Os Indígenas na Obra de Santa-Anna Nery



Uma "apreciação da ingenuidade" - os indígenas na obra de Santa-anna Nery[1]

Anna Carolina Coelho

(UFPA)

Frederico José de Santa-anna Nery nasceu no Pará em 1842, pertencia a uma família tradicional que conquistou muito prestígio no Amazonas para onde se mudou muito cedo, estudou no Seminário de São José e em 1862 teve a oportunidade de acompanhar o bispo do Pará D. Macedo Costa em sua primeira visita pastoral ao Amazonas, conseguindo o apoio do bispo para cursar o Seminário de Saint Sulpice em Paris onde recebeu as ordens menores, mas preferiu não seguir a carreira eclesiástica. Em 1867 tornava-se bacharel em letras e em 1870, doutor em direito pela Universidade de Roma, no ano de 1871 o dr. Alfredo de Macedo[2], o apresentou ao conde de Villeneuve, ministro do Brasil na Suíça, e este indica Nery como correspondente do Jornal do Comercio. Em 1874, mudava-se para Paris, local em que conquistou um círculo de amizades com gente ilustre como Vitor Hugo[3] e o príncipe Roland Bonaparte[4]; fora isso, vários intelectuais e pessoas da alta sociedade eram assíduos no salão de sua residência em Paris. Colaborou com os jornais franceses L'Événement, Écho de Paris, L'opinion e Le fígaro, produzindo artigos sobre o Brasil. Foi diretor do periódico L'América e o primeiro correspondente brasileiro do jornal Republique Française instituído por Leon Gambetta um dos chefes prestigiados do partido republicano francês. Escreveu também para os jornais italianos La Tribuna, Libertá , Journal de Romee Il Século e para ojornal londrino Society de 1874 a 1882 escreveu para o Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, assinando a coluna Ver, ouvir e contar.Eraum dos proprietários e diretoresda Revue du monde Latine diretor da redação do periódico Le Brésil, revistas que procuravam expor uma imagem positiva do Brasil e dos países latino-americanos.

Santa-Anna Nery foi praticamente criado em um seminário, em 1862 fez parte da comitiva do bispo do Pará, d. Antônio de Macedo Costa, na primeira visita pastoral deste ao Amazonas.

Em 1862 eu passava por Serpa, vindo de Manaus. Esta vila do alto Amazonas, situada na margem esquerda do grande rio, foi fundada nos meados do século XVIII. A época em que ali estive, ela guardava ainda o nome português de Serpa; atualmente, readquiriu seu nome indígena: Itacoatiara, isto é, pedra pintada. (....) Em 1862, pequeno vaso de guerra ali tinha me conduzido o venerável e sábio bispo do Pará, d. Antônio de Macedo Costa, o apostolo querido destas regiões, que procura hoje dotá-la de uma basílica flutuante, da qual toda a imprensa européia se ocupou há algum tempo. Eu fazia parte da comitiva do ilustre prelado. [5]

Esse relato foi publicado em 1889, percebe-se nele uma grande consideração do autor para com o bispo denominado elogiosamente de "sábio", "venerável", "apostolo querido" e "ilustre". Toda essa consideração era natural, pois, o bispo o apoiou sua viagem a Paris e o recomendou ao seminário de Saint Sulpice. A pesar de não ter se tornado padre, ele esteve ligado ao vaticano desde 1868 quando seguiu para Roma, para cursar doutorado em direito; sendo redator da revista católica La esperanza. Não podemos esquecer que seu título de barão foi concedido pelo papa por defender os interesses do Vaticano, e que somente em 1872 ele deixou a redação da revista declarando que se separava dos "velhos católicos", mudando-se em 1874 para a França.

Inclusive Nery apoiou um singular projeto de catequese indígena elaborado por d. Macedo Costa. O bispo expôs seu projeto em 1883, na Assembléia Provincial do Amazonas, o plano consistia na construção de um navio apostólico para a ação pastoral e missionária fluvial da região amazônica denominado de "Christophoro"[6]:

Este navio-missionário medirá 120 pés de comprido, e de largura 30, tendo o menos possível, a fim de poder livremente viajar não só no Amazonas, senão também nos seus afluentes, na cheia, como na baixa das águas.

