A Relação da Sensorialidade Com a Transmissão Psíquica: Uma Abordagem na Psicose



A relação da sensorialidade com a transmissão psíquica: uma abordagem na psicose

Maria Lucia Gomes de Queiroz

Participante daEscola Letra Freudiana

Ipanema – Rio de Janeiro – Brasil

Resumo

Esse trabalho propõe apresentarum recorte sobre a constituição do corpo nas dinâmicas eestruturações psicóticas.

Com ele se objetiva realizaruma pequena reflexão sobre a origem do discurso psicótico, de forma a colaborar com uma escuta mais sensível e mais atenta na clínica, assim como tentar analisar a relação que tem o psicótico com seu corpo e sua psique.

Encontramos um sujeito alienado no desejo de um Outro especular, que surge da não ocorrência da simbolização de um significante que exerça função de integrador.

Assim, abordar-se-á se houve a existência ou não de uma edificação da imagem responsável pela unificação desse corpo.

Palavras-chaves: corpo, imagem, psicose

Abstract

The object of this work is to outline how the body is constituted with respect to its psychotic dynamics and structure.

It is intended to propose a small reflection on the origin of the psychotic discourse, aiming at a more sensitive and careful clinical attitude, and also at attempting to learn about the relation of the psychotics withtheir body and their psyche.

It has found an alienated subject regarding the desire of a specular Other, that appears from the non-occurrence of the symbolization of a significant who plays the role of integrator.

Therefore, it shall investigate the existence or not of the building of an image responsible for unifying such body.

Key words: body, image, psychosis.

"A algazarra das crianças brincando o aborrecia e suas vozes tolas faziam-no sentir ainda mais intensamente do que sentira em Clongowes, que era diferente dos outros."

JOYCE, J.(1992) "Um Retrato do Artista quando Jovem" in São Paulo: Siciliano pg. 71

A constituição do corpo humano se origina por marcas que permeiam uma história onde a interação com o Outro acontece continuamente.

"... o ego em última análise deriva das sensações corporais, principalmente das que se originam, da superfície do corpo. Ele pode ser assim encarado como uma projeção mental da superfície do corpo, além de ... representar as superfícies do aparelho mental."[1]

É importante refletir sobre porque o corpo é continente do Eu e sede da primeira alteridade, afinal nele são feitos lutos libidinais e narcisistas. Nesse espaço se dá a origem de um encontro entre o sujeito e o mundo, partindo do princípio que todo indivíduo já nasce inserido na linguagem.

A psicose lida com a riqueza das singularidades subjetivas e partindo da obra freudiana, Lacan caracteriza montagens estruturais que valorizam essa história singular.

É interessante notar o modo de constituição e de relacionamento que os psicóticos têm com seu corpo, observando-se uma distinção entre as diferentes formas que acontecem num paranóico e num esquizofrênico, sendo ponto em comum as alterações que ocorrem no mesmo quando entra em crise aguda.

Fazendo um recorte parcial, observa-se que tanto na neurose como na psicose, a origem se dá a partir de uma alienação no Outro. Isso é falado em 1936, na conferência de Lacan sobre <O Estádio do Espelho como Formador da Função do (Eu) tal qual nos é Revelada na Experiência Analítica>, onde diz que a forma total do corpo nasce de uma exterioridade. E isso marcará o desenvolvimento mental do sujeito. Esse corpo fragmentado, como é descrito por Lacan, não se separou de uma figura primordial.

Aquele que olha, cria a origem de si próprio e reconstrói um espaço, transpassado pela mãe e pelo pai,onde será protagonista

"Stephen se ajoelhou rapidamente comprimindo suas mãos espancadas de encontro ao corpo. Pensar nelas espancadas e inchadas de dor fazia com que por um momento sentisse pena delas como se não fossem parte dele mas de uma outra pessoa de que ele sentisse pena."[2]

Todo o processo ocorre tendo como pano de fundo a força organizadora do campo do discurso.

