasceram tanto a gramática geral quanto a comparada. A primeira é homogênea, já a segunda surgiu para determinar as regularidades inerentes à sua natureza. Em nenhuma cultura o domínio das línguas chegou a esse saber desinteressado e abstrato, que é a gramática comparada, saber tão perseguido por profissionais do séc. XIX.
O saber lingüístico abstrato vai se definir em uma relação de delimitação e de oposição à lógica e à filosofia. No caso da primeira, que se preocupa em passar de um enunciado verdadeiro para outro enunciado verdadeiro, a questão parece resolvida, embora alguns lingüistas inventaram o “logicismo”, que consiste em importar da lógica para a lingüística. Já a segunda se preocupa com as especulações míticas, sendo que seu domínio tradicional é o das relações da linguagem com o pensamento, com o verdadeiro e com o real. Sendo assim, uma lingüística autônoma pode se dar a positividade de um objeto específico: as línguas nelas mesmas e por elas mesmas. 

O fato da gramatização

Num período que se estende do século V ao século XIX vamos ver o desenrolar de um processo único em seu gênero: a “gramatização massiva” a partir de uma só tradição lingüística, a greco-latina. Essa gramática constitui a segunda revolução técnico-lingüística. A primeira foi o surgimento da escrita. É às ciências da linguagem que devemos a primeira revolução científica do mundo moderno. Essa revolução vai criar uma rede de conhecimentos lingüísticos centrada na Europa. O novo modelo de cientificidade passará a ser dominante, de tal modo que se pensará em incluir nele as ciências humanas, mas sem a segunda revolução técnico-lingüística, as ciências naturais não teria sido possíveis nem em sua origem, nem em suas conseqüências sociais.
Nesse mesmo período, acontecerão outras transformações na história das ciências da linguagem. A gramática se torna, simultaneamente, uma técnica pedagógica de aprendizagem das línguas e um meio de descrevê-las. Surge, então, o dicionário monolíngüe como conhecemos até hoje. O conjunto dessas transformações permanece ligado à gramatização das línguas do mundo, que persiste como fenômeno central.
As características das ciências da linguagem são explicadas pelo fato de que a análise lingüística tem por objeto a diversidade empírica das linguagens. Essas disciplinas sofrem uma virada decisiva a partir do Renascimento, formando, assim, o eixo da segunda revolução técnico-lingüística. A partir do final do séc. XV, algumas línguas, entre elas o italiano, o francês, o espanhol, o português e o inglês, vão dominar a história da Europa. Mais tarde, no início do séc. XIX, outras línguas se fortificarão como o húngaro e o polonês. Desta forma, pode-se notar que a gramatização das línguas européias é contemporânea à de outros continentes, em especial das línguas ameríndias. Houve um crescimento considerado do patrimônio espanhol a partir do séc. XVI.
Nessa época, contava-se com 33 línguas. No séc. XVII, perto de 96 e no final do séc. XVIII, em torno de 158 línguas. Isso é o que podemos entender como “processo massivo de gramatização”, a partir do Renascimento. Já a gramatização do inglês não foi tão precoce. Os ingleses se interessaram pelos elementos gramaticais do irlandês por razões de proselitismo religioso e também por impulsos pelo estudo de suas próprias tradições.
Por outro lado, os franceses retomarão a gramatização do provençal. Utilizando as antigas gramáticas, eles redescobrirão a oposição entre o “caso regime” e o “caso sujeito”. A gramatização massiva das línguas aconteceu a partir da Europa e tomou uma amplitude significativa numa época bem tardia. Outras civilizações, como a indiana, a chinesa e a greco-latina, tiveram meios mais práticos e teóricos para fazê-lo, associados aos contatos multilingüísticos, embora estes não sejam suficientes para determiná-los.
O caso mais surpreendente é dos árabes, que possuíam uma tradição de análise gramatical autônoma, além de terem conjuntamente a herança científica greco-latina e uma expansão semelhante à expansão religiosa do cristianismo. No entanto, eles se interessaram menos pela descrição de outras culturas e línguas. Quanto ao latim, há uma situação histórica bastante particular: de um lado, as invasões do Império Romano no Ocidente provocaram o fim do papel vernáculo dessa língua e o surgimento das línguas neolatinas; e de outro, pudemos ver a conservação desse idioma como língua de administração e de cultura intelectual e religiosa. Ou seja, observamos ao mesmo tempo um fenômeno de dispersão e de fragmentação e a persistência de um potente fatos de unificação.
A gramática latina tornou-se uma técnica de aprendizagem da língua por dois motivos fundamentais: serviu como acesso à cultura escrita, já que os latinos sabiam sua língua; e serviu também como uma segunda língua para os europeus do séc. IX. Este último motivo possibilitou que a gramática de uma língua já gramaticalizada fosse empregada para fins pedagógico-lingüísticos, tornando, assim, a gramática uma técnica geral de aprendizagem.
O latim constitui um fator de unificação teórica inigualável na história das ciências da linguagem. Ele explica a homogeneidade dessas disciplinas, o que se pode considerar uma metalinguagem, já que temos um caso de gramática latina redigida em latim. O mesmo acontece se a metalinguagem de um vernáculo qualquer servir para redigir gramáticas em outro vernáculo, pois há uma certa equivalência entre as gramáticas das diferentes línguas redigidas em qualquer vernáculo em uso.