Em fim nada se poupará para que esta primeira basílica fluctuante especialmente consagrada ao santíssimo sacramento, seja em tudo digna de seu divino objeto, e torne-se por sua elegância e esplendor um motivo de justo orgulho e glória para o Amazonas, e edificação do mundo inteiro(...).[7]

Tal será a missão do CRISTOPHORO, - é o nome do nosso vapor, que quer dizer portador do christo; - facilitar a difusão do fecundo germe da civilização christã até pelas mais incultas e remotas paragens da Amazônia.

Esse navio seria um templo flutuante construído artisticamente por especialistas europeus que percorreria o Amazonas com um grupo de sacerdotes de sólida formação para a pastoral das populações ribeirinhas e para a catequese indígena a metodologia para o ensino seria a utilização da música sacra. Para as celebrações, o navio-igreja possuiria um órgão, instrumento pouco encontrado nas igrejas e capelas da região, representando uma singular atração para os habitantes de povoações menores e para os índios. Em uma nota do Diário de Notícias consta que o governo do Amazonas teria doado a esse projeto apenas 1000 libras sterlinas o que deixou um jornalista indignado com a "esmola":

O Navio Igreja

Por uma carta, que nos foi confiada soubemos que o sr.D. Antônio obtivera daCompanhia do Amazonas, em Londres, a esmola de 1,000 libras sterlinas para

occorrer as despezas do Christophoro.

E'destinado o navio igreja ao desenvolvimento social da região Amazônica; e não se negando, antes, de bôa vontade, para isso contribuindo para a dita directoria, provou com seu procedimento,de parte a idéia religiosa, o interesse que tem pelo progresso da Amazônia, ao qual se acham vinculados os seus próprios interesses.[8]

O navio não se destinava apenas à ação religiosa, mas ao progresso da Amazônia, assim como o jornalista mencionado, ao apoiar o projeto do Christophoro, Santa-Anna Nery demonstrava que a catequese indígena e a imigração estrangeira faziam parte de seu projeto para o futuro da região. Um exemplo desse apoio do autor à catequese indígena é o elogio que ele fez ao Instituto Agrícola de Artes e Ofícios do Rio Tefé fundado pelos padres da Congregação do Santo Espírito em 1897:

Embora muito recente, o estabelecimento se encontra em plena prosperidade, e é preciso esperar que a ajuda do estado não lhe falte, já que a obra é daquelas que se recomendam por si mesmas. Em vez de tentar atrair para a civilização índios adultos, tarefa que lhes parece ainda mais efêmera em seus resultados que difícil na aplicação, os padres do santo espírito parecem decididos a empreender uma obra uma obra mais racional; criam escolas de ensino prático e moderno para formar o coração e o espírito dos jovens índios, que mais tarde, torna-se-ão os propagadores desses métodos sadios em seu próprio meio. O projeto é ousado e bem digno da inteligência do grande prelado que o inspirou, o monsenhor Roy, superior geral da Congregação do Santo Espírito, com residência em Paris.[9]

Esses projetos de catequese e educação indígena que Santa-Anna Nery apoiava faziam parte de um vasto programa de reformas denominadas "Romanização", que foi imposta pela igreja católica no final do século XIX. Esse programa representava no Brasil a reação de uma ala conservadora da hierarquia católica contra o regime do padroado imperial, ou seja, buscava aproximar o catolicismo vivido pelos brasileiros dos ditames da Santa Sé, em Roma. Dessa forma, as práticas da religiosidade popular foram pensadas como algo arcaico, obscuro e selvagem e que, portanto, deveriam ser extintas para o bem do catolicismo.

E d. Macedo Costa, o "apostolo querido" de Santa-Anna Nery colocou-se ativamente contra todos os tipos de manifestações, rituais e formas populares de devoção, procurando cumprir as diretrizes do vaticano. De acordo com Figueiredo, [10]a romanização e diversas ideologias uniam-se contra as tradições populares, vistas como superstições arcaicas, em favor da civilização nos trópicos:

Intendente, bispo, delegado, propagadores de ideologias diversas — da "ciência positiva" ao "discurso moralizador e romanizado" — todos como que deixavam suas divergências de lado, para que, quando no trato com as tradições religiosas populares, estivessem unidos bradando em favor da civilização nos trópicos, da racionalização dos hábitos do povo, vistos como impregnados de superstições, crenças arcaicas e práticas sociais que beiravam à selvageria. Por outro lado, eu tinha consciência que esse grande número de fontes documentais mostravam a persistência de tradições religiosas populares como um lócus dinâmico de conflitos e alianças com setores dominantes da sociedade local.