Piera Aulagnier fala das sensações de prazer e desprazer provenientes do encontro boca-seio representadas pictograficamente pelo indivíduo e que deixam marcas que vão se reeditando frente à falta e ao desamparo. Ela diz que o maior sofrimento fala de algo inominável e que vem na forma de excesso.

Ela fala do processo originário, existência psíquica regida por leis próprias e da passagem para o primário que se dá devido ao auto engendramento não se sustentar frente a existência de outro corpo separado desse indivíduo que se impõe. O seio passa a ser objeto separado de seu próprio corpo, cuja posse não é garantida, constatando-se a separação de dois corpos psíquicos. Assim, o indivíduo descobre que o Outro é necessário para saciar sua necessidade.

Ainda segundo Piera, no corpo somático fica impressa a marca que é o pictograma e que vai criar uma história no corpo psíquico.

Dessa forma, vivências de desprazer também estão representadas psiquicamente como desejo de um Outro e experimentadas como um desejo de que seu corpo adoeça e padeça.

"... irritado também com a mudança de destino que transformava o mundo a sua volta em uma visão de sordidez e insinceridade."[3]

Mais uma vez citando Piera, o Eu só pode ocupar um corpo que possua uma história cuja primeira parte é elaborada pela psique de quem ocupa o mesmo. Ocorreria, segundo ela, um "contrato narcisista" que daria base à organização psíquica.

O cenário é montado envolvendo historicidade, temporalidade e alteridade. Repete-se enunciados para garantir a certeza da existência daquele discurso. Daí resulta a possibilidade de constituição de uma imagem diferenciada.

"... as experiências sensoriais, particularmente as da superfície da pele, são o meio mais importante para produzir sentido e gerar os rudimentos da experiência do 'self'. A contigüidade sensorial da superfície da pele e a cadência rítmica são básicas para o conjunto mais fundamental de relações de objeto infantis: a experiência do bebê de ser segurado, amamentado, ouvindo a mãe conversar como ele."[4]

Aquele corpo abriga os ditos, os não ditos e os interditos dentro de uma transmissão psíquica que vai de geração em geração.

Infelizmente podem ocorrer de haver contornos mal definidos, fixados nas figuras parentais, onde o corpo próprio tem uma frágil imagem, quando há tem.

O corpo pode ser pensado de diversas formas como por exemplo como objeto da ciência, de culto, de cuidados estéticos ou outras vezes como pedaço, nos transplantes de órgãos ou como objeto a ser clonado. Mas, seguindo as trilhas de Piera Aulagnier, a estrutura do Eu é conseqüência do discurso.O corpo determina a fronteira onde o social e a organização psíquica se encontram.

Nas psicoses, o corpo é invadido pelo gozo, não passando da indiferenciação para a diferenciação, não distinguindo o externo do interno, o Eu do Outro.

Na estrutura psicótica, seu próprio corpo ou o corpo do Outro se tornam o espaço a destruir ou aquele com o qual se fundir. Nela, o processo secundário não trará atribuição de sentido às coisas, mas tornará dizível um mundo que apenas reflete um corpo que se auto rejeita.

"O corpo também participa dessa tentativa defensiva, ativando descargas e contrações musculares que visariam a fuga. Para preservar sua integridade, o sujeito recorre ao meio circundante, pedindo proteção, numa tentativa de afastar-se do agente nocivo; por motivos diversos o meio não responde a tal pedido. A ação de recusa do mundo ambiente em reconhecer a experiência traumática é um fator fundamental para se configurar como patogênica (...) tem-se então a desorientação psíquica. Corpo e alma experimentam uma forma de descolamento: não sou eu quem sofro, mas uma parte de meu corpo."[5]

A psique do psicótico paga caro por trabalhar numa figuração que se serve das imagens da coisa corporal. Sua posição é de mutilado e a sensação é de agressão que parte do corpo materno.