De língua em língua, o processo de gramatização é transitivo e reversível. É assim que as gramáticas podem ser simples traduções umas das outras, ou terem como ponto de partida o motivo de tornar acessível a seus locutores. A gramatização de um vernáculo europeu pode servir de partida para uma outra língua e lhe transmitir sua “latinidade”. Por outro lado, o árabe e o hebraico são casos particulares, na medida em que dispõem de uma gramatização autóctone, ou seja, original e muito diferente da latina.
Já o latim, cuja gramática serve de estudo para todos os cursos escolares, terá sua declinação utilizada por todas as línguas gramaticalizadas durante o Renascimento. Por isso, sem a tradição gramatical latina, não haveria a Lingüística, em seu amplo sentido: a forma abstrata de sua formação discursiva de caráter científico e sua aplicação a objetos empíricos.
A maior parte das línguas européias de grande porte são atestadas sob a forma escrita desde o séc. XIX, já que a Igreja recomendava pregar para o povo na língua local, na mesma época em que o latim se tornara um instrumento pedagógico. Já durante a Idade Média, houve uma diversidade dialetal e lingüística bastante significativa, pois existiu um equilíbrio entre o latim, língua sofisticada do saber letrado, do poder e da religião, e vernáculos que se aprendem na vida prática.
Nessa época, a falta da gramatização desses vernáculos se deu devido à falta de interesse. A primeira causa da gramatização foi a necessidade de aprendizagem de uma língua estrangeira. Essa necessidade de deveu, entre outros fatores, ao acesso a textos sagrados e a uma língua de cultura, às relações comerciais e políticas, às viagens, à implantação de uma doutrina religiosa e à colonização. A segunda causa da gramatização deve-se à política de uma língua dada, reduzida a dois interesses: organizar e regular uma língua literária e desenvolver uma expansão lingüística interna e externamente.
As primeiras gramáticas européias surgiram com a finalidade do fazer poético. Em 1494, aparece a primeira gramática castelhana, simultânea aos acontecimentos decisivos para a história da Espanha, como a viagem de Colombo e o conseqüente início da construção do império colonial espanhol. Essa gramática tinha três finalidades: fixar a língua, facilitar a aprendizagem do latim e permitir aos estrangeiros aprenderem o castelhano. Fica clara, assim, a relação “nação-língua”, ou seja, o uso de uma língua oficial está condicionado à condição de cidadão.
Temos, então, o chamado “movimento de gramatização”, que se deu, em primeiro lugar, por questões literárias e para as discussões teóricas. Basta observar que o aparecimento dos tratados de lógica acompanham a gramatização. Os tratados de retórica seguem o mesmo caminho, pois também precedem a redação de uma gramática.
Voltando ao latim, ele permanecerá ainda por vários séculos como língua privilegiada da comunicação científica, embora surja uma política lingüística realizada pelo absolutismo centralizador na França e na Espanha que corresponda às atividades intelectuais das novas elites e às atividades espirituais, notadamente marcada pela Reforma Protestante.
Essa entrada dos vernáculos coloca em perspectiva três elementos fundamentais: a renovação da gramática latina, a invenção da imprensa e as grandes descobertas marítimas. Esses vernáculos recusaram a gramática latina medieval, pois era uma língua técnica, artificial e de comunicação intelectual influenciada por suas próprias estruturas vernáculas. O Humanismo, que nasce na Itália no séc. XIV, vai tentar restaurar o latim clássico, retomando os textos antigos, renascendo, assim, a filologia e vai ser uma luta contra o latim medieval. Esse movimento é teoricamente coroado com o surgimento de numerosos manuais originais.
A gramatização dos vernáculos europeus e a extensão da imprensa fazem parte da mesma revolução tecnológica. A primeira se deu posteriormente à segunda. A imprensa, por permitir a multiplicação do mesmo texto de forma rápida, é responsável pelo fato de o fenômeno da escrita mudar de dimensão, desaparecendo, assim, o escoliasta, antigo sábio medieval. Teremos, então, o copista e o impressor, separando a produção intelectual do texto de sua reprodução material, supervalorizando, com isso, as idéias novas.
Dessa forma, a imprensa teve conseqüências significativas sobre a gramatização dos vernáculos, pois a prática manuscrita medieval abre espaço para a variabilidade ortográfica, normalizando-se, assim, os vernáculos. A ortografia, a morfologia e a pontuação concernem aos impressores tipográficos, mesmo contra o concurso dos autores e dos gramáticos. Um fato que contribuiu bastante para a gramatização de alguns vernáculos, em especial os europeus, foi a passagem de uma visão de mundo fechado, como ocorria na era medieval, para um universo infinito, quando se descobriu que a Terra é redonda e que é ela que gira ao redor do Sol. Assim, o mundo terrestre, ou seja, o mundo humano não pára de crescer. Ao mesmo tempo, os relatos de viagens dos missionários são colocados ao alcance do grande público, fato considerável de conhecimentos novos que produz a exploração do planeta.
Do séc. XV ao fim do século XVIII, as chamadas “ciências humanas” superam o desenvolvimento das ciências da natureza. As primeiras não oferecem, entre os conhecimentos, uma relação idêntica à que se encontra nas segundas. Estas valem uniformemente em qualquer lugar do mundo, aquelas variam de um lugar para outro. Mesmo assim, nessas disciplinas existe sentido em se falar de mudanças globais, por isso a revolução que a gramatização representa é um movimento que afeta a vida social a longo termo. 

