A Dignidade Humana Como Fundamento Para a Prática da Eutanásia



André Luiz Mendes Serravalle

O valor da dignidade da pessoa humana compromete-se em propiciar aos indivíduos condições para se ter uma vida decente e para a realização de sua personalidade, conforme as necessidades mais íntimas e mais particulares de cada um. Às vezes, o que uma pessoa precisa, não é a mesma coisa que a outra precisa. As pessoas são diferentes no seu modo de ser e de agir, possuindo, consequentemente, necessidades distintas. 

Muitas necessidades são básicas e comuns a todos os indivíduos, entretanto, há algumas situações que as pessoas preferem optar por serem concretizadas de uma forma à outra, mesmo que não seja a mais convencional. Essa autonomia de se optar entra uma forma de conduzir sua vida ou outra deve ser concedida indiscutivelmente, e isto deve ocorrer inclusive nos momentos finais da vida. 

O progresso das tecnologias médicas é uma realidade mundial que surge para ajudar a sociedade a enfrentar os males que comprometem a saúde das pessoas, sendo muitos deles fatais e incuráveis.

Sem dúvida alguma, os avanços médicos têm se revelado verdadeiros aliados à sociedade. Descobertas como as técnicas de inseminação artificial, embriões excedentários, células tronco, dentre tantas outras, facilitam indiscutivelmente a vida das pessoas.

Entretanto, tais avanços não trazem apenas benefícios. Existem situações que, embora com tantos aparatos tecnológicos, podem acabar afetando a dignidade da pessoa. Como é o caso dos avanços concernentes à manutenção e prolongação da vida de forma artificial, sem qualquer perspectiva de melhora. Tais procedimentos acabam-se por se revelar como verdadeiros processos que prolongam apenas a morte, ao invés de curar.

Será isso mesmo que o juramento de Hipócrates queria dizer? Manter a pessoa viva a qualquer custo, mesmo que isso custe o seu sofrimento e a sua dignidade? Afinal, o simples fato de se manter a vida de um paciente para se responder a questionamentos superficiais, como as cobranças religiosas e a fria letra da lei não é, exatamente, o que podemos chamar de respeito.

A denominada "obstinação terapêutica" ou "encarniçamento terapêutico" pode ser definido como "uma prática médica excessiva e abusiva decorrente diretamente das possibilidades oferecidas pela tecnociência e como o fruto de uma obstinação de estender os efeitos de forma desmedida, em respeito à condição da pessoa doente."  

É evidente que a ciência está fazendo seu papel, não cabendo a ela dar a última palavra a respeito de como iremos tratá-la juridicamente ou de e como será sua repercussão na sociedade. Esse é um papel do direito, de regulamentar as conseqüências e os efeitos dessas novas situações trazidas para o convívio em sociedade. É nesse sentido que o direito deve estar atento às verdadeiras necessidades dos indivíduos, identificando até que ponto eles serão beneficiados ou prejudicados.

É inegável que, há situações em que os tratamentos médicos se tornam um fim em si mesmo e o ser humano passa para um segundo plano. A base das argumentações deve ser aquilo que de melhor será para o indivíduo e não para servir de resposta à religião, ciência ou à própria lei, pois, como sabemos, esta última é feita para melhor solucionar os problemas dos indivíduos e nunca para prejudicá-los. Serve inclusive para proteger os indivíduos deles próprios, de suas omissões e, nesse caso, de seus excessos.

Uma simples alegação de que está em jogo o direito à vida, não finaliza essa discussão. Deve haver ponderações, em cada caso concreto, como vemos no dia a dia do direito. Ainda mais quando o que se está em jogo é a dignidade da pessoa humana. Não que seja mais ou menos importante do que o direito à vida, mas nos faz refletir, ao se ponderar tais princípios, há situações em que a dignidade irá prevalecer indiscutivelmente.

Não estou defendendo aqui, uma prática irresponsável, desenfreada, sem limites, mas uma prática que permita que alguns seres humanos que permanecem em determinadas condições tenham os seus direitos verdadeiramente ponderados. A escolha de morrer antecipadamente, não é uma opção entre viver e morrer, ao passo que, para alguns indivíduos não existe sequer a possibilidade de continuarem vivos, mas apenas, a possibilidade do prolongamento de seus sofrimentos.

Assim, não se pode permitir que a atenção tenha seu foco no procedimento e na tecnologia e sim na pessoa que convalesce. Numa situação como essa, o enfermo correrá sempre risco de sofrer medidas desproporcionais, pois o núcleo dos interesses da tecnologia deixa de ser o homem.

Portanto, devemos estar atentos para uma “reapropriação da morte pelo próprio doente”, tendo em vista salvaguardar a qualidade de vida das pessoas, mesmo no momento de sua morte.  Assim, o prolongamento artificial da vida de uma pessoa retira dela, a sua subjetividade e atenta, portanto, contra sua própria dignidade.

A intervenção terapêutica contra a vontade do paciente atenta contra sua dignidade, liberdade, sua autonomia de decidir sobre o destino de sua própria vida. 