Santa-Anna Nery era um dos que "bradavam pela civilização", ele via na religião "romanizada" uma oportunidade de desenvolvimento para a Amazônia, no entanto, o contato com os "velhos católicos" e o apoio a essas idéias não foramtão constantes a partir de 1874,quando a atuação do autor em conjunto com os governos tornava-se mais próxima, principalmente em 1881 quando iniciou a publicação do periódico Le Brésil iniciando sua carreira como "propagandista" do Brasil na Europa.

O autor expôs o estado do Amazonas como extremamente próspero, ressaltando a progressão da receita que seguiu marcha crescente e ininterrupta desde 1852, quando sua receita anual ainda era de 18 contos, tomando grande impulso a partir de 1889, chegando a 1.814 contos; esse lucro era majoritariamente provindo de taxas sobre a exportação da borracha. Para Santa-Anna Nery, o povoamento da região Amazônica era fundamental para se construir uma sociedade civilizada, as preferências dadas aos imigrantes europeus não excluíam o trabalho indígena e nem imigrantes vindos de outros estados; mesmo porque considerava que os portugueses já teriam viabilizado a implantação da modernidade no Brasil devido a sua origem latina.

Santa-Anna Nery tinha uma posição peculiar a respeito dos povos indígenas, que envolvia uma postura ligada ao romantismo, a sua formação religiosa e ao folclore. O interesse do autor pela temática indígena iniciou em 1875 com a antologia Un Poète du XIX siècle: Gonçalves Dias (um poeta famoso por seus poemas indianistas como I-Juca-pirama).

Em O País das Amazonas Nery fez uma relação de 373 tribos existentes no Amazonas descrevendo suas principais características. O autor expunha nesta obra uma representação indígena idealizada, relacionada à ingenuidade e defendia que, os futuros imigrantes não deveriam temer os índios selvagens, porque embora sendo numerosos conseguiam conviver pacificamente com os estrangeiros, negociantes e seringueiros; ao contrário do que os "preconceitos ultrapassados" proclamavam. Os índios mundurucus se distinguiam de outras tribos pelo amor ao trabalho e o pendor agrícola:

Os índios são ainda muito numerosos nas florestas do Amazonas, onde vivem em pequenas tribos. Algumas entre elas foram domesticadas por negociantes do interior, pelos seringueiros e pelos mercadores que percorrem os rios e com os quais esses nômades estabelecem relações. Entre eles os índios, Mundurucus se distinguem por seu amor ao trabalho e por seus pendores agrícolas.

Quanto aos estrangeiros estabelecidos no Amazonas, vivem a mesma vida que os naturais da região, sem que preconceitos ultrapassados procurem agir contra eles. [11]

Segundo o autor, os índios não eram uma ameaça ao progresso, mas poderiam viver e trabalhar em conjunto com os imigrantes e de forma produtiva. Santa-Anna Nery caracterizava o índio como ingênuo e domesticável, a maioria deles não seria capaz de ameaçar ninguém. Geneviève Bolleme[12] lembrava que a cultura popular quase sempre era qualificada de ingênua, numa certa "apreciação da ingenuidade" pelo intelectual. Essa "valorização" da ingenuidade popular cristalizaria ao mesmo tempo uma imagem que garantiria autenticidade cultural, e uma rejeição da inocência e da ignorância que lhe eram atribuídas.

A "apreciação da ingenuidade" era uma característica muito comum em Nery, por isso ele classificava a cultura indígena como um reflexo do passado primitivo da humanidade que em pouco tempo deixaria de existir:

Mas, repetimos que a civilização igualitária nivela todos os usos; e logo de todas as tradições dos ancestrais, não restará nenhum traço.

Se desejarmos encontrar ainda o pitoresco e o imprevisto na terra amazonense, é no meio do povo, da raça que descende dos índios, que devemos procurar.

Esta classe de habitantes permaneceu mais ligada às lembranças de seu berço, e conservou à parte que a distingue dos brasileiros puros (...). Seus alimentos, seus excitantes costumes e hábitos guardam alguma marca da raça primitiva.[13]

Para o autor um dos impulsionadores do progresso, e claro, da "morte" da cultura indígena seria o "grande pensamento do cristianismo". Santa-Anna Nery, mesmo afastado dos "velhos católicos" sempre apoiou projetos de catequese; na época do Concílio Vaticano I permaneceu em contacto com missionários que atuavam no Brasil, chegando a prefaciar, em 1882, o relato de viagens intitulado Le Pays du café do pe. T. Durand (um missionário francês que trabalhou na Amazônia).

