O Sótão



Aquela região era mesmo encantadora. Vales cercados de pequenas montanhas onde o verde se misturava ao tom entre castanho escuro e roxo das pedras que as formavam. Alguns riachos de água muito limpa mostravam que a poluição causada pelo homem ainda não chegara ali.

- Querido...será que não erramos o caminho?

- Não, Cecília. Olha ali a capelinha que o homem do armazém nos falou. A casa deve ficar logo depois daquela curva.

- Que lugar lindo, não acha?

- Belíssimo ! Estou feliz por termos resolvido vir morar aqui.

- Olha! Lá está a casa !

O velho portão de ferro batido estava fechado. O muro dos dois lados dele era bem sólido e precisava claramente de uma pintura. Danilo saltou do carro e logo percebeu um botão de campainha ao lado direito da entrada. Adiantou-se para aperta-lo. Não foi preciso. Uma figura silenciosa apareceu como surgida do nada. Era um homem de estatura media, magro, o rosto enrugado e os cabelos grisalhos, quase brancos.

- Seu Danilo? Boa tarde. Vou abrir o portão

- Boa tarde, obrigado. Seu nome é Hermes, não é isso?

- Exatamente, senhor. Hermes, para servi-lo.Entre com seu carro, por favor. Está um pouco frio hoje, não acha?

O portão foi aberto sem ruído. Podia ser velho mas estava bem cui-dado. O carro entrou no jardim. As pequenas pedras do caminho produziam um som gostoso quando calcadas pelos pneus. Danilo parou em frente à casa e desceu com Cecília. A porta almofadada de jacarandá maciço abriu-se e uma mulher bem jovem caminhou sorridente para eles.

- Chegaram bem na hora do chá. Sou Vanda, copeira e arrumadeira, uma espécie de faz tudo... Sejam bem vindos ! Entrem, por favor.Eu e o Hermes traremos suas malas.

- Obrigada, querida, mas são várias e pesadas. Meu marido e eu va-mos ajuda-los.

Cecília e Danilo tinham acabado de tomar seu chá. Era evidente que Augusta, a cozinheira, era também uma doceira de mão cheia.

- Meu amor, temos que tomar cuidado. Se não nos vigiarmos,vamos engordar rapidinho com esses bolos e tortas.

- Nem fale, Cecília. Que maravilha essa torta de morangos. A Vanda me disse que foram colhidos em nosso próprio pomar...

- Nosso pomar...nossa casa...parece que estou vivendo um sonho !

- Bem, que tal a gente escolher o quarto que vai ser o nosso?

Dois dias se passaram em descobertas gostosas. A casa, construida em um só andar parecia a sede de uma fazenda. Danilo a tinha herdado inesperadamente de uma velha tia que só vira duas ou três vezes quando ainda era menino. Era antiga, em estilo entre colonial e rústico. A decoração revelava que sua tia tinha sido uma mulher de gosto requintado. As peças,acolhedoras, eram mobiliadas em estilo inglês. Vários quadros a óleo, alguns surpreendentemente modernos, contrastavam com boas aquarelas e gravuras de caça também inglesas. E um dos detalhes que encantou o casal foi o número de esculturas, a maioria em bronze. Dois serviços de jantar em bonita porcelana e uma grande quantidade de copos e garrafas de cristal, compunham com as grandes toalhas de linho , o serviço de mesa. A copa, a cozinha os banheiros eram amplos.E os armários

embutidos espaçosos eram certamente um acréscimo moderno recebido pela casa. Os jardins e o pomar eram deliciosos.A casa tinha um pequeno sótão, fechado.

- Bom dia, Geraldo. O que temos de carne fresca hoje?

- Temos uma alcatra inteira fresquinha. E recebi uma lingüiça de porco que o senhor pode levar sem susto, mesmo sendo uma lingüiça caseira. O senhor vai querer carne moída também?

- É, vou querer sim.