"Queria encontrar no mundo real a imagem quimérica que sua alma contemplava tão constantemente. Não sabia onde ou como a procurar, mas uma premonição que o fazia prosseguir dizia-lhe que esta imagem iria encontrá-lo, sem nenhum ato premeditado de sua parte. Eles se encontrariam tranqüilamente como se tivessem marcado um encontro; talvez em um dos portões ou em algum lugar mais secreto. Estariam sozinhos, cercados pela escuridão e pelo silêncio e naquele momento de suprema ternura ele ficaria transfigurado. Ele se diluiria em algo impalpável sob os olhos dela e então num instante estaria transfigurado."[6]

Freud nos fala da cena primária e das teorias sexuais infantis que caminham paralelamente findando no que Piera Aulagnier chama de "teoria infantil sobre o Édipo" (p.227). O psiquismo fica numa fronteira entre a cena primária e o que é dizível, segundo ela.

Assim, o complexo de Édipo deve ser re-feito por cada um.

"...O acesso à imagem unificada do corpo corresponde ao acesso a uma imagem unificadora da linguagem."[7]

Da finalização do Édipo sai a correspondência entre o corpo falado e a imagem do corpo. Nessa fala, ocorre uma nomeação do todo e das partes desse corpo, numa inter-relação funcional. O dizível adquire seu papel primordial, intimamente ligado ao prazer ou desprazer que o acompanha. Tudo se passa sutilmente através dessa fala. Pensar leva ao escutar e ao tocar. O corpo é expresso pelo nome das partes e funções como um conjunto.

O discurso materno assume assim sua função imprescindível que é de "falar" esse corpo, usando o gozo, resposta que dá em troca o reconhecimento de um substituo do prazer de uma zona erógena. Mas esse gozo não é da ordem do sexual e será acessado através desse prazer sentido pela mãe em sua relação com esse pai.

No psicótico corre, se assim pode-se chamar, uma relação de estranhamento mantida com esse corpo, como se fosse um outro, um instrumento. Por vezes ignorado, outras tantas anestesiado, em determinados momentos temos um sujeito que não sente dor, frio, fome ou desejo sexual. No entanto, acometido de surto é totalmente tomado em seu corpo, por vezes por vozes ou por imagens que o dominam. Nesses instantes, vemos que não há barreira e que a alteridade o esmaga.

Lacan em As Formações do Inconsciente no Seminário de 1957-1958, fala da ausência de um significante primário nesses sujeitos, o que funcionaria como um amarrador da estruturação e daria acesso à simbolização necessária. Nessa via, o discurso delirante surge como único apelo. Reduz-se o Outro a sede da fala e como sendo sua própria imagem.(pág. 15)

Nas psicoses, o corpo não é uno nem próprio, por vezes, complemento de um outro especular.

Lacan coloca a forclusão do Nome-do-Pai como o que está em jogo na estruturação das psicoses. Entende-se por Nome-do-Pai a simbolização de uma metáfora paterna que marca uma separação sujeito/Outro primordial. Assim ocorre uma relação dual, imaginária, sem a mediação de um terceiro. Ele retoma no seminário de 1955-1956 (1992) essa questão da constituição do sujeito.

Na psicose, o sujeito não acessa a harmonização, a formação de unidade. E ocorre a fragmentação que será a causa do prazer. Nela temos uma recusa acessível ao eu uma vez que esse não pode transgredir. É importante ressaltara existência do desejo do pai e seu poder de indução de uma possível resposta psicótica.

Na esquizofrenia é escolhido um ângulo de projeção pelo próprio bebê, sendo que o gozo se localiza em um órgão ou parte específica do corpo. O desejo materno é todo-poderoso e dominador. É fantasiada uma relação de rejeição na cena primária que é projeção de seu próprio desprazer no reconhecimento de um casal. Surge o famoso devoramento e o sujeito vai se identificar com o agente ou a vítima dessa violência interpretada.