Esse futuro que esperava o autor era justamente o fim da cultura primitiva, que valia apenas como objeto de pesquisa. Em 1885, suas pesquisas a respeito da cultura do povo se tornaram mais sérias, e ele participou de inúmeras sociedades dedicadas especificamente ao estudo dessas tradições e em 1889 publicava Folk-lore Brèsilien. A idéia de escrever um livro sobre folclore surgiu após uma conferência de Santa-Anna Nery no Instituto Rudy (1885) a respeito da poesia popular no Brasil, esse instituto era formado por intelectuais de diversas nacionalidades dedicados ao estudo das tradições populares, o sucesso da palestra entre os intelectuais do instituto motivou o autor a escrever este livro, os principais motivadores foram Frederic Mistral e Frederic Passy[14] sendo inclusive convidado a para participar da Sociedade de Tradições Populares, cujo presidente era Vitor Hugo.

Expor uma boa imagem do Brasil no exterior era uma de suas principais preocupações, contudo ao falar sobre o seu país o autor destacava a região onde nasceu. No prefacio de Folk-lore Brésilien (1889)[15] o príncipe Roland Bonaparte[16] comentava o destaque dado por Nery à cultura indígena, revelando que primeiramente sua posição seria reprovar o largo espaço dado no livro a essas tradições, mas entendeu que esse enfoque era devido à valorização dada pelo meio intelectual da época aos estudos sobre "culturas primitivas" (como era considerada a indígena), por isso resolveu não criticá-lo.

Para desenvolver a obra Folk-lore Bresilien, Santa-Anna Nery fez três viagens às regiões da Bacia Amazônica nos anos de 1882 a 1887, entrando em contato com os moradores da região, inclusive indígenas, que se tornaram informantes. As intenções do autor em suas obras estão claramente expressas nesse trecho:

Ceux que se donerrost la peine de le lire auront, du mons, l'ocasion de cónnaitre une novelle face de ce beau pays du Bresil, dont je me suis constitué em Europe le propagandiers voluntaire[17].

Apesar do trabalho cuidadoso de pesquisa o autor não se considerava um folclorista, mas um propagandista voluntário do Brasil, sua intenção em Folk-lore Bresilien era tornar o Brasil conhecido discutindo características culturais e não propriamente fazer um estudo "científico" sobre folclore, apesar disso o livro foi um sucesso entre o meio intelectual europeu, por ser, de acordo com o príncipe Roland Bonaparte um reforço aos "laços de simpatia" entre brasileiros e franceses por apontar lembranças e vestígios que ligavam os dois países.

As concepções e comentários de Santa-Anna Nery a respeito de folclore (assunto o qual passou a se interessar de forma mais metódica somente a partir 1882) tiveram uma repercussão negativa no Brasil, após a polêmica entre o autor e Silvio Romero. Esse entrevero influenciou muito para o esquecimento da obra, devido a forte acusação de plágio feita por Romero.

A maior estratégia de Santa-Anna Nery para atrair seus leitores era ressaltar a natureza amazônica, essa característica é presente nas duas obras analisadas. Folclore Brasileiro tinha a pretensão de representar o Brasil, mas privilegiava a região natal do escritor, característica comum entre os intelectuais do período. Por isso, a natureza tem um grande espaço em sua narrativa, sendo que três elementos foram destacados: as águas, as plantas e os animais. Os índios foram percebidos dentro de uma ligação muito forte com essa natureza.

Nesse sentido, as águas amazônicas foram valorizadas em várias narrativas, como neste trecho do conto O Muiraquitã - Amuleto que descreve o rio Nhamundá morada das amazonas que produziriam o muiraquitã:

O rio Nhamundá é um dos mais belos afluentes do Amazonas. Semeado de lagos, separados uns dos outros por ligeira extensão de terras verdejantes, parece às vezes mais imponente que o próprio soberano ao qual leva o tributo de suas águas atravessando meandros inextrincáveis. As colinas, altas como montanhas ou menos elevadas, como um morro, mas sempre graciosamente descobertas, encaixam-se nessa rede de lagos de água doce.(...)