- E sua esposa? Está satisfeita com a Vanda? Ela é sobrinha de minha mulher, o senhor sabia?

- Estamos satisfeitos, não só com a Vanda como com a Augusta e o próprio Hermes. Está tudo perfeito.

- Que bom saber disso.Tínhamos um pouco de receio que fossem tro-car a criadagem.

- Pelo contrário, queremos conserva-los.

- O senhor e sua esposa precisam conhecer a velha Mariana. Parece uma bruxa, mas era muito querida por sua tia.

- Mariana?

- É, sua tia aposentou-a tem bem uns quatro anos. Mora com o filho numa casinha perto do lago. Já estava na casa quando seus tios a compraram. Sabe tudo da estória da casa e do lugar aqui.

- É, precisamos conhecê-la.

- Ela vai gostar.Tem uma figura meio assustadora, mas é uma pessoa de bom coração.

- Bom, deixa eu levar minhas compras para casa. Um bom dia para você, Geraldo.

Danilo encontrou o velho Hermes varrendo com cuidado as folhas caídas no jardim. Era o inicio do inverno e o ar estava bem frio

- Estive conversando com o Geraldo. Ele me falou sobre a velha Mariana.

- Ah, ela é uma figura estranha . Deve ter mais de noventa anos, é a pessoa mais velha do lugar.

- Gostaríamos, Cecília e eu, de conhece-la.

- Tem certeza, senhor? Sua esposa é capaz de ficar impressionada com ela...Parece uma velha bruxa e às vezes diz coisas um pouco assusta-doras. Mas, é uma pessoa bondosa.

- Queremos conhece-la sim. Você poderia telefonar para a casa dela e combinar nossa ida lá?

- Pode deixar, vou fazer isso ainda hoje.

A sala da casa de Mariana era pouco iluminada. Ela recebeu o casal vestida com uma saia de lã e uma blusa preta, de flanela grossa. Uma estola de lã tricotada cobria seus ombros magros e encurvados.

- Então você é o sobrinho da minha patroa, que Deus a tenha... Sua mulher é muito bonita.

- Obrigada, Mariana. Você é muito gentil.

- Beleza...minha patroa também foi muito bonita.

- Temos muitas fotos dela lá em casa. Parece ter sido linda.

- É, nunca entendi por que não se casou novamente. Ainda era bem nova quando o doutor Arnaldo morreu. Teve tantos pretendentes, mas não quis nenhum deles.

- Talvez não tenha querido se casar com alguém que não a fizesse tão feliz como o marido dela.

- Feliz, feliz...ela foi mesmo uma mulher de sorte. Merecia, era uma pessoa de bom coração. Comprou para mim esta casinha antes de me aposentar. Vivemos aqui, eu e meu filho.

- Adoramos a nossa nova casa. É linda e tão gostosa.

- É, a casa... É muito grande para um casal como vocês. É bom terem logo um par de filhos.

- Vamos providenciar...

- E você, moça, deixa eu lhe dizer uma coisa.

- Diga.

- Tem um sótão lá, já reparou?

- Ah, imagino que seja para onde dá uma porta que está trancada, no fundo do quarto de vestir.Ninguém parece saber onde está a chave.

- Isso mesmo. É bom que ninguém saiba mesmo.

- Por que, Mariana?

- O sótão é assombrado, moça, um capeta mora dentro dele. Nunca, nunca entre lá.

- Você acredita mesmo nisso?

- Acreditar? Claro que acredito, moço. Sua tia nunca entrava lá. Seu tio entrou uma vez e morreu pouco depois.

- Ora, pelo que sei meu tio morreu de derrame cerebral e já tinha mais de sessenta anos, quase setenta.

- Acredite no que quiser, moço. Mas se eu fosse você mandava des-manchar aquele sótão. Queimar tudo que tem lá dentro.

- E o que tem lá dentro?

- O Mal. Moço.É o Mal o que tem lá dentro...