Comentários

A obra apresenta duas importantes teses sobre o aparecimento da escrita e sobre processo de gramatização das línguas do mundo. A primeira delas é a consideração do aparecimento da escrita como uma revolução tecno-lingüística e, enquanto tal, como um dos fatores necessários ao aparecimento das reflexões sobre a linguagem. A segunda tese é a consideração do processo de gramatização das línguas do mundo como a segunda revolução tecno-lingüística, que mudou profundamente a ecologia da comunicação humana e deu ao Ocidente um meio de conhecimento e de dominação sobre as outras culturas do planeta.
O estudo de Auroux tem início com uma reflexão sobre o nascimento das metalinguagens. Nessa reflexão, o autor distingue dois tipos de saberes sobre a linguagem: um saber epilingüístico e um saber metalingüístico. O saber epilingüístico, segundo o autor, é o saber inconsciente que todo locutor possui de sua língua e da natureza da linguagem. É este saber que nos permite, por exemplo, entender piadas e jogos de linguagem. E, mais do que isso, é este saber que nos permite produzir piadas e jogos de linguagem. Já o saber metalingüístico é construído e manipulado enquanto tal com a ajuda de uma metalinguagem. É este saber que permite que possamos não apenas entender e produzir piadas e jogos de linguagem, mas também desenvolver reflexões a respeito do funcionamento das piadas e dos jogos de linguagem.
O aparecimento da escrita teve um papel decisivo na passagem dos saberes epilingüísticos para os saberes metalingüísticos. Por este motivo, o autor considera o aparecimento da escrita como uma revolução tecnológica. De fato o é. Um ponto importante que o autor observa é que não se trata de considerar a escrita como a origem de uma tradição de saber lingüístico. Isso porque o que se tem não é uma origem, mas um processo. Processo esse que passa, necessariamente, pela escrita e que pode ser bem longo. Segundo Auroux, o que faz deslanchar verdadeiramente uma reflexão lingüística é a alteridade, considerada do ponto de vista da escrita.
Devido à dificuldade de ler textos antigos, palavras ou textos estrangeiros foi necessário refletir sobre o funcionamento dessas línguas para poder traduzi-las. A esse respeito, o autor observa que a primeira análise gramatical nasceu da necessidade de se ler e compreender textos e não da necessidade de se falar uma língua qualquer. De uns tempos para cá, a gramática passou a ser uma técnica escolar destinada “às crianças que dominam mal sua língua” ou que aprendem uma língua estrangeira. Isso se deve tanto ao desenvolvimento do sistema escolar quanto ao da gramática. Em tempos remotos, nunca se teve espontaneamente a idéia de fazer uma gramática para aprender a falar.
Auroux apresenta duas causas da gramatização das línguas. A primeira delas é a necessidade de aprendizagem de uma língua estrangeira em um contexto onde já existe uma tradição lingüística. A segunda concerne essencialmente à política de uma língua dada, e pode se reduzir a dois interesses: organizar e regular uma língua literária; e desenvolver uma política de expansão lingüística de uso interno ou externo. Auroux faz uma interessante afirmação sobre isso: que durante o desenvolvimento das concepções lingüísticas européias desde o século V de nossa era até o fim do século XIX, tem-se o desenrolar de um processo único em seu gênero: a gramatização massiva, a partir de uma só tradição lingüística inicial (a tradição greco-latina), das línguas do mundo. Um marco importante durante esse período, destacado pelo autor, é o Renascimento Europeu (XIV a XVI), que é um momento em que são produzidos, em uma quantidade extremamente significativa, dicionários e gramáticas de diversas línguas do mundo e não somente dos vernáculos europeus, na base da tradição greco-latina.