Próximo das nascentes do Nhamundá, a tradição coloca a morada das fabulosas Amazonas. Era lá que elas viviam duas a duas, sem contato permanente e confessado com os homens.[18]

O rio estava ligado ao mistério de suas águas, de seus afluentes e também de igarapés que nas narrativas orais populares coletadas por Santa-Anna Nery poderiam ter "sereias" como habitantes. Algo que pode ser percebido nos contos da Iara nas versões do Pará e Amazonas. O momento em que o rapaz Januário (principal personagem de uma das narrativas de Folclore Brasileiro) contempla um igarapé, no qual se encontra a bela Iara, foi assim registrado:

Foi, portanto, nessa oscilação incômoda entre a realidade e a ficção, entre a coragem e o medo, que o mancebo chegou à margem do igarapé.

Sob a cúpula dos imensos ingazeiros, cobertos de um lençol de sombra, aqui e ali marchetado de pontos luminosos, como pérolas derramadas sobre um tapete de veludo negro, rolavam as águas do igarapé, plácidas e sonolentas, produzindo esse murmúrio solene e monótono que é como o ressonar de um gigante fatigado.(...)

E o canto continuava, subindo de vigor, como se o cantor se aproximasse. Quanto mais para perto chegava, maior era o enlevo, mais extraordinário se antolhava o fenômeno ao mancebo. Não vinha de um só lugar a voz encantadora como o perfume enchia todo o ambiente[19].

As águas dos rios, nas crenças dos tapuios, poderiam conter habitantes míticos como a Iara ou o Boto personagem que, segundo Santa-Anna Nery, seria utilizado como instrumento de corrupção pelos "dons juans" citadinos que utilizariam talismãs com partes do animal para atrair as jovens índias para praia e enganá-las "o boto tem as costas largas: um desaparecimento, ou uma gravidez é logo colocada a sua conta"[20].

Os rios poderiam até mesmo esconder cidades encantadas em meio as suas águas profundas, como a cidade de Maiandeua. Segundo a crença, descrita por Santa-Anna Nery[21] quando o luar iluminava tudo, os pescadores podiam ver ao longe o vulto de uma mulher, muito bela, branca e com longos cabelos sedosos, prestando atenção podia distinguir-se no fundo das águas, o galo cantando e os tambores que tocavam no campo. Somente os pajés podiam conhecer a cidade, chegando até mesmo a viver submerso por sete anos seguidos.

Santa-Anna Nery descreveu a crença da cidade de Maiandeua a partir de uma narrativa escrita pelo jornalista Pádua de Carvalho sob o pseudônimo de Sganarello, publicada dia 14 de novembro de 1886 no Diário de Notícias. Para Vicente Salles, (autor do prefácio e tradutor da obra Folclore Brasileiro) uma das principais contribuições de Santa-Anna Nery foi tornar conhecida a pesquisa folclórica de Pádua Carvalho.

O autor, no conto Sapucaia – Oroca expôs uma explicação sobrenatural dos "ignorantes" nativos do Baixo Amazonas em relação às ilhas que estes viram surgir e desaparecer:

Este fenômeno se reproduz freqüentemente. O rio é um perpétuo vir-a-ser, e, como o personagem da fábula algumas vezes devora seus filhos. O homem nativo jamais assiste a esses fenômenos sem ser tocado pelo terror e, em sua ignorância, procura uma explicação no meio de causas sobrenaturais[22].

Para o intelectual, as crenças da população que morava próximo aos rios eram fruto de sua ignorância e uma forma de se relacionar com a natureza a sua volta, explicando pelos meios sobrenaturais os fenômenos puramente físicos; procurando ao mesmo tempo expor e criticar as relações dos "tapuias" com as águas dos rios, vivências que produziam explicações baseadas no conhecimento religioso e mítico, como as crenças em seres como sereias e botos como sendo habitantes dos rios da Amazônia, e a crença em cidades encantadas.

Para a maioria dos folcloristas o valor das manifestações culturais dava-se pelo exotismo das narrativas ou objetos que deveriam ser colecionadas por lembrarem o passado das sociedades tidas como "civilizadas",[23] no caso a França e a Inglaterra, principalmente. Mas, depois de servirem como objeto de estudo, as culturas primitivas deveriam ser eliminadas. O autor, na obra Folclore Brasileiro escrevia para um público estrangeiro letrado, afinal o livro foi escrito após inúmeras solicitações de intelectuais do instituto Rudy, por isso o autor procurava redigir como um folclorista ciente das teorias evolucionistas.