O carro rodava maciamente em direção à casa.

- O que você achou da história do sótão, meu amor?

- Francamente, fiquei um pouco impressionado.

- Pois eu não. Vou procurar e encontrar essa chave e fazer uma pe-quena investigação dentro dele.

- Que idéia, querida, deixe o sótão trancado, em paz.

- Ah, sou muito curiosa para deixar esse assunto quieto.

- Você é impossível mesmo.

- Ora, amorzinho, você não se apaixonou por mim do jeito que sou?

- É, me apaixonei sim. Mas não gosto dessa idéia de você mexer no sótão.

- Bobinho. Eu me garanto.

Cecília fez girar com cuidado a chave na fechadura do sótão. Tinha esperado Danilo sair para comprar as sementes que Hermes queria plantar na ala nova do pomar. A porta rangeu . Cecília a empurrou devagar.

O sótão era grande, estava pouco empoeirado.Duas clarabóias de um vidro amarelado eram sua única fonte de iluminação. Não tinha lustres ou luminárias. Cecília olhou curiosa os poucos moveis e obje-tos. Uma velha Bergère com o estofamento de veludo azul claro já meio rasgado, dois banquinhos. Uma velha sela de montaria sobre um cavalete de mogno. Botas, um chicote e um par de esporas no chão. Um castiçal com uma vela quase toda derretida.Num canto uma mesa quadrada com um tabuleiro de xadrez. As peças, de madeira de lei pareciam esperar por mãos que as movimentassem.

Ao lado da mesa uma velha cristaleira envidraçada. Cecília exami-nou-a curiosa. O que eram aqueles pequenos objetos de estanho? Um leve ruído como um estalido a fez voltar seu olhar para a mesa e o tabuleiro de xadrez. As peças estavam ou pareciam estar se mexendo.

Então, com um som baixo, sinistro, o rei, a principal peça preta ad-quiriu vida. Seu topo foi se transformando numa cabeça quase hu-mana, dotada de um rosto assustador. Lentamente os olhos se abriram e fitaram a moça imóvel, estarrecida. E a boca, ah, como era horrível aquela boca...escancarou-se num riso meio desdentado, aterrador...Cecília soltou um pequeno grito estrangulado e caiu desacordada sobre o velho piso de tábuas corridas.

Mariana olhou impaciente para o gato malhado de cinzento e negro.

Essas moças modernas, tão inteligentes, tão seguras de si mesmas.

Só porque tinham freqüentado uma das tais universidades pensa-vam que sabiam tudo. E agora essa Cecília, tão bonita, estava se recuperando numa clínica de repouso, só voltaria para casa dali a cinco dias. Danilo, o marido, mandara remover a porta que conduzia ao sótão,cobrira a abertura com concreto e mandara mudar a pintura do pequeno quarto de vestir. Tirara com a ajuda de Hermes todas as peças de dentro do maldito sótão e as queimara numa grande fogueira no fundo do terreno. Chamara o padre da igreja local para exorcizar o lugar.

Mariana olhou o grande gato malhado bem nos olhos que piscavam.

- Vamos, faça logo seu lance, Tadeu, não vou ficar a noite inteira esperando você mover uma peça. Você está perdido mesmo. O jogo está ganho para mim.

Tadeu olhou o tabuleiro com pouco interesse. Esticou delicadamente uma pata e envolveu com suas garras a torre do rei. Moveu-a...

Mariana olhou incrédula o tabuleiro. Tinha levado um cheque mate.

A velha bruxa deu um soco na mesa, sua expressão era de ódio. A frente dela Tadeu lambia uma de suas patas e com a saliva limpava displicente a parte de trás de uma de suas orelhas macias.Olhava sua dona com a expressão magnânima dos vitoriosos.Tinha derrotado a velha bruxa. Vencera mais uma partida de xadrez.
Autor: George Luiz Paredes


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