Segundo Piera Aulagnier, o esquizofrênico reconhece a separação entre seu corpo e o da mãe. Mas não sabe dessa independência de um "eu" pois esse Outro comanda e ele é apenas seu acréscimo, quase encarte, que supre sua falta.

Mas é na esquizofrenia que ocorre o exemplo maior de corpo despedaçado, disforme. A busca da imagem integradora não é devolvida pelo Outro e fracassa.

Na paranóia tem-se o que Freud denominou de retorno da libido sobre o sujeito com uma invasão do corpo como um todo. Freud também nos fala, a propósito da paranóia, do investimento da libido no delírio.

Nessa potencialidade paranóica surge o delírio, ocorrendo uma luta contra esse desprazer que figura na forma de ódio.

"Seus recentes devaneios monstruosos afluíam em tropel em sua memória. Eles também haviam surgido diante dele, súbita e furiosamente, de meras palavras. Entregara-se sem demora a eles e lhes permitira assolar seu intelecto e aviltá-lo, indagando-se sem parar de onde vinham, de que covilde[8] imagens monstruosas e sempre fraco e humilde para com os outros, inquieto enojado de si mesmo depois que eles o haviam assolado."

Os estudos constatam indícios de traços paranóides nos pais do paranóico.

No caso Schreber, Lacan menciona a produção do objeto anal, na tentativa de juntar seu ser nesse ato. O sujeito paranóico também pode se desdobrar especularmente e falar com seu duplo. Há uma tendência nos paranóicos em quebrar espelhos e vidraças, onde vêem o duplo de seu eu, sem mediação do Outro simbólico.

O paranóico goza nas passagens ao ato, no delírio, nos fenômenos alucinatórios, nos fenômenos de desdobramento imaginário, ou seja, ocorre a identificação do gozo no lugar do Outro.

"Uma cólera o havia freqüentemente revestido, mas ele nunca fora capaz de fazer dela uma paixão duradoura e sempre se sentira saindo dela como se seu corpo estivesse sendo despojado com facilidade de alguma pele ou casca exterior"[9]

Assim, constat-se que o corpo tem diversas e distintas funções sendo que, na psicose, é ser fonte de dor necessária para provar a existência da realidade.

As relações do sujeito com a realidade desse corpo e de suas necessidades são imprescindíveis e devem ser sempre levadas em conta. Nesse viés, entra o analista com sua sensibilidade que não deve se limitar à escuta do discurso mas também desse corpo que clama por falar.

Bibliografia

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BENJAMIN, W.(1994). Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte>. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense

BICK, E.(1991). A experiência da pele em relações de objeto arcaicas>. In: Spillus, E.B. (org) Melanie Klein Hoje. Desenvolvimentos da Teoria e da Técnica (vol. I) Rio de Janeiro: Imago, 1991 p. 195

D'Anzieu. O Eu-Pele. Casa do Psicólogo, 1989

FREUD, S. O Ego e o Id. In: Obras Psicológicas Completas. Rio de janeiro: Imago, 1987. Ed. STB v. XIX

JOYCE, James. Um Retrato do Artista quando Jovem.São Paulo: Siciliano, 1992

LACAN, J. (1995-1956). O Seminário. Livro III. As psicoses. Rio de Janeiro: Zahar

________. (1999-1957-1958). O Seminário. Livro V. As Formações do Inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar

_________. (1948-1949) O Estádio do Espelho como Formador da Função (Eu) tal qual ela nos é Revelada na Experiência Psicanalítica . In: Cadernos Lacan. 1ª Parte. Publicação não comercial. Documento

LIPOVETSKY, Gilles. Os Tempos Hipermodernos São Paulo: Editora Barcarolla 2004

MAIA, Marisa S.(2003) Extremos da Alma : Dor e Trauma na Atualidade e Clínica Psicanalítica. Rio de Janeiro: Garamond

Revista Latino Americana de Psicopatologia Fundamental "O Nascimento de um Corpo, origem de uma história" Piera Aulagnier ano II n. 3 1999 pg. 9 `45

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