Além da cura de doenças, o autor mencionava uma crença popular em relação às ervas da Amazônia que podem servir para finalidades mágicas de atração em banhos que misturavam água, folhas de tajás (calladium), diversas espécies perfumadas e priprioca. Ao utilizar este banho de ervas consideradas atrativas seria possível "obrigar" uma pessoa a nutrir sentimentos amorosos por outra, contudo para conseguir tal efeito devia-se tomar o banho rezando a seguinte oração:

Vento que ventas através deste mundo de cristo, se encontrares fulana lhe darás três pancadas no coração para que pense só em mim e venha me falar.

Vento, traz-me seu pensamento e seu corpo; que ela não possa ter sossego ante de me ver, como Maria Santíssima não teve antes de ter visto seu filho amado no divino tribunal.

Fulana, tu vais, tu vens, chorarás depois por mim.

Coração, eu te despedaço; sangue, eu te bebo; pensamento, eu te seguro. Se estiveres com outro, ele te detestará, ele se afastará de ti como da porcaria do lodo da beira do mar; e eu, Fulana, eu desviarei para ti uma pedra de diamante: claro como o sol, belo como as estrelas e lindo como a lua.

Vento, se esta oração me sair bem, tu girarás e fulana aparecerá atrás de ti.[24]

Para o escritor, costumes como o "banho da felicidade", tendiam a desaparecer com o avanço da urbanização, porém em alguns momentos, a narrativa de Santa-Anna Nery aproximava a identidade do autor com alguns costumes da população "supersticiosa" com a qual ele procurava se diferenciar, o que deixa claro uma ambigüidade no texto. Em O País das Amazonas ele lembrava sua participação em festas de Santos Padroeiros em sua infância, mas, procurava se justificar com os leitores lembrando que na França ocorriam festas semelhantes; já na obra Folclore Brasileiro o autor registrou a "Oração para a Pedra do altar"[25], de uma "eficácia comprovada" para acalmar alguém zangado ou que deseja o mal, e também a oração para São Jorge, a qual ele indicava para os leitores que precisassem evitar inimigos e intrigas.

Se tendes inimigos que vos importunam e se desejais evitá-los ou passar a seu lado sem que o vejam, nada mais simples escondei-vos atrás de uma árvore ou abaixai-vos atrás de vossa bengala e recitai esta oração: São Jorge cavaleiro-mártir, (...).[26]

Santa-Anna Nery também mencionava as finalidades mágicas da aninga (planta aquática selvagem), da raiz de mandioca (Manihot utilíssima) e da pimenta malagueta (Amomum granum paradisis). Da raiz de mandioca (tucupi) e da pimenta malagueta poderia se fazer um banho que era de grande auxílio para os caçadores que precisavam da ajuda de um cachorro, caso este perdesse o faro era aconselhável ministrar-lhe um banho de malagueta ou tucupi. Já a aninga, poderia ser utilizada por homens que quisessem ter um pênis "bem desenvolvido", pois bastava bater-lhe com o fruto da aninga branca três dias antes ou três dias depois da lua nova para obter o que se desejava.

Em sua viagem com a comitiva de d.Macedo Costa, Nery presenciou as "façanhas de um pajé" que fazia uma cura durante uma visita da pastoral, utilizando orações misteriosas e cigarros para incensar as índias e cantando "um canto lúgubre e monótono". Para Santa-Anna Nery, as principais ocupações de um pajé eram a "corrupção" das jovens índias e o fomento de superstições.

Apesar de sua opinião negativa sobre os pajés, o autor acreditava nas potencialidades das substâncias medicinais retiradas da floresta: "Talvez os próprios pajés, que conhecem as propriedades de certas plantas, recorrem a algum artifício para ocultar seus crimes e para conservar seu prestígio junto dos ingênuos"[27]. É interessante notar que o autor reconhecia o conhecimento dos pajés a respeito das substâncias medicinais e acreditava que o uso de rituais simbólicos, que ele nomeava como "artifícios" eram subterfúgios para enganar os menos esclarecidos, nesse momento sua posição ante os povos indígenas e/ou mestiços era o de um romântico (o primitivo é ingênuo e infantil).