Para aqueles que são contra a eutanásia e se baseiam sua argumentação de que se estaria atentando contra o direito à vida, se referem apenas ao aspecto biológico, entretanto, se esquecem que a vida biológica não é condição suficiente para que o indivíduo exerça com plenitude o direito à vida. Existem os aspectos pessoal, social, cultural, econômico e psíquico que o direito à vida possui.

A vida da pessoa tem que ser “digna”, como a própria constituição preceitua, do contrário, o indivíduo não consegue exercer plenamente o seu direito e realizar-se por completo.

Do que adiantaria, conceder vida, se não são concedidos meios para a fruição de tal direito? Não é a simples concessão de um direito que implica na satisfação plena dos indivíduos, como é necessária também a concessão dos instrumentos para a sua realização.

A eutanásia, deveria ser prática regulamentada e legalizada, de forma a possuir critérios minuciosamente estipulados para a sua concretização. Esta só deve ser permitida em casos bem particulares e específicos, de modo a atender as necessidades latentes. A eutanásia revela-se um caminho consciente, refletindo uma escolha informada do término de uma vida em que, aquele que morre conserva a sua dignidade até o seu último dia.

Nos tempos atuais, o interesse público tem o poder de prevalecer nas mais diversas situações, entretanto, quando se trata do direito à escolha de um fim digno, de direitos como a autonomia absoluta de cada indivíduo e a autodeterminação, não há que prevalecer qualquer tipo de interesse coletivo. Afinal, estamos falando aqui de uma pessoa, que será a única que irá arcar com o ônus.

O interesse da sociedade não pode ser maior do que o interesse do indivíduo de acabar com o seu próprio sofrimento. Estaria se sacrificando em nome de um interesse coletivo que, na prática, não resultaria em benefício algum para a sociedade, mas tão somente em prejudicar os interesses individuais e particulares de cada ser humano.

A prática da eutanásia não defende a morte, mas apenas a escolha da mesma como melhor opção ou a única.

Nesse diapasão,  ponderam Jussara Meirelles e Eduardo Didonet Teixeira, in verbis:

"é possível entender que o acharnement subverte o direito à vida e, com certeza, fere o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, assim como o próprio direito à vida. Se a condenação do paciente é certa, se a morte é inevitável, está sendo protegida a vida? Não, o que há é postergação da morte com sofrimento e indignidade [...] Se vida e morte são indissociáveis, e sendo esta última um dos mais elevados momentos da vida, não caberá ao ser humano dispor sobre ela, assim como dispõe sobre a sua vida?" 

Existem aqueles que optam por lutar a qualquer custo e aqueles que desistem de lutar, tendo em vista sua situação irreversível. Estas estão cansadas de viver, e não aguentam mais sentirem-se um "peso", ou de sentirem-se sozinhos, acompanhados apenas por um enorme sofrimento de ordem física, psíquica ou social, não encontrando mais razão alguma para viver.

Percebe-se que, apesar de haver grande resistência por parte do direito brasileiro em legalizar de qualquer forma a eutanásia, já existem indícios a respeito de uma possível flexibilização dos obstáculos que impedem sua prática. Isso se dá a uma percepção de forma lenta, mas gradativa, de que existe a necessidade de se avaliar a situação mais profundamente, tendo em vista a sua real importância em determinados casos.

É preciso que o legislador não de prenda à exegese das normas e atente para a nova tendência do direito, que está voltada para a realização do ser humano, de acordo com as suas necessidades e não impondo o que, supostamente, seria o correto.

O fato de envolver o direito à vida, só vem a dificultar essa nova linha de raciocínio, contudo, ao se ponderar tal direito com o princípio da dignidade da pessoa humana e, ao se constatar o efeito prático dessas considerações, se perceberá que o que realmente importa, é a satisfação sadia dos interesses de cada indivíduo, sem qualquer irrazoabilidade ou desproporcionalidade e, com isso, invadir a esfera de direito do próximo, muito menos da coletividade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUDOUIN, Jean-Louis, BLONDEAU, Danielle. Éthique de la mort et droit à la mort. Paris: Press Universitaires de France, 1993, p. 89.

Cf. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de morrer dignamente: eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, análise constitucional e penal e direito comparado. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos (org.). Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: RT, 2001.

MEIRELLES, Jussara, TEIXEIRA, Eduardo Didonet. Consentimento livre, dignidade e saúde pública: o paciente hipossuficiente. In: RAMOS, Carmem Lúcia Nogueira et al (orgs.). Diálogos sobre direito civil: construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 371.


Autor: andre serravale


Artigos Relacionados


O Discurso / Mídia / Governo

As Pontuais Mudanças Trazidas Pela Lei 11.689/08 = Júri

A Juventude

A Sociedade Industrial Moderna

Locação De Imóveis E O Direito Constitucional

O Ciclo Da Aprendizagem Se Completa

Resumo Histórico Sobre Os Médicos Sem Fronteiras