Essa gramatização constitui a segunda revolução técnico-lingüística, que tem consideráveis conseqüências práticas para a organização das sociedades humanas. Trata-se propriamente de uma revolução tecnológica sem dúvida muito importante para a história da humanidade. A gramatização é definida por Auroux como um processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalingüístico: a gramática e o dicionário. Desse ponto de vista, a gramática e o dicionário não são vistos como simples descrições da linguagem natural. Eles são concebidos também como instrumentos lingüísticos. O aparecimento dos instrumentos lingüísticos não deixa intactas as práticas lingüísticas humanas.
Assim como as estradas, os canais, as estradas-de-ferro e os campos de pouso modificaram nossas paisagens e nossos modos de transporte, a gramatização modificou profundamente a ecologia da comunicação e o estado do patrimônio lingüístico da humanidade. As línguas, pouco ou menos “não-instrumentalizadas”, foram mais expostas ao que se convém chamar lingüicídio, quer seja ele voluntário ou não. O processo de gramatização corresponde a uma transferência de tecnologia de uma língua para outras línguas, transferência essa que não é totalmente independente de uma transferência cultural mais ampla. Essa transferência pode ser de dois tipos. Ela pode ser uma endotransferência ou uma exotransferência. O autor especifica esses dois tipos de transferência pelos termos endogramatização (correspondente a uma endotransferência) e exogramatização (correspondente a uma exotransferência). A gramatização espontânea (fora de transferência) corresponde para o autor a uma endogramatização.
Um caso de endogramatização é a transferência de tecnologia das tradições lingüísticas gregas para a língua latina, pelos latinos. A gramatização dos vernáculos europeus a partir das tradições latinas pelos próprios europeus também é um caso de endogramatização. Um caso de exogramatização é a transferência de tecnologia do português para as línguas indígenas, pelos portugueses e não pelos indígenas.
Um outro ponto extremamente importante a ser destacado no estudo do autor é a sua observação de que a gramática não surgiu de uma necessidade didática. Ele afirma, a esse respeito, que as crianças gregas ou latinas, que freqüentavam a escola, já sabiam sua língua, sendo a gramática só uma etapa do acesso à cultura escrita. Já para um europeu do século IX, o latim era antes de tudo uma segunda língua que ele devia aprender. Somente com a constituição das nações européias é que a gramática passou a ser utilizada para fins de aprendizagem da própria língua. Naquele momento, houve uma profunda transformação das relações sociais. A expansão das nações implicou uma situação de luta entre elas, o que se traduziu, ao final, por uma concorrência entre as línguas. Com as nações transformadas em Estados, estes vão fazer da aprendizagem e do uso de uma língua oficial uma obrigação para os cidadãos. 

Conclusão

É de suma importância para as ciências da linguagem o trabalho de pesquisa feito por Auroux nesta “Revolução Tecnológica” que marca o surgimento da gramatização. As duas teses que o autor sustenta nesta obra têm um grande interesse filosófico. A primeira tese é sobre o nascimento das ciências da linguagem e a segunda, sobre o surgimento da gramatização. O autor acredita que essa gramatização revolucionou sobremaneira a história das ciências da linguagem e todo o processo de comunicação humana, dando ao Ocidente uma forma de dominação, pelo conhecimento, sobre as outras culturas do planeta. Essa revolução, sem dúvida, é tão importante quanto à Revolução Industrial do séc. XIX. 

Referências

AUROUX, Sylvain. A revolução tecnológica da gramatização. 1ª ed. Campinas, SP. Ed. Da Unicamp, 2001.

Autor: Wagner Torlezi


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