Santa-Anna Nery, tal como os folcloristas da época, explicava as narrativas orais populares, baseado na teoria de Eduard Tylor sobre uma origem comum na humanidade, e considera a lenda da Iara análoga à lenda da Lorelai dos rochedos Bacharac na Alemanha[28]. Para Figueiredo,[29] o autor compartilhava plenamente das idéias evolucionistas dos folcloristas sobre a cultura indígena, considerando-a degenerada, fetichista, animista, ingênua, ignorante e primitiva. Dessa maneira, o intelectual expressaria ao mesmo tempo uma visão evolucionista e/ou do romantismo indianista, ambas imbuídas de profundo preconceito.

É relevante acrescentar que os comentários preconceituosos de Santa-Anna Nery a respeito da religião indígena, possivelmente originavam-se de seu apoio à política da romanização e não somente devido a sua formação científica. Um exemplo disso é que na maior parte das suas narrativas sobre a cultura indígena, o autor era extremamente simpático, próximo do romantismo, mas quando se tratava de religião tornava-se um crítico mordaz que considerava os pajés "corruptores" que com suas paixões senis provocavam histeria e superstição nos espíritos "inocentes" das "pobres moças tapuias" e que não exitavam em recorrer a artifícios para conservar seu prestígio e ocultar seus crimes. A cerimônia iniciática de um pajé foi presenciada pelo autor que acreditava que nesta eram transmitidos segredos do "charlatanismo indígena", mas que seria "assaz curiosa":

A iniciação de um pajé é coisa assaz curiosa. Durante certo tempo, o noviço que aspira esse alto sacerdócio jejua; os pajés jejuam também com ele. Depois de haver sido purificado pela abstinência, o noviço é levado diante do mais sábio dos pajés. Este preparou-se todo para a cerimônia e empunha fino talo de palmeira. Há quatro palmeiras irmãs: o açaí, a bacaba, o patauá e a paxiúba. A paxiúba é a árvore sagrada; é uma palmeira caída do céu. Um pedaço de paxiúba ou de patauá é muito duro; não se pode dobrar, por fino que seja sem quebrá-lo. Mas, mediante combinações químicas que só eles conhecem, os pajés o tornam flexível.

Apesar de criticar duramente os pajés, em outros momentos o autor se impressionava com a "encantadora finura" das poesias indígenas que o faziam pensar se eram degenerados ou primitivos; para sua resposta se apoiava em José de Alencar, que acreditava em uma origem comum, ou seja, o índio não era degenerado e sim infantil e primitivo. Apoiar-se nas idéias dos românticos era uma alternativa aceitável que fugia de uma teoria mais radical sobre as raças. Santa-Anna Nery era um autor puramente polímato, suas opiniões circulavam entre sua identidade como nativo da Amazônia que o fazia desejar que os pesquisadores perdessem o hábito de generalizar, formando "opinião firme e quase uniforme" sobre os povos primitivos, como católico que via na catequese indígena uma solução para por um fim nas superstições, e sua formação acadêmica que impunha perceber os povos indígenas de acordo com o arcabouço teórico da época.

Mesmo acreditando na utilização das plantas para a cura de doenças, o autor considerava os índios como símbolo de atraso que poderia prejudicar o processo de modernização da Amazônia, pois, os índios "contaminariam" com suas superstições todos os que estivessem próximos, nesse momento sua opinião era a de um folclorista coerente com a teoria evolucionista: "O indígena, mesmo o indígena em contato permanente com a civilização, ficou um ser supersticioso. Sua superstição contaminou todos aqueles que o rodeiam"[30].

Santa-Anna Nery apresentava uma característica comum em vários intelectuais do período ao tentarem analisar a realidade de sua região de origem, o que Roberto Ventura[31] chama de auto-exotismo. Quando um intelectual de uma região periférica percebia o seu local de origem com um distanciamento, conseguia de um lado um olhar antropológico, de outro, introduzia conceitos negativos em sua própria representação.




Autor: Anna Carolina Coelho


Artigos Relacionados


País De Duas Faces

Dança Dos Mascarados: Cultura E Tradição Poconeana

Os Indígenas Na Obra De Santa-anna Nery

A Participação Da Amazônia Na Exposição Universal De Paris Em 1889

Um Presente Atrasado

Educação Física E Qualidade De Vida

As Pontuais Mudanças Trazidas Pela Lei 11.689/08 = Júri